quinta-feira, 14 de outubro de 2010



A verdade olímpica: como surgiram os jogos na Grécia antiga

Por mais de mil anos, os gregos disputaram competições esportivas que inspiraram as Olimpíadas modernas como forma de se manterem alerta e preparados para as guerras

por Antonio Neto

Em 776 a.C., após deixar para trás seis adversários, o grego Corobeu venceu a única prova daquela que ficaria conhecida como a primeira edição dos Jogos Olímpicos. Diferentemente do que se imagina, não foi uma corrida de longa distância: o cidadão da cidade de Elis percorreu apenas os 192 metros de extensão do estádio de Olímpia, na península do Peloponeso. A idéia de que a maratona foi o primeiro esporte olímpico, portanto, não passa de um mito.

Segundo esse mito, em 490 a.C., durante o período de guerras entre gregos e persas, um corredor chamado Fidípides teria atravessado quase 100 quilômetros entre Atenas e Esparta para buscar ajuda. Outra versão conta que um homem chamado Eucles percorreu a distância entre Atenas e acidade de Maratona para participar da batalha. Com a vitória dos gregos, ele retornou a Atenas para dar a notícia, um esforço de 40 quilômetros entre ida e volta que teria custado sua vida.

Nigel Spivey, professor de Artes Clássicas e Arqueologia na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e autor de The Ancient Olympics (“As Olimpíadas antigas”, inédito em português), afirma que o equívoco pode ser esclarecido ao se analisar a formação social da Grécia antiga. “Isso que chamamos de corrida de longa distância nunca tinha sido considerado esporte, tendo em vista que o trabalho de levar mensagens entre as cidades era função de servos e escravos.”

Na democracia grega, apenas homens livres eram considerados cidadãos. Entre seus direitos estavam as decisões políticas e a participação no exército. Essa natureza bélica, enraizada na própria mitologia, também se relaciona com a atenção dada ao corpo. A prática constante de atividades físicas era a responsável por mantê-los preparados para as guerras – e acabou dando origem às Olimpíadas. As cidades-estados só alcançavam esse status se oferecessem para a população um local para a prática de esportes – o estádio. A partir do século 8 a.C., a Grécia estabeleceu um calendário de competições para motivar seus “atletas”.

A primazia de Olímpia sobre as demais cidades gregas na organização dos jogos está fundamentada na mitologia. Filho de Zeus, o herói Hércules teria inaugurado os Jogos Olímpicos como forma de comemorar o sucesso de um de seus 12 trabalhos: a limpeza dos estábulos de Audias, rei de Elis. Concretamente, sabe-se que essa lenda foi representada em Olímpia pelo escultor Fídias, que, em 440 a.C., foi o responsável pela construção do mais importante templo em homenagem a Zeus, que se transformou numa das Sete Maravilhas do mundo antigo. A estátua fez com que a cidade se tornasse o principal ponto de encontro dos festivais religiosos. E a proximidade do estádio fez com que Olímpia se destacasse como palco dos esportes.

Por mais de 40 anos, a participação foi restrita a atletas da região. Mas, entre 732 a.C. e 696 a.C., a lista de vitoriosos passou a incluir cidadãos de Atenas e Esparta. E, a partir do século 6 a.C., os jogos passaram a receber inscrições de qualquer homem que falasse grego, fosse ele da Itália, do Egito ou da Ásia. “Participar de torneios como aqueles não era, de fato, apenas competir”, afirma Nigel Spivey. “Os atletas dirigiam-se para as Olimpíadas antigas com o interesse de ganhar e ser reconhecidos como os melhores.”

Ao longo dos anos, diversas cidades-estados passaram a realizar suas próprias disputas, que também carregavam um forte viés religioso. Como forma de homenagear a deusa Atena, os chamados Jogos Panatenáicos foram instituídos em Atenas em 566 a.C., mas acabaram ofuscados por outros torneios. Esse novo circuito de competições, conhecido como Jogos Sagrados, era sediado em Olímpia e Delfos – a cada quatro anos – e em Corinto e Nemea – a cada dois anos.

Bigas e sangue

Embora a primeira Olimpíada tenha acolhido apenas uma disputa, novas categorias foram incluídas ao longo dos mais de mil anos do evento como forma de disputa política e militar. As corridas de biga, inicialmente com quatro cavalos, inauguraram um novo espaço de competições, o hipódromo, em 680 a.C., data da 25ª edição dos jogos. Diversos personagens históricos protagonizaram embates nessa modalidade. O político Alcibíades, amigo e entusiasta de Sócrates, participou da corrida de 416 a.C. com nada menos que sete bigas. Segundo o historiador Tucídides, conquistou o primeiro, o segundo e o quarto lugares. Em 67 d.C., já sob o domínio romano, os gregos assistiram ao imperador Nero ser coroado vencedor mesmo sem ter cruzado a linha de chegada com sua biga puxada por dez cavalos.

Embates corporais também fizeram parte do calendário olímpico da Antiguidade. Uma das modalidades, conhecida hoje como luta greco-romana, já fazia parte do treinamento físico dos jovens da Grécia desde o século 10 a.C. Os primeiros vestígios da inclusão dessa luta numa Olimpíada datam de 400 anos depois: foram encontrados em fragmentos de uma placa de bronze. Para vencer a luta, não havia contagem de tempo. As categorias eram divididas por idade. Era preciso jogar o oponente ao chão pelo menos três vezes – sem quebrar os dedos do adversário.

O boxe também foi disputado. Um busto representando um lutador de 330 a.C. dá conta da violência da modalidade – há inúmeras cicatrizes na imagem de bronze. Não havia luvas, rounds ou regras claras para aliviar o sofrimento dos competidores. O orador João Crisóstomo registrou em dois discursos que um tal Melancomas, morador de Cária (localizada na costa da Ásia Menor), teria sido o maior pugilista do primeiro século da era cristã.

A luta mais cruel da competição, porém, foi introduzida no calendário cerca de 100 anos depois da primeira Olimpíada. Para que se tenha idéia, os combatentes do chamado pancrácio eram punidos pelos juízes só em caso de mordidas ou quando um deles arrancasse o olho do adversário. O vencedor acabava venerado pela platéia mesmo quando provocava a morte do oponente.

Conjunto de cinco categorias, o pentatlo era disputado em provas de corrida, salto, luta, arremesso de disco e arremesso de dardo. Respectivamente, corridas e lutas abriam e encerravam o conjunto de provas – com algumas regras próprias, ambas categorias também eram disputadas fora do pentatlo. Na corrida, a distância mais curta envolvia um trajeto de cerca de 200 metros, equivalente ao comprimento dos estádios. Na mais longa, os atletas disputavam a liderança em 24 voltas pelo perímetro do local ou 5 mil metros.

Os jogos da Antiguidade eram violentos. Muitas vezes, serviram para simular batalhas militares. A morte de atletas chegou a ser registrada. A despeito das condições climáticas e mesmo de higiene, sabe-se que os atletas competiam nus. Historiadores antigos registram que essa tradição teria começado em 720 a.C., quando um sujeito chamado Orsipos, de Megara, venceu uma prova de corrida ao notar que sua performance seria melhor se ele abandonasse suas roupas pelo trajeto. A própria palavra “ginástica” tem o termo “nudismo” em seu radical grego gymnos – o que explicaria a proibição de mulheres, fosse como atletas, fosse como espectadoras.

Por mais sangue que tenha sido derramado, os atletas jamais abriram mão de alguma ambição pela vitória. Nem mesmo durante as guerras, ou quando a Grécia esteve sob domínio dos macedônios e dos romanos, as competições esportivas deixaram de ser realizadas. Os jogos, contudo, entraram em declínio na segunda metade do século 4.

Durante o domínio do imperador Teodósio, em 380 o cristianismo foi anunciado como religião oficial do Império Romano, fazendo com que, 13 anos depois, todos os centros esportivos e religiosos que abrigavam festas pagãs fossem fechados. Era o fim dos Jogos Olímpicos da Antiguidade, que só viriam a ganhar uma versão moderna cerca de 1500 anos mais tarde.

Renascimento olímpico

Só os aristocratas estiveram na primeira edição moderna dos jogos

Durante todo o século 19, depois de tornar-se independente do domínio turco em 1821, a Grécia foi invadida por inúmeras expedições arqueológicas. A França foi o primeiro país a explorar Olímpia – hoje, o museu do Louvre, em Paris, abriga várias relíquias gregas –, mas os alemães tomaram a frente das escavações até 1881, quando um barão francês viu a chance de transformar um sonho seu em realidade. Educado na Inglaterra, o aristocrata Pierre de Coubertin não conseguiu aplicar nas escolas da França o método de formação de jovens que havia aprendido – lá, os exercícios físicos eram uma forma de punir os alunos mal-comportados. Por isso, foi buscar inspiração nos ginásios da Grécia antiga para emplacar sua idéia. Coubertin passou a defender a prática esportiva como meio de formar cavalheiros, deixando de lado a noção grega de preparar cidadãos para combates. Em 1894, durante um congresso de atletas amadores em Paris, o barão propôs a retomada do ideal olímpico. Ele não era esportista, mas possuía o dom da oratória típico dos antigos gregos. Ao fim da conferência, viu aceita sua sugestão para estabelecer encontros periódicos entre os cavalheiros-esportistas. Estava inaugurado o Comitê Olímpico Internacional, que marcou para 1896, em Atenas, a primeira edição dos Jogos Olímpicos modernos. Ao menos em um ponto eles foram semelhantes às Olimpíadas antigas: as 13 nações que aceitaram reviver a competição enviaram apenas jovens da elite social. Exatamente como sonhara Coubertin.

Saiba mais

Livros

The Ancient Olympics, Nigel Spivey, Oxford University Press

Revista Aventuras na História

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