sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Quem tem medo do islã?


Quem tem medo do islã?
por Rodrigo Cavalcante
Na manhã do dia 11 de setembro de 2001, um atentado terrorista transformou o Islã na grande preocupação do Ocidente. Mas o que nós aprendemos sobre os muçulmanos desde então? Será que a religião seguida por mais de 1,2 bilhão de pessoas é a responsável pelas imagens de violência e radicalismo a que assistimos diariamente na TV? Para começar a responder a essas perguntas, precisamos desviar dos estereótipos e voltar no tempo. Numa viagem que começa na inóspita Arábia da época de Maomé.
No século 7, a Arábia Saudita, hoje cobiçada por possuir a maior reserva mundial de petróleo, não passava de um rincão desértico que não interessava ninguém. Naquele local habitado por tribos nômades (os beduínos), a vida valia pouco. Os mercadores que cruzavam a região em direção aos vizinhos reinos da Pérsia, no atual Irã, ou Bizâncio, na Turquia, viviam ameaçados pelos constantes conflitos tribais. Até que, no ano 610, um mercador de 40 anos da cidade saudita de Meca passou por uma experiência sobrenatural que mudaria a história da região – e do mundo.
Enquanto dormia em seu retiro habitual, que ficava numa caverna do monte Hira, o mercador Maomé teve a visão de um anjo que ordenou: “Recita”. A divindade, mais tarde identificada como Gabriel (o mesmo que teria visitado Maria seis séculos antes para anunciar a chegada de Jesus), teria abraçado Maomé com força e insistido: “Recita”. No limite de sua resistência física, o mercador sentiu, finalmente, que algumas palavras inspiradas por Deus começavam a sair da sua boca. Mais tarde, elas fariam parte do Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, que contém as mensagens consideradas divinas que Maomé continuaria recebendo até o fim de sua vida, em 632.
A revelação preencheu um vazio religioso que havia muito perturbava os povos da Arábia. Até então, a região era um centro de santuários de culto a diversas divindades, mas não havia nada parecido com as sofisticadas revelações das escrituras judaicas e cristãs. Por isso mesmo, os árabes também previam que um dia receberiam uma revelação direta do mesmo Deus dos judeus e dos cristãos. A experiência que Maomé teve naquela noite parecia confirmar essa previsão. Nascia, assim, o Islã (palavra que significa “submissão a Deus”).
Assim como o judaísmo e o cristianismo, o islamismo reivindica para si o DNA do mesmo pai: Abraão, o patriarca bíblico que, há cerca de 4 mil anos, teria feito uma aliança com Deus em troca da promessa de que sua “semente” iria prosperar por toda a Terra. A tal semente, de fato, se espalhou. Hoje, mais da metade da população do planeta (cerca de 3,5 bilhões de pessoas) segue uma dessas três crenças.
Apesar de serem irmãs, entretanto, toda vez que uma dessas religiões se expandia pelo resto do mundo, o conflito com as outras parecia inevitável. Quando o cristianismo tornou-se, no século 4, a religião oficial do Império Romano, os judeus começaram a ser perseguidos por não reconhecerem Jesus como filho de Deus. Séculos depois, os muçulmanos entraram em confronto direto com os cristãos: as palavras de Maomé unificaram as tribos árabes e, apenas um século depois, seriam a base de um império que ia da Espanha e do Marrocos, no Ocidente, até o Afeganistão e o Paquistão, no Oriente. Os muçulmanos só sairiam da Europa Ocidental no século 15, após serem expulsos pelos reinos cristãos da Espanha e de Portugal – que, por sua vez, continuariam massacrando os judeus.
Há algumas décadas, entretanto, judeus e cristãos se aproximaram. A fundação do Estado de Israel, no Ocidente, fortaleceu as relações entre as duas comunidades. Em contrapartida, os muçulmanos se tornaram cada vez mais distantes, a ponto de hoje serem vistos como promotores de governos despóticos, de repressão contra as mulheres e, é claro, de atentados terroristas. Mas o que há de verdade e o que há de mito nessa imagem dos países de maioria muçulmana? Por que temos a impressão de que Estado e religião são inseparáveis nesses países? Um olhar atento mostra que as possíveis respostas a essas perguntas estão mais na história dos últimos séculos que no conteúdo de escrituras sagradas.

Profeta armado
Segundo alguns historiadores, parte da dificuldade dos países muçulmanos em separar Estado e religião está na própria gênese do Islã. Para que a nova fé prosperasse, Maomé esteve à frente de uma série de batalhas até derrotar os politeístas da cidade de Meca. Se a vida dele terminasse em uma delas, ele provavelmente seria lembrado como um grande mártir religioso, que sonhou com uma sociedade justa e fraterna e sucumbiu em meio à insensibilidade dos homens. Mas diferentemente de Jesus, que foi crucificado numa terra governada pelos romanos, Maomé não apenas continuou vivo como conseguiu, na base da espada, transformar a cidade de Meca no centro do Islã. Ele morreu como um homem comum de sua época, doente e cercado pelos filhos e esposas. A historiadora inglesa Karen Armstrong, em seu livro Maomé – Uma Biografia do Profeta, lembra que ele não foi nenhum santo. “Maomé viveu numa sociedade violenta e perigosa e às vezes adotou métodos que nós, que temos a sorte de viver num mundo mais seguro, achamos perturbadores”, afirma ela.
Para compreender melhor as conse qüên cias que a vida de Maomé teve para seus seguidores, um cristão precisa fazer uma pergunta curiosa: se, por algum motivo, Jesus tivesse tido tempo de fundar e liderar uma comunidade baseada nos seus ensinamentos, o que mudaria no cristianismo? Provavelmente muita coisa, não? De certa forma, foi exatamente isso o que se deu com Maomé. Como diz Bernard Lewis, professor de Estudos Orientais da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, e autor de O Que Deu Errado no Oriente Médio?, Maomé conquistou sua terra prometida e criou seu próprio Estado, do qual ele mesmo foi soberano supremo. E, como tal, promulgou leis, ministrou justiça, arrecadou impostos, recrutou exércitos, fez guerra e fez paz. “Numa palavra, governou”, diz o historiador.
As normas de Maomé ficaram registradas no Alcorão, que ainda hoje é o fundamento da legislação de vários países muçulmanos. Comparado com as alegorias dos Evangelhos, esse livro é, de fato, bem mais específico nos seus mandamentos. Entre os 6326 versículos da obra sagrada dos muçulmanos, há desde instruções para o casamento até regras sobre como o governante deve agir na cobrança de impostos. Como diz o xeque Jihad Hassan Hammadeh, um dos líderes da comunidade islâmica no Brasil, o Alcorão é mais que um livro religioso: “É um sistema econômico, jurídico e político”.
As mensagens emitidas por Maomé em nome de Deus foram transmitidas durante longos 23 anos, durante os quais o líder precisava resolver conflitos típicos de uma sociedade em formação. Não é de estranhar, portanto, que algumas das revelações tratassem inclusive da melhor maneira de lidar com os inimigos em uma guerra. No Alcorão, as instruções de Alá para lidar com os politeístas são bastante claras. Primeiro, diz o texto, deve-se tentar convertê-los. Caso eles não aceitem a proposta, podem manter sua fé, desde que paguem tributos. Se os infiéis, ainda assim, resistirem, aí a violência se justifica, expressada na polêmica frase: “Matai os idólatras, onde quer que os achei; capturai-os, acossai-os e espreitai-os”.
Por cerca de 14 séculos, o resgate das passagens belicosas do Alcorão tem sido usado, no Ocidente, como confirmação de que o Islã incitaria a violência. Para os especialistas em religião, contudo, o Alcorão não é mais violento ou cheio de leis do que outros textos sagrados, como a própria Bíblia. O livro bíblico do Levítico, que trata de leis e foi herdado da Torá dos judeus, é um caso exemplar. Afinal, ele está repleto de normas que, se fossem seguidas ao pé da letra hoje em dia, fariam com que nossa sociedade fosse pouco diferente de um regime opressor como o do Talibã. Além disso, é bom lembrar que a separação entre Igreja e Estado é uma conquista recente no Ocidente, que ainda vem se aprofundando (devido à pressão da Igreja Católica, o divórcio, por exemplo, só foi legalizado no Brasil na década de 1970).Mas, se as mensagens contidas no Alcorão não são tão diferentes assim de outros textos religiosos, por que a violência está sempre associada aos países muçulmanos? Qual a origem do extremismo religioso?
O Ocidente ataca
As tropas inglesas no golfo Pérsico receberam ordens do primeiro-ministro e começaram a invasão. Quatro meses depois, as forças ocidentais, vitoriosas, ocuparam a fronteira da região do Iraque. Diferentemente do que talvez você esteja imaginando, a invasão acima não foi transmitida pela CNN. Nem poderia. Essa “Guerra do Golfo” foi, afinal, travada em 1856, quando o primeiro-ministro britânico lorde Palmerston mobilizou as tropas inglesas para lutar contra o Exército da Pérsia (atual Irã), que havia invadido a cidade de Herat, na divisa com o Afeganistão.
“As semelhanças desse conflito com a atual Guerra do Iraque são muitas, ainda que tenham mudado as motivações do confronto”, escreveu o historiador inglês Miles Taylor, professor de História Moderna da Universidade de Southampton. Para ele e outros especialistas, a invasão da Pérsia na época é um indício de como o mundo muçulmano já estava vulnerável diante das forças do Ocidente. Já em 1798, sob o comando de Napoleão Bonaparte, os franceses tinham invadido o Egito. Depois foi a vez da Argélia, em 1830. Em pouco tempo, Sudão, Líbia, Marrocos e Tunísia também foram repartidos por países europeus. No início do século 20, o Império Otomano foi ocupado e partilhado entre França e Inglaterra, que estabeleceram protetorados na Síria, no Líbano, na Palestina e no Iraque.
Segundo Karen Armstrong, o Egito é um dos casos emblemáticos de como as potências imperialistas encaravam o que deveria ser a “democracia” no mundo islâmico. Entre 1922 e 1948, houve 17 eleições no país, todas vencidas pelo Partido Populista. Mas em apenas cinco delas os vitoriosos conseguiram governar, já que a Inglaterra intervinha no Egito e derrubava autoridades sempre que o resultado nas urnas não era o desejado. No Irã, a descoberta de jazidas de petróleo fez com que britânicos e americanos se envolvessem diretamente na disputa pelo poder no país. Em 1953, eles apoiaram um golpe militar que depôs o primeiro-ministro Mohammad Mussadeq e instaurou uma ditadura liderada pelo xá Reza Pahlevi. Resultado: depois da “revolução branca” de 1963, que almejava modernizar o país nos moldes ocidentais, a corrupção e a ditadura do xá descontentaram boa parte da população e das elites locais. Em 1978, a oposição se uniu sob a liderança de Ruhollah Khomeini, então exilado na França. Em abril do ano seguinte, ele e os oposicionistas declararam oficialmente que o Irã era uma República Islâmica cuja autoridade suprema é o chefe religioso, o aiatolá. Khomeini ocupou o cargo até sua morte, em 1989, e o regime ainda permanece o mesmo.
Terra prometida
Em meio a tantas histórias de interferência ocidental nos países islâmicos, o conflito que provoca a maior cisão entre o Ocidente judaico-cristão e o Oriente muçulmano vem sendo travado numa pequena porção de terra. Seus protagonistas são árabes e israelenses. Tudo começou na passagem do século 19 para o século 20, com o advento do movimento sionista, que lutava pela fundação de um Estado judeu na Palestina (área onde hoje está Israel). Na época, os judeus foram estimulados a migrar para a região, que então era uma província do Império Otomano administrada pelos britânicos de maioria muçulmana. Em 1922, os judeus representavam apenas 11% da população. Mas logo isso iria mudar.
Como conta o historiador inglês Albert Hourani em Uma História dos Povos Árabes, os britânicos não fizeram muito para conter o movimento, mesmo sabendo que o fluxo migratório judeu terminaria levando ao pedido de um Estado autônomo. Após a Segunda Guerra, as tensões na região aumentaram. “Os britânicos não tinham mais tanta liberdade de ação por causa de suas estreitas relações com os Estados Unidos e sua dependência econômica deles”, escreveu. O governo americano, por sua vez, pressionado por sua enorme e ativa comunidade judaica, inclinava-se a favor da fundação de um Estado controlado pelos judeus – que, a essa altura, já eram quase um terço da população na Palestina. Sob o impacto das recentes revelações do martírio imposto aos judeus pelos nazistas durante a Segunda Guerra, a idéia ganhou legitimidade.
Apesar do protesto dos países árabes, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou, em 1947, um plano prevendo a fundação do Estado judaico. Para boa parte dos muçulmanos, a perda da Palestina se tornou o maior símbolo da humilhação que os países islâmicos passaram nas mãos das potências ocidentais. Os árabes que perderam seus lares com a independência de Israel estavam se transformando, na visão do escritor palestino Edward W. Said, nas “vítimas das vítimas” – se os judeus haviam sido vítimas de nazistas, os palestinos não entendiam por que deveriam arcar com outro sacrifício.
Inconformado, o mundo árabe enviou forças para lutar contra o Exército de Israel. Egípcios, jordanianos, iraquianos, sírios e libaneses atacaram o país em 1948, logo após sua declaração de independência. O saldo da guerra, contudo, beneficiou os vitoriosos judeus: em 1949, cerca de 75% da Palestina foi incluída dentro da fronteira de Israel (pouca gente no Ocidente se mostrou sensível aos 750 mil palestinos que foram exilados). Para piorar a situação, os países árabes atacaram novamente. Foram humilhados pela derrota na Guerra dos Seis Dias, em 1967. O segundo fracasso parecia confirmar a tese de que os muçulmanos não seriam bem sucedidos enquanto não fossem governados segundo as estritas regras da “visão original do Islã”. Esse tipo de ideologia, inspirado em leituras radicais do Alcorão, influenciou grupos como o Talibã (que, na língua pashtun, quer dizer “estudantes”, numa referência ao fato de seus fundadores terem se formado nas madrasahs – escolas islâmicas conservadoras – do Paquistão).
Em 1994, o Talibã assumiu o poder no Afeganistão, determinado a resgatar a “pureza islâmica”. Na prática, o regime reintroduziu castigos como o apedrejamento e a mutilação, impediu as mulheres de atuar profissionalmente e de sair nas ruas sem véus e proibiu toda transmissão de informação que não estivesse de acordo com a ortodoxia religiosa. Mesmo representando o pensamento de uma minoria, eles acertaram em cheio os corações de milhares de muçulmanos com baixa auto-estima – e seguem manchando a imagem da comunidade islâmica, já que tal minoria reúne desde terroristas do grupo Hamas até o líder da temida Al Qaeda, Osama bin Laden.

Impasses do Islã
A escalada da violência e do extremismo religioso tem reforçado no Ocidente o preconceito contra o mundo muçulmano. Enquanto as diferenças entre culturas afloram, as semelhanças perdem força. Poucos cristãos costumam lembrar, por exemplo, que Jesus é um dos grandes profetas do Islã, ao lado de Moisés e Maomé. Ao procurarem citações de violência no Alcorão, muitos se esquecem de que nele há mais citações de Maria que em todo o Novo Testamento – a mãe de Jesus é considerada um exemplo de mulher a ser seguida. Mas a força dessas semelhanças, é claro, não é capaz de concorrer com a terrível imagem de um Boeing 767 se chocando contra uma das torres do World Trade Center.
Para os historiadores, isso não significa, é claro, que aspectos como a discriminação contra a mulher, a violência e a repressão em vários países muçulmanos devam ser relativizados (veja quadro na pág. 32). Significa apenas que boa parte do que ocorrerá nesses países vai depender da forma como o Ocidente irá compreender (ou não) os impasses do mundo muçulmano. A guerra civil no Iraque é um exemplo de como a tentativa ocidental de extinguir a ameaça dos terroristas pode se tornar, no decorrer do caminho, uma verdadeira fábrica de novos homens-bomba, cujo ardor suicida é quase incompreensível para o Ocidente. Mas, como lembra a historiadora Karen Armstrong, quando o império islâmico estava em seu apogeu e os cristãos acuados, no século 11, eram os governantes muçulmanos que não entendiam por que alguns seguidores de Jesus, em vez de guardarem sua fé na intimidade, blasfemavam contra Maomé publicamente mesmo sabendo que isso os condenaria à morte. Hoje, muitos deles são mártires da Igreja, cultuados como santos por milhões de católicos.

Islã global
O mundo muçulmano é bem maior do que o mundo árabe
Diferentemente do que o noticiário faz parecer, os povos de língua árabe representam apenas cerca de 20% dos 1,2 bilhão de muçulmanos do mundo. As comunidades islâmicas mais vastas vivem em países de língua não-árabe, como a Indonésia e o Paquistão.
Fundamentalistas ou totalitários?
As ditaduras islâmicas distorcem a religião em nome do poder
Em um mundo tão politicamente correto, nem sempre é fácil estabelecer o limite entre o que é respeito à diversidade e o que é violação a direitos básicos. O uso do véu pelas muçulmanas é um caso típico: enquanto boa parte do Ocidente o vê como um sinal de atraso e discriminação contra a mulher, muitas muçulmanas se ofendem e argumentam que o pior é a “ditadura da moda ocidental”, que obrigaria as mulheres a seguir um padrão de beleza inatingível. Não é à toa que, na França, muçulmanas têm protestado contra a decisão do governo de impedir o uso do véu em instituições públicas de ensino. Mas em lugares como o Irã o uso do véu não é uma opção. É lei. Em mesquitas, universidades e até mercados de muitos países islâmicos, há espaços demarcados para segregar as mulheres dos homens. Na Arábia Saudita, elas sequer podem dirigir um automóvel – e como o Alcorão surgiu no século 7, quando o camelo era o único meio de transporte da região, é difícil argumentar que haja alguma base religiosa para essa proibição. Toda vez que um grupo religioso toma o poder prometendo resgatar a pureza do Islã, o que se vê em seguida é mais repressão. Foi o que sentiu na pele Shirin Ebadi, ativista pelos direitos humanos no Irã e prêmio Nobel da Paz de 2003. Pouco antes da revolução islâmica no país, em 1979, ela havia se tornado a primeira iraniana a exercer o cargo de juíza, chegando a presidir o tribunal da capital, Teerã. Após chegar ao poder, o aiatolá Khomeini afirmou que a magistratura era “incompatível com o caráter demasiado emocional das mulheres”. Pronto: Shirin Ebadi foi forçada a abandonar o cargo e, desde então, tem se dedicado à luta pelos direitos humanos, investigando a morte de intelectuais perseguidos pelo regime. Ao receber o Nobel, em 2003, Shirin, que é muçulmana, defendeu a separação entre Estado e religião e lembrou que não há nenhuma contradição em defender a democracia e praticar o Islã. Alguns autores, aliás, não utilizam o termo “fundamentalismo islâmico” para denominar os grupos extremistas que instauram ditaduras violentas em alguns desses países. Esse é o caso de Ali Kamel, diretor-executivo de jornalismo da Rede Globo, que está escrevendo um livro sobre o Islã. De acordo com ele, chamá-los de “fundamentalistas” termina enobrecendo esses grupos, como se eles tivessem o propósito de seguir os preceitos fundamentais dos muçulmanos. “Eles estão mais perto de Hitler do que de fanáticos religiosos como Jim Jones”, diz Kamel. “E devem ser chamados pelo nome certo: totalitários do Islã.”
Um dia sob dois véus
Acompanhe a rotina de duas sauditas
Giovana Sanchez
História entrevistou duas muçulmanas da Arábia Saudita sobre seus cotidianos. Ambas respeitam o horário das rezas (que duram de 5 a 8 minutos e não podem ser feitas durante a menstruação nem no pós-parto) e vestem “abaya” (véu que cobre o corpo e parte do rosto). As duas agradecem a Alá por serem as únicas esposas de seus maridos.
Fatma Fahad Al-Dukhain, saudita, 49 anos, casada, sete filhos. Dona-de-casa, cursou o ensino fundamental. Mora em Riad, capital saudita.
5h03 - Salát Fajr (oração da manhã)
7h - Ela prepara e serve o café, com ovos, queijo e pão preto. Depois despacha as crianças para a escola com o motorista.
9h - Hora da faxina, de cozinhar e cuidar dos bichos de estimação (três papagaios, 12 outras aves e coelhos). Alguns dias da semana treina direção. Quer ser a primeira saudita a ter carteira de motorista. “Vai ser em breve.”
11h53 - Salát Dhuhr (oração do meio-dia)
15h - Com a ajuda de uma empregada, Fatma prepara o almoço para os filhos, recém-chegados das escolas. À mesa, carnes ou peixes.
15h44 - Salát Asfr (oração da tarde)
17h - Um motorista leva Fatma à instituição feminina para trabalhos voluntários, ao shopping ou ao cabeleireiro.
18h43 - Salát Maghreb (oração do pôr-do-sol)
19h - O jantar é servido: pratos leves, como sopa de vegetais com carne. A família janta unida. Após a refeição eles conversam, assistem à tevê. Fatma gosta de ler revistas.
20h09 - Salát Isha (oração do anoitecer)
21h - Fatma e o marido recebem, geralmente, amigos e parentes. “Nós temos uma casa grande e gostamos de ter amigos por perto.” Quando está sem companhia, Fatma assiste a filmes árabes na tevê, acompanha o noticiário e às vezes navega na internet, para checar e-mails.
23h - Fatma vai para a cama.
Samar Fatany, saudita, 52 anos, casada, três filhos. Formada em Comunição, publicou dois livros, apresenta um programa de rádio. Vive na cidade de Jeddah.
5h03 - Salát Fajr (oração da manhã)
7h - O desjejum começa com chá, torradas e cereais e termina com café turco (de sabor muito forte). A família de Samar está reunida.
9h - Samar chega à rádio Jeddah. Redige reportagens e apresenta um programa, com entrevistas feitas também por ela.
11h53 - Salát Dhuhr (oração do meio-dia)
15h - Volta para casa. Quem cuida da limpeza é a empregada e, nesse horário, Samar geralmente aproveita para terminar alguma atividade da rádio e checar e-mails enquanto os filhos não chegam – dois meninos estão na faculdade e uma menina termina o ensino fundamental.
15h44 - Salát Asfr (oração da tarde)
16h30 - O almoço feito pela cozinheira é servido: frango ou carnes grelhadas, saladas e frutas.
17h30 - Todos repousam durante uma hora.
18h43 - Salát Maghreb (oração do pôr-do-sol)
20h - O marido de Samar chega do trabalho. O jantar é substituído por um lanche (chá com biscoitos e torradas). Todo o clã se encontra. Depois, os filhos vão encontrar os amigos e Samar assiste a filmes e programas árabes na tevê.]
20h09 - Salát Isha (oração do anoitecer)
23h - Antes de dormir, Samar lê jornais e revistas. Nos fins de semana (quinta e sexta, na Arábia Saudita) vai a restaurantes e visita amigos.
Sexo no Islã
De acordo com o Alcorão, o sexo só é permitido dentro do casamento. E o assunto é tratado com receio em comunidades tradicionais e religiosas. Mas uma mulher quebrou o gelo: após concluir seu doutorado em Sexualidade na Universidade do Cairo, no Egito, a médica Heba Kotb, 39 anos, tornou-se apresentadora de um programa sobre o tema na televisão. Duas vezes por semana, ela fala abertamente sobre masturbação, noite de núpcias, métodos contraceptivos etc.
Para ela, o sexo é um presente de Alá para a humanidade. Para aproveitá-lo, é necessário que as pessoas consigam controlar seu comportamento de acordo com a ética social e pessoal. E que se livrem do medo, da vergonha e da culpa. “As mulheres sofrem mais com os problemas sexuais. A maioria não está satisfeita e não sabe como expressar seu desagrado”, explica a doutora, que atende cerca de 20 pacientes por dia em seu consultório no Cairo.

Saiba mais
Livros
Uma História dos Povos Árabes, Albert Hourani, Companhia das Letras, 1994
Vasto e elegante panorama sobre o mundo árabe, de antes de Maomé até os conflitos mais recentes.
O Islã, Karen Armstrong, Objetiva, 2001
Resumo da história do islamismo, revela como os movimentos extremistas surgiram em reação ao domínio colonial do Ocidente.
O Que Deu Errado no Oriente Médio?, Bernard Lewis, Jorge Zahar, 2002
O polêmico historiador vai em busca das causas da decadência do poder do mundo islâmico diante da emergência das potências européias.

Revista Aventuras na História

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