quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Argentina, 25 anos contra a impunidade


No último terço do século XX, os direitos humanos se converteram, na Argentina, em um poderoso movimento social no qual confluíram, entre outros atores decisivos, as associações de familiares de presos políticos, assassinados e desaparecidos, além de outras organizações não-governamentais

por Rodolfo Mattarollo

Atualmente, a Argentina assiste ao auge de um processo de luta contra a impunidade1 dos crimes cometidos pela mais sangrenta ditadura militar de sua história (1976-1983). A sociedade argentina chegou a esse momento depois de percorrer um longo caminho, repleto de avanços e retrocessos e que, em muitos trechos, foi similar a uma travessia no deserto para o movimento de direitos humanos.

Durante o último terço do século XX e nos primeiros anos do XXI, a luta contra a impunidade na Argentina se desenvolveu em uma espiral que, apesar dos percalços, foi definitivamente ascendente.

Assim, se o século XVIII foi o das revoluções políticas liberais em busca da liberdade, e o século XIX o das déias socialistas pela igualdade, o século XX foi o dos direitos humanos que tentam unir liberdade e igualdade. E não se pode falar em direitos humanos sem assumir sua dimensão civilizatória.

Movimento social poderoso

No último terço do século XX, os direitos humanos se converteram, na Argentina, em um poderoso movimento social no qual confluíram, entre outros atores decisivos, as associações de familiares de presos políticos, assassinados e desaparecidos, além de outras organizações não-governamentais. Houve também o crescimento do jornalismo investigativo, assim como o aumento do número de juízes e advogados com um pensamento e uma prática avançados e profundamente inovadores.

Uma questão-chave para o sucesso desse enfrentamento foi a superação de estilos de luta tradicionais, como declarações e cartas públicas – sem, claro, negar o valor desses instrumentos. Assim, frente a uma ditadura militar terrorista, as Madres de Plaza de Mayo intuíram que era imperioso e inevitável ganhar as ruas. Pagaram um alto preço por isso. Tiveram que se autoinventar, e o pano branco na cabeça – que em sua origem era usado para poderem se reconhecer – converteu-se em símbolo universal. Os exilados argentinos, por sua vez, descobriram a estranha geografia política do mundo nos anos 1970, uma paradoxal inversão de alianças, com o surgimento da “doutrina Carter” dos direitos humanos.2

Assim, o movimento de direitos humanos argentino compreende um conjunto de organizações chamadas “históricas” – forjadas durante a luta contra a ditadura, embora algumas existissem anteriormente –, e as que vieram depois, sejam aquelas relacionadas a sequelas desse período, sejam as que tratam de novos problemas da transição democrática, ou ainda de velhas questões que ressurgem: o “gatilho fácil” policial, a ausência de garantias judiciais, os altos índices de desemprego e marginalidade etc.

A coordenação entre esses organismos é pontual e nunca completa. No entanto, uma característica comum é sua obstinação, manifestada na continuidade das ações e no exercício permanente da imaginação a serviço da ação política. Outra particularidade é a paciência: algo que deve ser sublinhado é que nunca recorreram à violência nestes lentos, e por momentos amargos, 25 anos de governos constitucionais.

No movimento de direitos humanos não houve planificação, mas uma clara vontade de lutar sem concessões contra a impunidade; uma acentuada radicalização em palavras de ordem aparentemente ingênuas, mas com consistência política: “Aparição com vida e castigo aos culpados”, por exemplo. Palavras de ordem que interpelaram o poder de uma maneira que podia parecer adiantada para a época.

Em longo prazo, o Estado precisou pedir perdão às vítimas e à sociedade. Isso ocorreu com estoro Aylwin, o primeiro presidente do Chile depois da ditadura, assim como com estor Kirchner na Argentina durante seu mandato (2003-2007). E embora com maior demora, o presidente francês Jacques Chirac pediu perdão pela deportação dos judeus sob a ocupação nazista em seu país.

Raúl Alfonsín, o primeiro mandatário após a derrota da ditadura militar na Argentina, fez da democracia constitucional e dos direitos humanos um dos pilares de seu discurso. A política alfonsinista combinava audácia – a ofensiva contra a impunidade – com segurança, como o processo contra as cúpulas das organizações guerrilheiras. Esta estratégia foi possível, antes de tudo, pela vergonhosa derrota das forças armadas argentinas na guerra das Malvinas, aventura irresponsável com um elevadíssimo custo humano que, além do mais, fez com que o país perdesse suas posições no Atlântico Sul.

A “Teoria dos dois demônios”

A democracia foi inaugurada, então, com um fato histórico sem precedentes, a criação da Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas (Conadep), que culminaria no processo aos integrantes das três primeiras juntas militares. Nunca havia ocorrido no país um julgamento penal, contra os mais altos responsáveis do Estado, por crimes que constituíam violações de direitos humanos.

Apesar da “teoria dos dois demônios” – segundo a qual o terror de Estado seria simétrico ao das organizações guerrilheiras: a “violência de baixo” gera a resposta da “violência de cima”3 – que, de certo modo, foi demolida pelo julgamento, esse processo permanecerá como um marco histórico sem o qual nenhum dos avanços posteriores teria sido possível.

A “teoria dos dois demônios” como explicação do drama argentino predominou como discurso oficial, midiático e acadêmico, durante os primeiros anos da restauração da ordem constitucional. Sua expressão paradigmática pode se encontrar justamente no prólogo do informe “Nunca más” da Conadep. Tentou-se ali apresentar a “violência vinda de baixo”, da guerrilha, como causa da violência “de cima”, das forças armadas e da polícia.

Emilio Fermín Mignone e Augusto Conte McDonnell, fundadores do Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), já tinham colocado em evidência a falácia desse enfoque, em 1981.4

A “teoria dos dois demônios” ficou latente ao longo dos 25 anos de democracia e ressurgiu nos momentos de intensificação da luta contra a impunidade, como ocorre atualmente, o que em parte é resultado de um debate pendente e nunca encarado com o objetivo de esclarecer, individual e coletivamente, o papel da violência na história recente.

A pretendida legitimidade da ação militar das forças armadas argentinas numa guerra “não convencional”, principal argumento da defesa dos ex-comandantes para justificar desaparições forçadas, torturas e execuções sumárias, foi refutada pela sentença da Câmara Nacional de Apelações no Criminal e Correcional Federal de Buenos Aires durante o histórico julgamento de Videla, Massera e outros (causa 13/84). No julgamento foi dito: “Não se encontrou uma só regra que justifique ou, embora mais não seja, exculpe os autores de fatos como os que são matéria deste julgamento. Os fatos que se julgaram são antijurídicos nas normas da cultura. Não são um meio justo para um fim justo. Contradizem princípios éticos e religiosos”5.

Os julgamentos pendentes ou em execução são temidos pelos nostálgicos da ditadura militar, que tentaram múltiplas estratégias para impedi-los, não só pela ameaça que representam para a liberdade dos algozes, mas porque contribuem para a elaboração de uma nova visão de mundo e da realidade nacional, um novo sentido comum no seio de vastas camadas sociais.

O julgamento cumpre, antes de tudo, uma função pedagógica, como já tinha revelado o processo aos integrantes das três primeiras juntas militares, em 1985, e como em seu momento, a partir de 1945, mostraram o Tribunal de Nuremberg e os julgamentos por crimes de direito internacional.

Na verdade, a tentativa de justificar o terrorismo de Estado encontra sua resposta mais rigorosa nos fatos estabelecidos mediante os procedimentos racionais do processo legal, que só pode atribuir responsabilidades penais “acima de toda a dúvida razoável”, segundo as regras da lógica que se apresentam no debate gerado pelo julgamento.

Por isso, é profunda a relação entre a busca da verdade, da justiça, dos trabalhos da memória e da construção de instituições republicanas e democráticas próprias do Estado de direito.

Em referência ao negacionismo dos crimes cometidos pelos nazistas a partir do Estado, Hannah Arendt escreveu que certos fatos “possuem uma força em si mesmos: não importa o que inventem aqueles que exercem o poder, são incapazes de descobrir ou criar um substituto viável; os fatos se sustentam por sua própria obstinação”. O genocídio, os massacres, “transcendem todo o acordo, pleito, opinião ou consentimento”6. Arendt destrói, assim, os argumentos dos negacionistas, que tentam recusar ou refazer um passado incômodo por sua cumplicidade ou simpatia com o terrorismo de Estado.

Reforma constitucional

O movimento de direitos humanos argentino reafirmou sua própria dinâmica, apesar das leis de Ponto Final e de Obediência Devida7, de Raúl Alfonsín (1983-1989), e dos indultos decretados posteriormente por Carlos Menem (1989-1999). A imaginação político-jurídica e a pressão social abriram caminho aos julgamentos da verdade8, que continuariam minando o muro da impunidade.

Essa luta tem na Argentina tal poder de convocatória, que os nostálgicos da ditadura militar não podem enfrentar abertamente o trabalho da Justiça. A prova é que quando a década do ex-presidente Carlos Menem chegava à metade, com sua política de perdão e esquecimento, na sociedade se legitimavam os direitos humanos como uma dimensão ética essencial do Estado. Isso chegou à sua consagração na Reforma Constitucional de 1994.

A partir de 2004, o governo de estor Kirchner instaurou uma política de direitos humanos que provocou surpresas em todos os atores. Também incompreensões, que duram até hoje, no próprio campo que persegue a verdade e a justiça. A primeira reação de estranhamento foi em abril daquele ano: as manifestações por assuntos de segurança cidadã traziam um forte questionamento às prioridades das políticas públicas do governo nacional. Em seguida, houve uma estratégia de resistência, na qual se combinaram os males evocados pelo acordo da Corte Suprema de Justiça da Nação9: lentidão das atuações e excesso de recursos das partes, entre outros.

Um salto qualitativo

Setores comprometidos na luta contra a impunidade se mostraram muito críticos em relação ao lento avanço dos julgamentos, sem levar em conta que a política de direitos humanos enfrenta múltiplas e fortes resistências, abertas e encobertas, cuja expressão máxima foi a trágica desaparição de Jorge Julio López, testemunha-chave no processo contra o policial Miguel Osvaldo Etchecolatz.

Era preciso então dar nova legitimidade às instituições e, para isso, não bastava propor ao Congresso a anulação das leis de Ponto Final e Obediência Devida e acabar com a “anistia camuflada”. Claro, essa movimentação devolveria à República um lugar entre as nações respeitadoras do direito, que condenam todos os genocídios, desde o primeiro do século passado, o armênio, até o Holocausto e outros crimes de lesa-humanidade perpetrados a partir da Segunda Guerra Mundial. Mas para restabelecer as bases éticas do Estado foi preciso submeter a julgamento os integrantes da “maioria automática”, que desprestigiaram totalmente o mais alto tribunal do país, vários dos quais renunciaram para evitar as consequências do impeachment.10

Teve até que ir mais longe nessa tarefa de refundação: Néstor Kirchner tomou a decisão de renovar a cúpula das forças armadas, da área de segurança e da polícia, como condição necessária a um profundo processo de mudança institucional no sentido republicano e democrático.

A reação dos nostálgicos

Todo esse vaivém conduz ao lugar em que se encontra a Argentina, em matéria de direitos humanos, depois de 25 agitados anos de democracia constitucional. A iniciativa maior, que constitui a instalação do Espaço para a Memória e a Promoção dos Direitos Humanos no lugar onde funcionou o centro clandestino de detenção mais emblemático nacional e internacionalmente, a Esma, deve terminar definitivamente com a falácia dos “dois demônios”.

Foi precisamente a transformação qualitativa das instituições, mediante políticas públicas de luta contra a impunidade, pela memória, a verdade, a justiça e a reparação, que provocou a reação dos nostálgicos do terrorismo de Estado, com atos públicos que se aproximam à apologia do delito e uma campanha de ameaças a testemunhas, familiares, juízes, fiscais, advogados, funcionários e vítimas da repressão ilegal.

Nesse ínterim, a Secretaria de Direitos Humanos se apresentou como querelante em cerca de 60 causas penais por crimes de lesa-humanidade, e continuará fazendo isso. Ao mesmo tempo, a decisão das queixas particulares parece não mudar, assim como a das associações que têm importante participação nos julgamentos.

Mas, antes de tudo, na luta contra a impunidade a decisão do Estado deve ser inflexível. Isso foi expresso claramente, tanto pelo ex-presidente Néstor Kirchner quanto pela atual presidenta, Cristina Fernández de Kirchner. Do mesmo modo, parece que nada fará renunciar os vastos setores sociais que reclamam justiça e aparecem como ecos do grito “Nunca más” de uma sociedade majoritariamente disposta a olhar de frente seu terrível passado, requisito indispensável para enfrentar o grande desafio do presente: edificar um futuro mais justo e mais humano para todos.

Esse artigo foi cedido pela edição argentina de Le Monde Diplomatique.
Rodolfo Mattarollo é jurista e consultor permanente da Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Argentina.


1 Por impunidade se entende, no direito internacional, a falta de prevenção, investigação, julgamento, castigo e reparação de graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário.
2 “Doutrina Carter”, assim se conhece a intenção de colocar os direitos humanos como elemento central da política exterior dos Estados Unidos. Foi expressa de maneira declarada e com medidas concretas. como a suspensão da cooperação militar com regimes ditatoriais.
3 Le Monde diplomatique, edição Cono Sur, Buenos Aires, janeiro de 2006.Rodolfo Mattarollo, “En Stalingrado todos tenían frío…”,
4 Emilio F. Mignone e Augusto Conte McDonnell, “Estrategia represiva de la dictadura militar”, Editorial Colihue, Buenos Aires, 2006.
5 “El Libro de El Diario del Juicio”, Ed. Perfil, Buenos Aires, 1985.
6 Citado em Beatriz Manz, “Importancia del contexto en la memoria”, em “De la Memoria a la Reconstrucción Histórica”, Asociación para el Avance de las Ciencias Sociales en Guatemala, Guatemala, 1999.
7 Essas leis de anistia encobertas, promovidas por Alfonsín depois de dois levantes militares, tentavam acabar com os julgamentos, limitando o castigo penal aos membros das juntas militares já condenados; ficavam fora do alcance dessas leis a apropriação de crianças e os delitos contra a propriedade.
8 Julgamentos sem pretensão penal, nos quais o juiz procura estabelecer a verdade do ocorrido com a vítima de uma desaparição forçada. São resultado de um acordo amistoso perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso Carmen Aguiar de Lapacó, em 1999.
9 Acordo nº 42/08 de 29/12/08 que cria, no âmbito da Corte Suprema de Justiça da Nação, uma Unidade de Superintendência para delitos de lesa-humanidade. Esta tem por função o destaque das causas em trâmite, com faculdades para requerer informação relacionada com o avanço dos processos e com as dificuldades operativas que possam atrasar a realização dos julgamentos num tempo razoável.
10 Tal foi o caso do ex-presidente da Corte Suprema de Justiça, Julio Nazareno.

Le Monde Diplomatique Brasil

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