segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Dá para ser feliz no trabalho?


Dá para ser feliz no trabalho?
O espaço que o trabalho deve ocupar na vida de uma pessoa.
por Texto Carla Aranha
O trabalho já era. Não acabou, mas virou outra coisa. Trinta ou 40 anos atrás, ele era só um ganha-pão. Hoje, virou um meio para obter sucesso e auto- realização. O problema é que quase nunca isso acontece... Alarmados com o estresse e a frustração de profissionais de todas as áreas, filósofos e cientistas tentam resolver a inquietação: o que esperar do trabalho neste século?
O batente mudou para o bem e para o mal. Tipo de emprego? Escolha o seu: nunca houve tantas profissões – mas nunca houve tão poucas vagas. Estabilidade? Esquece: a regra é ter dezenas de empregos ao longo da vida – por opção sua ou por falta de opção melhor. Carteira assinada? Uma peça de museu: você não precisa mais pagar 145 dias por ano de impostos ao governo – mas ninguém garante suas férias, seu 13o salário e sua aposentadoria. Bater cartão? Desencana: trabalhe de casa ou do seu laptop em qualquer canto do mundo – mas quantas horas você vai ter de trabalhar... ah, aí é problema seu.
Filósofos, sociólogos, economistas e psicólogos tentam entender o espaço que o trabalho deve ocupar na vida de uma pessoa. Dá para ser feliz e ter prazer com ele? Ou só nos resta tapar o nariz e engolir, como um remédio amargo para pagar o aluguel no fim do mês? Esta reportagem busca pistas para resolver esse dilema.
Dilema que, aliás, nem existia há poucas décadas, quando a resposta sobre a função do trabalho era muito simples: um mal necessário e pronto, assunto encerrado. Não se pensava muito sobre o assunto porque havia poucas decisões a tomar. A pessoa começava a carreira em uma empresa, especializava-se em alguma função, geralmente manual, e aposentava-se na mesma companhia – quase sempre, com um salário mais alto, turbinado por gratificações por tempo de serviço. Há 30 ou 40 anos, a esperança de um pai de família brasileiro era fazer carreira na administração pública, empregar-se em uma boa metalúrgica ou tornar-se bancário. Juntas, essas categorias absorviam mais de 80% da população, de acordo com o Ministério do Trabalho. Ok, mergulhar na burocracia estatal, apertar parafusos ou fazer compensação de cheques podia não ser a coisa mais emocionante do mundo. Mas esse tipo de emprego era seguro e pagava bem: a classe média brasileira nasceu e cresceu em torno deles.
O raciocínio era bem parecido para as profissões ditas “intelectuais”, que exigiam curso superior. Nesse caso, a escolha costumava ser pautada muito mais pela influência da família do que por uma inclinação genuína. Era comum o filho ter a mesma profissão do pai e pegar carona nos negócios do velho. De certa forma, essa tendência ainda persiste. Segundo o IBGE, 70% de quem faz faculdade no Brasil escolhe cursos tradicionais como medicina, engenharia, direito e administração de empresas. Não é por falta de alternativas. O Ministério do Trabalho registra hoje no Brasil nada menos do que 2 422 ocupações – algumas incluídas recentemente, como webdesigner, vitrinista e produtor cultural. Não ficam de fora nem aquelas de que quase ninguém ouviu falar, como surfassagista – o profissional que fabrica lentes de grau – e drogador, especialista em calcular dosagens para produtos químicos.
Vamos olhar a coisa pelo lado bom: hoje, é virtualmente impossível não encontrar uma profissão que o faça feliz. O difícil é cavar uma vaguinha em muitas delas. Um estudo recente feito pelo instituto de pesquisa Observatório Universitário revelou que 53% dos formados no país trabalham em setores que não têm nada a ver com o curso que fizeram na faculdade. Em geografia, apenas 1% dos formados atuam na área depois de ganhar o canudo. Em ciências econômicas, 9,1%; em biologia, 9,8%. Para piorar, os tradicionais “planos B” para quando as coisas dão errado na faculdade já não são tão atraentes. O enxugamento do Estado e as privatizações fizeram minguar a opção pelo serviço público. “Atualmente, o setor estatal responde por apenas 11,3% dos postos de trabalho no Brasil, uma das menores taxas do mundo”, diz o economista Eneuton Dornellas Pessoa de Carvalho Filho, da Universidade Federal do Maranhão. E a revolução tecnológica a partir do final dos anos 70 ceifou milhões de empregos, colocando computadores ou robôs em bancos, montadoras de automóveis e em qualquer outro lugar onde antes era preciso ter um operário para apertar cada botãozinho de máquina.
Trabalhar para ter
Essa multidão teve de ir para algum lugar. Foram basicamente dois os destinos principais. O primeiro foi mesmo o olho da rua: o desemprego zero dos anos 70 deu lugar a taxas altas, em torno de 10%. O segundo foi o setor de serviços, que hoje responde por metade da força de trabalho no país – em geral, um contingente sem garantia de estabilidade, plano de carreira ou os bons salários da época de ouro do pleno emprego. E aqui voltamos ao debate sobre trabalho e felicidade. Em um cenário sinistro como esse, não parece mais realista dar-se por contente em ter um emprego e receber um salário no fim do mês? Cada vez mais estudiosos defendem essa idéia, apoiados na constatação de que hoje o trabalho parece estar proporcionando tudo, menos prazer.
Prova disso são os altos índices de estafa relacionados à vida profissional. Na França, 75% da população economicamente ativa sofre de estresse causado por questões relacionadas ao emprego – no Brasil, são 70%. Dados da Organização Mundial da Saúde apontam que 30% dos trabalhadores do planeta apresentam transtornos da ansiedade, estresse ou depressão. Uma pesquisa recente do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostra que hoje 50% dos brasileiros desempenham mais de uma atividade ou fazem horas extras para compensar os baixos salários. Entre os executivos, também é normal trabalhar mais de 10 ou 12 horas por dia. “O resultado é um quadro de doenças cardiovasculares, diabetes, hipertensão e outros distúrbios”, diz o médico Gilberto Ururahy, que em 2007 fez um estudo para a revista Exame sobre a saúde dos executivos brasileiros. Mas de longe o sintoma físico mais bizarro é o chamado karoshi, nome que os japoneses dão à morte por excesso de batente. No ano passado, 147 japoneses tiveram paradas cardíacas e acidentes vasculares cerebrais por sobrecarga de trabalho, um recorde desde que o problema entrou para as estatísticas oficiais, em 1992.
Engana-se quem pensa que o problema é apenas pouco dinheiro no bolso. O filósofo francês Gilles Lipovetsky sustenta no livro A Sociedade da Decepção que mesmo quem tem um emprego com um holerite polpudo está desiludido com o trabalho. Uma pesquisa da consultoria canadense de recursos humanos BBM com profissionais em nível médio de carreira mostra que 70% estão infelizes com a fonte de seu ganha-pão e foie gras. Para Lipovetsky, isso acontece porque as pessoas, além de sofrerem com a pressão crescente por bons resultados, geralmente não são reconhecidas pelo que fazem. Como esperar ser feliz em um ambiente que parece jogar o tempo todo contra a satisfação pessoal?
Resposta: ficando o mínimo possível no trabalho. Feroz crítica da idéia de que a profissão deva ser uma fonte de prazer, a publicitária alemã Judith Mair fez sucesso com o livro Chega de Oba-Oba! ao sugerir um manual para resolver o tormento de passar horas e horas no escritório. As dicas dela: gaste apenas 5 minutos com assuntos particulares, jamais atenda o celular, evite fazer amigos. O conceito básico por trás das regrinhas é não perder tempo trabalhando demais. Faça apenas o suficiente e vá embora para casa, que é onde mora sua felicidade. “É um absurdo apregoar o trabalho como substituto da casa e da família, que promete auto-realização e prazer. Antes de tudo, trabalho é apenas trabalho”, diz ela. O psicólogo Pedro Bendassolli, estudioso da relação trabalho e identidade da FGV de São Paulo, também defende que é irreal encarar a profissão como sinônimo de realização pessoal. Seu argumento é simples: alguém que é empregado de uma empresa não é dono do próprio trabalho, que depende da vontade e dos rumos da companhia. “Para ser prazerosa, a atividade tem de estar sob controle do próprio indivíduo. Não pode depender tanto de fontes externas de reconhecimento, como acontece com a maioria dos empregos”, afirma.
Trabalhar para ser
Metas inatingíveis, cronogramas apertados e um sistema de recompensa que nem sempre é justo. A loucura é que, em meio a esse caos, às vezes a gente se percebe sendo feliz no trabalho. Essa tendência masoquista de sentir prazer em pleno inferno só pode ter um explicação muito arraigada no ser humano. E tem. A verdade é que o homem só é homem por causa do trabalho. A antropologia ensina que, graças às atividades coletivas, o Homo sapiens adquiriu as características que o diferenciam dos demais primatas – capacidade de raciocínio, consciência e linguagem desenvolvida. O pai da psicanálise, Sigmund Freud, também aponta o trabalho como o cerne da civilização, que teria nascido quando o homem deixou de direcionar seu impulso sexual apenas para a necessidade de transar e passou a usar a força da libido no trabalho criativo.
Para muitos especialistas, essa é a questão central na discussão: para além de garantir a sobrevivência, o trabalho é essencial porque nos ajuda a definir quem somos. “Exercer uma atividade profissional faz parte do nosso desenvolvimento pessoal e não pode ser visto apenas como um meio de sobrevivência”, afirma a psicóloga Estelle Morin, da Universidade de Montreal, que há duas décadas estuda o sentido do trabalho. Ela faz parte do time que acredita que o trabalho pode ser, sim, uma fonte de satisfação. A idéia é que a trajetória no mundo do trabalho é uma jornada à procura da identidade, em que ser feliz deve ser regra, e não exceção. Claro que a satisfação não vem de graça. Para Estelle, a condição número 1 é fazer o que gosta. Não dá para ser feliz, diz ela, sem ser fiel à própria natureza. Isso não quer dizer que não se deva analisar os prós e contras de uma profissão, mas que não adianta se forçar a ser matemático se você nasceu para jardineiro. Aí, não tem contracheque que dê jeito na frustração.
Mas imaginemos que você já tenha um emprego que não odeia. Beleza, falta só ficar em paz com o resto do mundo. Nessa hora é que contam os fatores externos – para Estelle Morin, a condição número 2 da felicidade no trabalho. Ficar em um lugar em que predominem a confiança e a cooperação entre os colegas. Ter um chefe democrático, competente e com quem se possa contar. Conseguir autonomia, receber reconhecimento e não precisar se matar para manter o emprego. Não por acaso, a construção de um ambiente alegre virou uma política obsessiva de muitas empresas, da qual o Google é o exemplo mais gritante. A caixinha de bondades da companhia inclui a possibilidade de dedicar 20% do tempo de trabalho às próprias pesquisas, a chance de levar o animal de estimação para o escritório e uma viagem anual para um resort. Como tudo isso depende da empresa em que você trabalha, Estelle diz que é obrigação dos empregadores oferecer um ambiente que dê vontade de ir trabalhar na segunda-feira.
Trabalhar, ser e ter
Vamos combinar que as coisas não saem sempre bonitas assim. Não precisa se sentir mal se o seu emprego não é uma grande fonte de felicidade (às vezes, o meu também não é – como agora, à 1 da manhã, escrevendo este texto...). É aqui que entra um dos poucos pontos em que os defensores do “trabalho-remédio” e do “trabalho-prazer” concordam: ter expectativas demais em relação à satisfação que o batente pode proporcionar é rota certa para a decepção. “Eleger o sucesso profissional como algo acima da vida pessoal é uma distorção”, diz a psicoterapeuta Teresa Negreiros, da PUC-Rio. É natural se preocupar com o trabalho e ficar feliz se tudo vai bem. Mas querer ser o rei da cocada preta a qualquer custo é outra história, que não combina com alegria e felicidade.
Encaremos os fatos: não é nada realista esperar ser feliz o tempo todo. Não existe trabalho perfeito, qualquer um vai ter suas encheções: clientes chatos, colegas fofoqueiros, chefes autoritários, e por aí vai. Além do dinheiro, um trabalho pode fornecer uma série de outras coisas essenciais para a vida: exercício mental e físico, contato social, desafios, reconhecimento e uma idéia mais clara da identidade. O ideal é que as vantagens sempre superem os problemas. Se esse não for o caso do seu emprego atual, a boa notícia é que dá para procurar em outro lugar.

Dança das cadeiras
Da Antiguidade à globalização, uma breve história da labuta
GRÉCIA ANTIGA
Apenas os escravos pegavam no batente. Para os gregos, a política e a filosofia vinham em primeiro lugar. Nenhum cidadão pensaria em cerzir, moldar metais ou cuidar da casa. Esses eram serviços feitos pelos serviçais, gente de segundo escalão.
IDADE MÉDIA
Somente aos servos cabia arar a terra, extrair dela bens agrícolas, fabricar as armas usadas nas guerras e tudo o mais que se relacionasse à sobrevivência da sociedade. Os senhores feudais, a nobreza e os membros do clero usufruíam dos frutos desse trabalho.
RENASCIMENTO
A partir do século 15, o trabalho passou a ser visto como forma de auto-expressão. Tudo o que fosse feito por mãos humanas tinha seu valor reconhecido. A arte passa a ser encarada como profissão, patrocinada por ricos e pela Igreja.
REVOLUÇÃO INDUSTRIAL
No século 18, cada vez mais gente passa a trabalhar coletivamente, em indústrias, em brutais jornadas de até 16 horas por dia pelos menores salários possíveis. Por serem mais baratas, mulheres e crianças compõem boa parte da força de trabalho da época.
REVOLUÇÃO BURGUESA
Em 1789, a Revolução Francesa liberta a burguesia das amarras da monarquia e abre espaço para a livre iniciativa. Comerciantes, profissionais liberais, banqueiros, industriais e funcionários públicos formariam o embrião do que no século 20 se tornaria a classe média.
GLOBALIZAÇÃO
A microeletrônica, a robótica, a informática e novos processos de gestão transformam o panorama das relações de trabalho no final do século 20. O desemprego cresce e as garantias trabalhistas são flexibilizadas. Época de transição e de incertezas.

Para saber mais
Trabalho e Identidade em Tempos Sombrios
Pedro Fernando Bendassoli, Idéias e Letras, 2007.
A Sociedade da Decepção
Gilles Lipovetsky, Manole, 2007.
Cuidado, Trabalho! Perversões e Contradições da Vida na Selva Corporativa
Thomaz Wood, Saraiva, 2007.
Revista Superinteressante

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