sábado, 30 de outubro de 2010

Átila, o único


Átila, o único
Famoso por desestabilizar o Império Romano e quase tomar Roma sozinho, o rei dos hunos lutou contra outros bárbaros e espalhou o terror pela Europa no século 5
por Isabelle Somma
O destino do maior e mais poderoso império sobre a terra estava em jogo naquele 20 de junho de 451, em Châlons, ao norte do que hoje é a França. Aecius, um respeitado general romano aguardava a chegada de seu inimigo. O poderoso exército romano já havia conhecido dias melhores, mas mesmo assim Aecius tinha sob seu comando 160 mil homens entre legionários de Roma e aliados bárbaros. Apesar de sua formação heterogênea e pouco confiável, da decadência da tropa, do atraso nos salários, não era a recordação de tempos melhores que afligia o general. Era seu oponente. Um homem cujo nome, em menos de 20 anos, tornara-se sinônimo de destruição e horror. O sujeito mais odiado de seu tempo já havia devastado boa parte da Europa e estava a caminho de seu coração: Roma. Era Átila, o rei dos hunos.
Em sua defesa, é bom que se diga que a má reputação dos hunos o precedia. “Eles ultrapassam todos os outros bárbaros em selvageria”, escreveu o historiador romano Amianus Marcelinus 60 anos antes do encontro em Châlons. “A expansão dos hunos não deve ser imputada a um só homem, nem tomada como um ato isolado desse líder”, diz Vânia Fróes, historiadora da Universidade Federal Fluminense. Segundo ela, a pressão dos hunos sobre a Europa é mais antiga que Átila. “Durante o século 3, sucessivas levas de hunos nômades partiram das estepes asiáticas, na Rússia central, em direção ao mar Negro, onde, por volta do ano 370, invadiram o território dos godos.” Talvez um dos povos mais avançados entre os bárbaros – como eram chamados os não romanos na Europa – os godos de origem germânica haviam migrado da Escandinávia durante o século 2 e, no final desse processo, dividido-se entre as regiões das atuais Romênia e Hungria (os visigodos, ou godos do oeste) e a Rússia (os ostrogodos, ou godos do leste). “Ambos foram empurrados Império Romano adentro: os ostrogodos vaguearam pela Macedônia, Croácia e Eslovênia, mas seus primos do leste foram mais longe e acabaram chegando a atual Espanha, onde reinaram até a invasão dos muçulmanos, em 711”, diz Jean Favier em seu Dictionnaire de la France Médiévale (“Dicionário da França Medieval”, inédito em português)
Tanto movimento acabou desalojando outros povos germânicos, como os vândalos, que rodaram a Europa, fugindo dos hunos e fazendo fugir os romanos. Os hunos eram realmente terríveis. Em oposição às tribos germânicas, que cultivavam a terra e que, em menor ou maior grau, já passavam por um processo de romanização (ou seja, conviviam numa boa com os romanos), eles permaneciam nômades, viviam de saques, dos resgates que exigiam daqueles que aprisionavam e da cobrança de ‘proteção’ de quem não queria ser atacado.
“Aos olhos dos romanos, eles eram os bárbaros que botavam os bárbaros para correr”, diz Favier. Concordemos que não era pouca coisa. Segundo o romano Marcelinus, eles lutavam como doidos e executavam qualquer um que não se rendesse. Por outro lado, valorizavam seus guerreiros mais corajosos e os mortos eram louvados como deuses. Eram exímios cavaleiros e, no início, utilizavam arco-e-flecha e lanças. Depois do contato com os romanos, porém, adotaram catapultas, escudos e capacetes.
Novo líder
Entre os chefes dessa turma estavam os irmãos Mundzuc, Octar e Rua, e foi no seio dessa família que surgiu um novo rei. Átila provavelmente nasceu no atual território da Hungria, às margens do rio Danúbio. Filho de Mundzuc, entre os anos de 435 e 440 ele herdou as terras de seu pai e de seus tios e ainda abocanhou o pedaço de seu irmão Bleda, depois de matá-lo. “O novo líder se mostrou desde o início, mesmo entre seu povo, muito mais agressivo e ambicioso que seus predecessores”, afirma Arther Ferrill, professor da Universidade de Washington, Estados Unidos, autor de Fall of the Roman Empire (“Queda do Império Romano”, inédito no Brasil).
Segundo Ferril, Átila ascendeu à liderança dos hunos num momento em que a principal potência do mundo antigo estava prestes a ruir e havia um certo vácuo de poder. “Desde a divisão entre Oriente e Ocidente, em 395, e depois da morte do imperador Teodósio, a queda do Império Romano passou a ser uma questão de tempo”, diz Ferrill. Teodósio dividiu o território entre seus dois filhos, Honório, que ficou com a parte ocidental, cuja capital permaneceu Roma, e Arcádio, com a porção oriental, com Constantinopla como sede.
“Na primeira metade do século 5, a parte ocidental do império sofreu um declínio em termos políticos e militares e quase foi substituída por reinos bárbaros”, diz Kenneth Dark, historiador da Universidade de Bristol, na Inglaterra. Ia longe os tempos dourados dos grandes imperadores e a invencibilidade das Legiões. Nos pontos mais remotos do Império, os soldados romanos – com salários atrasados e a estrutura de comando desorganizada – não ofereciam resistência aos invasores. E em regiões como a Bretanha e a Gália, precisavam da ajuda de ex-inimigos bárbaros para deter a invasão germânica. A coisa andava tão feia que 15 anos depois da morte de Teodósio, Roma foi saqueada pelos visigodos. Foi a primeira vez em 800 anos que a cidade foi atacada por bárbaros.
Poucos relatos sobre Átila sobreviveram à Idade Média. Todos o descrevem como um monstro que comia carne crua e que não descia do cavalo nem para dormir ou ir ao banheiro. Mas o único relato de alguém que conheceu Átila pessoalmente – e viveu para escrever a história – é do historiador romano Prisco. Ele foi um dos enviados do Império à corte de Átila, às margens do Danúbio, em 449. Prisco descreve o lugar como organizado, em que havia casas de madeira e até salas de banho.
“Uma refeição luxuosa em pratos de prata nos foi servida, mas Átila não comeu mais do que carne em um tabuleiro de madeira. Em tudo mais, ele também se mostrou contido. Seu copo era de madeira, enquanto que para os convidados foram dadas taças de ouro e prata. Suas roupas também eram bastante simples, se mostrando apenas limpas. A espada a seu lado, suas sandálias e as rédeas de seu cavalo não eram adornadas como as dos outros hunos, com ouro e pedras preciosas”, escreveu Prisco.
Mas no campo de batalha, Átila tinha fama de mau. Tanto que, quando ele invadiu a Trácia, no Império Romano do Oriente, quase não houve resistência. “Na época, Átila contava com um forte aliado: o medo que seus homens provocavam no inimigo. Com isso, ele conseguia altas somas em ouro simplesmente blefando”, diz Charles William King, da Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos. Outra tática dos hunos era para lá de oportunista. Segundo King, como os conflitos com bárbaros eram cada vez mais comuns, Átila esperava ocorrer um ataque e, quando os romanos enviavam suas tropas, ele aparecia e as sitiava. Os romanos eram obrigados a escolher entre pagar e lutar contra dois exércitos ao mesmo tempo.
Em 447, eles decidiram lutar. Átila devastou a Trácia, pilhou monastérios e vilarejos e destruiu plantações. O imperador do lado Oriental, Teodósio II, aceitou pagar um tributo anual em ouro e terras para evitar o avanço dos hunos. O acordo incluiu a concessão a Átila do titulo de general honorário.
Às portas de Roma
Com o acordo garantido do lado oriental, Átila voltou suas flechas em direção oposta. Mesmo não precisando de nenhum motivo para invadir o Império Romano Ocidental, Átila conseguiu um. A irmã do imperador Valentiniano, Justa Grata Honoria, foi presa (o que para uma princesa significava ficar em seu palácio, isolada de visitas e festas) depois de engravidar de um funcionário da corte. Pensando em quem seria um rival a altura de seu irmão para salvá-la do martírio, Justa resolveu recorrer ao homem mais poderoso de que ouvira falar: ele mesmo, o rei dos hunos. E enviou a Átila uma carta pedindo ajuda. Em troca, lhe cederia uma fatia generosa do Império. “Átila teria interpretado o pedido como uma proposta de casamento e, segundo autores medievais, exigiu metade do Império Ocidental”, diz King. Mas será isso verdade? Não parece uma daquelas lendas medievais, com uma princesa raptada e um rude guerreiro bárbaro partindo em sua salvação?
Pode ser, mas o fato é que, por volta de 450, Átila começou a marchar em busca do que achava que era seu – seja Justa Honória, seja uma fatia do decadente Império Romano. Com ele, seguiram mais de 300 mil homens, entre eles os agora aliados ostrogodos, burgúndios e alanos, além de alguns francos. O enorme exército invadiu a região do vale do rio Reno e não poupou ninguém. Cidades como Reims, Mainz, Estrasburgo e Colônia viraram pó.

Revista Aventuras na História

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