sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

IRMANDADE DA BOA MORTE

Fotos de Lamberto Scipioni
Confraria secreta:
Passados quase 200 anos de sua criação, a Irmandade da Boa Morte ainda se mantém ativa e fechada – somente participam dela as descendentes de escravas com mais de 40 anos.


Mulheres negras fundaram o primeiro movimento feminista no Brasil

Fabíola Musarra

De todos os tesouros que preserva espalhados em suas ruas, a pequena cidade baiana de Cachoeira é detentora de uma das manifestações culturais mais ricas do País: a festa de Nossa Senhora da Boa Morte. Realizada no fim de semana mais próximo a 15 de agosto, a iniciativa – mais do que uma simples comemoração – é um convite para ingressar num mundo onde cultura, tradição, história e magia convivem e se confundem.

Situada na região do Recôncavo Baiano, a 109 quilômetros de Salvador, a cidade “nasceu” de um engenho de açúcar, no século 16. Devido à fertilidade de seu solo e ao intenso comércio, foi um dos principais pólos econômicos da Bahia até o século 19. De seu apogeu, Cachoeira ainda conserva algumas tradições. A festa de Nossa Senhora da Boa Morte é uma delas.

Tributo a Maria:
Desde 1820, as irmãs se mantêm fiéis na devoção a Nossa Senhora. Anualmente, realizam a festa de Cachoeira, cumprindo uma promessa feita por suas ancestrais nos tempos da escravidão.

Participar dessa cerimônia é mergulhar no passado e reviver os tempos do Brasil colonial, do Império e do País independente mas ainda escravocrata. É percorrer uma paisagem onde a energia de escravos mortos ou torturados ainda ecoam. É desvendar a-quele que talvez seja o primeiro movimento feminista negro do País: a Irmandade da Boa Morte, uma organização de mulheres negras que à sua moda resistiu e se rebelou contra os sofrimentos impostos pelo regime escravagista, desde a jornada diária de trabalho de 18 horas nas lavouras aos castigos e mutilações, como o corte dos tendões das fujonas, os açoites em público, os grilhões e brasas em seus rostos, a extração e quebra de dentes a frio e o corte de orelhas e da língua daquelas consideradas mais afoitas. Sem falar dos abusos sexuais.

Não é à toa que esse período de mais de 350 anos é um dos capítulos mais sombrios da história das Américas. Mas foi nesse cenário que surgiu a Irmandade da Boa Morte, que é quem até hoje organiza a festa em Cachoeira. Fundada em 1820, essa sociedade de mulheres negras e mestiças, escravas e libertas, tinha duas metas principais: comprar a carta de alforria para a libertação de maridos, filhos e outros escravos, e preservar os rituais das religiões africanas até então terminantemente proibidos, como o culto dos orixás. Posteriormente, foi essa organização que fundou a primeira casa de candomblé keto no Brasil.

Respeito a Oxalá:
Após ritual secreto, as irmãs oferecem uma ceia à comunidade. Nela, o dendê e a carne são expressamente proibidos, num gesto de respeito a Oxalá, que não ”aprecia” esses alimentos.

Passados quase dois séculos de sua criação, a Irmandade da Boa Morte ainda é uma confraria católica de mulheres negras e mestiças que representam a ancestralidade dos povos africanos escravizados e libertos no Recôncavo Baiano. A sociedade ainda se mantém ativa e é fechada – somente podem ingressar nela as descendentes de escravas com mais de 40 anos.

Atualmente, a Irmandade é integrada por cerca de 30 senhoras – houve um tempo em que esse número chegou a 200. Embora neguem, são elas que continuam realizando secretamente os mesmos rituais aos deuses africanos dos tempos da escravidão, incluindo aqueles feitos durante a festa da Nossa Senhora da Boa Morte.

Quitutes nas ruas em troca da liberdade
Como outras devoções marianas, o culto a Nossa Senhora da Boa Morte é um exemplo da inestimável herança deixada por índios, portugueses e negros. Ele foi trazido para o Brasil pelos jesuítas portugueses. Chegou primeiro em igrejas e conventos de Salvador, que realizavam a procissão do enterro de Maria ou procissão de Nossa Senhora de Boa Morte.

Mais tarde, essa devoção foi levada para Cachoeira, onde a festa é atualmente uma das mais famosas do País, ganhando inclusive daquelas organizadas na capital baiana e no Rio de Janeiro em honra a essa mesma santa.

Sinal de luto:
Na procissão do corpo de Nossa Senhora, realizada na sexta-feira, todas as mulheres da confraria vestem-se de branco, cor que simboliza o luto para o povo santo.

Para preservar sua identidade cultural e fugir das terríveis punições impostas pela Igreja católica da época, as primeiras irmãs – as mães, mulheres e irmãs de escravos fugidos – começaram as cerimônias e rituais pedindo a intercessão de Nossa Senhora da Boa Morte. “Elas vendiam quitutes nas ruas para comprar a carta de alforria de outros escravos. Pediam, então, a ajuda de Nossa Senhora para libertar os escravos e conseguir voltar à África de-pois da morte”, conta uma das senhoras da Irmandade. “E nós continuamos a cumprir a promessa feita pelas nossas ancestrais, de sempre agradecer a Nossa Senhora pela ajuda obtida.”

Em Cachoeira, a festa de Nossa Senhora é realizada desde o início do movimento abolicionista. Durante 68 anos, entre a organização da Irmandade (1820) até a decretação da Lei Áurea (1888), as irmãs faziam um ritual secreto e sem as cerimônias católicas. Apenas rezavam suas novenas e faziam o samba-de-roda (uma dança em que os participantes fazem uma roda e batem palmas). Depois disso, é que se celebrava a missa católica.

Ainda hoje a cerimônia preserva seus traços característicos, marcados pela memória do sofrimento dos escravos para alcançar a liberdade. Segundo os pesquisadores, é exatamente este o significado da celebração – o agradecimento a Nossa Senhora pela liberdade conseguida com muito sacrifício, com a realização de várias cerimônias, culminando com a assunção da mãe de Jesus.

Em linhas gerais, a programação da festa de Nossa Senhora de Boa Morte inclui a confissão na Igreja Matriz, um cortejo representando a morte de Nossa Senhora, uma vigília, ceia e uma procissão do enterro da santa. Depois, é celebrada a ascensão de Nossa Senhora, seguida de procissão e de uma missa na Igreja Matriz da cidade.

Embora a mãe de Jesus seja cultuada o ano inteiro, o ápice dessa devoção da Irmandade tem uma data marcada: acontece com a celebração da ascensão da santa. No calendário de duração da festa de Nossa Senhora da Boa Morte, sexta-feira e sábado são os dias dedicados aos cultos sagrados e secretos. Em cerimônia privativa, as irmãs rezam para Nossa Senhora enquanto queimam-se incensos na pequena casa ao lado da Capela da Ajuda, local onde uma imagem de 300 anos de Maria morta é arrumada e velada.

O sagrado dá passagem ao profano
Depois, é feita a saída em procissão do corpo de Nossa Senhora. Durante o cortejo, a imagem tricentenária da santa é carregada pelas irmãs que integram a comissão da festa no ano. Durante toda a procissão, elas são auxiliadas e se revezam no translado do corpo.

Todas vestem-se de branco, têm contas e brincos brancos ou prateados, usam torço muçulmano também branco e carregam tochas com velas acesas. O traje branco é sinal de luto para o povo de santo. A missa de corpo presente é feita em memória das irmãs falecidas. As irmãs retornam com o caixão à sede da sociedade. Velam Nossa Senhora e fazem rituais secretos.

Depois deles, oferecem uma ceia branca (peixes, pães, arroz e vinho) à comunidade. Como no candomblé a sexta-feira é um dia dedicado a Oxalá e como esse orixá “não aprecia” dendê e carne, esses ingredientes são proibidos nessa refeição.

Há quem diga que a ceia branca é preparada para as irmãs falecidas. Assim sendo, é alimento para egum (espírito de uma pessoa que já morreu) e só pode ser comido na sede da Boa Morte. “Há alguns anos, uma pessoa tentou levar comida embora e tomou um soco de um egum, derrubando tudo no chão. Isso foi um sinal de que os alimentos não deveriam ser comidos fora da nossa sede”, recorda uma das integrantes da confraria.

No sábado, na missa e na procissão simbolizando a morte de Nossa Senhora, as irmãs usam seus trajes de gala, as chamadas becas. A cabeça é coberta por um lenço branco denominado bioco. Sobre a camisa branca trazem um pano- da-costa de veludo preto.

Na cintura amarram um lenço branco sobre a saia preta plissada e calçam chagrins (uma espécie de chinelo) brancos.

Domingo é o dia que se comemora a ascensão de Nossa Senhora ao céu. Para celebrar, as irmãs da confraria oferecem uma feijoada à população. Aí sim, começa a festa profana, bem do jeito que o baiano gosta. Ela dá direito a muita comida, bebida e a samba-de-roda. Como toda a festa que se preza na Bahia, a alegria começa com data e hora marcadas... mas só termina quando o fôlego acabar.

Cachoeira, monumento nacional

Considerada monumento nacional e tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico em 1971, Cachoeira é a segunda cidade baiana (a primeira é Salvador) que reúne o mais importante acervo arquitetônico no estilo barroco. Suas casas coloniais, igrejas e prédios históricos preservam a imagem do Brasil Colônia, Império e República, quando por três séculos (do 17 ao 19) o comércio e a agricultura colocaram o vilarejo no ranking de um dos mais prósperos do País. Desde 2002, parte desse passado vem sendo resgatado pelo programa Monumenta, do Ministério da Cultura, e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

O primeiro passo desse projeto foi a restauração da pequena Capela da Ajuda, uma construção com características medievais e missionárias. A capela foi edificada nos arredores do engenho de cana-de-açúcar, em volta da qual se formou a povoação. Em 1693, o povoado passou a se chamar Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira. Erguida entre 1595 e 1606 por Paulo Dias Adorno – fidalgo português fundador do povoado que originou Cachoeira –, a Capela da Ajuda foi ainda primeira sede da Irmandade da Boa Morte.

Também já foram restauradas a casa onde nasceu a enfermeira Ana Nery, que cuidou dos feridos na Guerra do Paraguai; a cadeia e a Casa de Câmara. Construído entre 1698 e 1712, esse imóvel foi sede do governo da Bahia em dois períodos: em 1822, abrigou a junta governativa nas lutas pela independência da Bahia e entre 1837 e 1838, por ocasião da Revolução da Sabinada.

Ao todo o Monumenta prevê a restauração de 327 imóveis em Cachoeira. Entre eles, a Igreja da Matriz (construída entre 1693 e 1754, abriga os maiores painéis de azulejos portugueses com cenários bíblicos da América Latina) e o conjunto do Carmo, de 1702 (integrado pela Igreja de Nossa Senhora do Rosário e Casa de Oração da Ordem Terceira, reúne trabalhos em talha dourada e imagens com influências orientais), além da Santa Casa de Misericórdia e do antigo fórum.

O que fazer na cidade

Primeiro freguesia, depois vila, com mais de 300 anos de fundação e elevada à condição de cidade há 166 anos, Cachoeira, ao lado de São Francisco do Conde e Jaguaribe, é uma das três mais antigas cidades baianas. Com toda essa idade e história, Cachoeira abriga, naturalmente, um deslumbrante casario colonial. Todo esse conjunto de sobrados, praças, ruas, becos e ladeiras merece ser conhecido.

Outro ponto turístico de destaque é a Fundação Hansen Bahia. Ela reúne aproximadamente 13 mil peças, entre xilogravuras e matrizes, cópias assinadas e não assinadas do gravador alemão Karl Heinz Hansen, naturalizado brasileiro com o nome de Hansen Bahia.

O prédio da fundação é do século 17 e serviu de hospedagem para o imperador Dom Pedro II, em 1858, e para a princesa Isabel e o Conde d´Eu, em 1885, na inauguração da ponte Dom Pedro II (1822-1885), erguida em estrutura metálica importada da Inglaterra. A ponte interliga Cachoeira e São Félix, cruzando o Rio Paraguaçu. É, por si só, outra atração imperdível da cidade.

REVISTA PLANETA
EDIÇÃO 395

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