Alexandre, o cara
Que diferença uma pessoa pode fazer no mundo? Quanto um indivíduo sozinho pode mudar a história? Antes de responder, conheça esse homem.
por José Francisco Botelho
Em 356 a.C., no sexto dia do mês grego de Hecatombeon, o grande templo de Artemis, em Éfeso, onde hoje fica a costa da Turquia, foi destruído pelas chamas. Entre os habitantes da cidade, o incêndio da magnífica construção – uma das sete maravilhas do mundo antigo – foi visto como um sinal divino. Enquanto o templo queimava, os magos de Éfeso corriam em volta das labaredas, batendo as mãos no rosto e anunciando que feitos grandiosos e terríveis se aproximavam.
No mesmo dia, segundo o escritor grego Plutarco, do outro lado do mar Egeu, uma mulher chamada Olímpias dava à luz seu primeiro filho. Olímpias era rainha da Macedônia, no norte do que hoje é a Grécia. Segundo ela, na noite em que o garoto foi concebido, um relâmpago a atingiu no ventre. O rei Filipe II, marido de Olímpias, disse ter encontrado a esposa adormecida ao lado de uma enorme serpente.
Se essas histórias são verdadeiras, não sabemos. O que sabemos é que o menino ganhou o nome de Alexandre. Sabemos também que, antes de completar 30 anos, o filho de Olímpias e Filipe se tornaria o maior conquistador que o mundo já vira – e um dos maiores que veria até hoje. Alexandre foi senhor de um império gigantesco e responsável por uma das campanhas militares mais espetaculares da história. Seu nome tornou-se um mito – e sua personalidade continua até hoje mergulhada em polêmica e mistério.
O nascimento se deu numa época conturbada. Fazia mais de um século que a bacia do mar Egeu era palco de um sangrento duelo entre duas potências rivais: as cidades-estado da Grécia e o enorme Império Persa. Até aquele momento, os gregos haviam sido vitoriosos, mas as poderosas e independentes cidades-estado, divididas por rivalidades seculares, mostravam-se incapazes de transformar a Grécia em uma nação coesa. Enquanto o Império Persa se recuperava das antigas derrotas, os gregos lutavam entre si, arrastando o país à beira da anarquia.
Filipe, pai de Alexandre e rei da Macedônia, dedicou-se a reverter essa situação. Dotado de um incansável gênio político, ele transformou seu reino em uma potência internacional e criou um exército organizado e eficaz (veja o quadro à direita). No auge de seu poder, Filipe fundou a Liga de Corinto, organismo que unificava todas as cidades da Grécia – menos Esparta – sob a hegemonia macedônica. No entanto, não teve tempo de realizar seu projeto mais ambicioso: unir gregos e macedônios em uma expedição contra o inimigo comum, o Império Persa.
Durante uma festa, em 336 a.C., Filipe foi apunhalado. Alexandre subiu ao trono em meio a uma tempestade de intrigas, cercado por inimigos dentro e fora do reino. Para manter-se no poder, ele foi implacável: eliminou adversários na corte, esmagou rebeliões e provou que Filipe tinha um herdeiro à altura. Com o reino pacificado, Alexandre estava pronto para levar adiante os projetos do pai – e superá-los. Caberia a ele conduzir a Macedônia ao auge de seu poder e abrir um novo capítulo na história do mundo.
Jovem rei
Quando tomou as rédeas do reino, Alexandre tinha só 20 anos, mas já era um político habilidoso e um guerreiro indomável. Desde a infância, a ambição foi sua característica dominante. Certa vez, ao receber notícias de uma vitória de Filipe, o príncipe lamentou-se com seus amigos: “Meu pai vai acabar conquistando tudo, e não deixará para nós nenhum feito grandioso”. Aos 18 anos, quando comandou a cavalaria macedônica na batalha de Queronéia, sua coragem transformou-o em um ídolo entre os soldados. O gosto pelo perigo, unido a um profundo magnetismo pessoal, encantava seus companheiros e fazia de Alexandre um líder irresistível.
Além da bravura militar, ele havia demonstrado desde menino uma grande curiosidade intelectual. Apaixonado pelas artes e pelas ciências, sempre respeitou os poetas, filósofos e eruditos (veja o quadro na página 45). Certa vez, afirmou que teria preferido superar os outros em conhecimento do que em poder político. O macedônio sabia de cor os versos da Ilíada e costumava dormir com o livro debaixo do travesseiro – junto com a espada, claro. Sua mãe o convenceu de que era descendente de Aquiles, o grande herói da Guerra de Tróia. Essa guerra mítica teria sido a origem ancestral da rivalidade entre gregos e persas. Alexandre adotou Aquiles como modelo e, assim como o semideus fabuloso, o rei dos macedônios era generoso com os amigos e capaz da maior cortesia com os adversários, mas também vivia obcecado pela idéia de sua própria grandeza e deixava-se arrastar por surtos de cólera.
Em 334 a.C., ele pôs em ação o velho projeto do pai: à frente de um exército de 37 mil soldados, marchou para a Ásia Menor e atacou os persas em seus próprios domínios. A primeira grande batalha ocorreu às margens do rio Granico (que hoje se chama Koçabas). Galopando à frente da cavalaria, Alexandre foi cercado por uma multidão – e teria morrido ali mesmo, em começo de carreira, atravessado pela cimitarra de um comandante persa, se não fosse seu amigo Clito, que decepou o braço do atacante e salvou a vida do rei por uma fração de segundo.
O exército macedônico deparou com o grosso das forças adversárias em uma planície próxima de Issus, na Síria. Lá, Dario III, imperador da Pérsia, aguardava-o com um exército de provavelmente 50 mil a 75 mil homens (alguns historiadores antigos chegam a falar de 600 mil homens, mas os historiadores antigos não se notabilizam pela exatidão numérica). As tropas de Alexandre eram menores em número, mas superiores em tática e disciplina – e o resultado foi um banho de sangue. Os macedônios massacraram milhares de soldados inimigos e o resto fugiu em pânico – incluindo o próprio Dario III, que abandonou sua mãe, sua esposa e suas filhas no acampamento real. Ao encontrar a família do inimigo, Alexandre se comportou como um cavalheiro: garantiu às cativas que seriam tratadas como rainhas e jamais permitiu que alguém as desrespeitasse. As prisioneiras afeiçoaram-se tanto a seu captor que, após a morte de Alexandre, Sisigâmbis, mãe de Dario, suicidou-se por inanição.
Depois dessa vitória esmagadora, nada parecia impossível. Pouco a pouco, as verdadeiras ambições de Alexandre começavam a se revelar. Ele não pretendia apenas derrotar o Império Persa. Seu desejo ia um pouco além: dominar o mundo.
Filho de deuses
Antes de completar a conquista da Ásia, Alexandre dirigiu-se para a África e penetrou triunfalmente no Egito. A terra das pirâmides, que durante séculos fora dominada pelos persas, saudou-o como libertador – e o rei da Macedônia foi declarado herdeiro dos faraós. Após iniciar a construção de Alexandria – uma das muitas cidades que levariam seu nome (veja o quadro da página 47) –, o conquistador cavalgou pelo deserto para visitar o oásis de Siva, na Líbia, onde se localizava o célebre oráculo do deus solar Amon – que, na Grécia, era associado a Zeus, o senhor do Olimpo. De acordo com alguns relatos, os sacerdotes do templo, vendo aproximar-se o monarca, saudaram-no como “filho de Zeus” e anunciaram que seu destino era dominar o Universo.
As palavras dos sacerdotes alimentaram o velho rumor de que Alexandre não era um simples mortal – mas um filho dos deuses. “Para a mentalidade oriental, isso caía como uma luva. Especialmente no Egito”, diz o historiador clássico Anderson Zalewski, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “O fato de um conquistador se apresentar como deus não era anormal por lá. Um dos elementos da monarquia oriental era o caráter divino”, afirma.
Jamais saberemos com certeza se o próprio Alexandre acreditava em sua natureza divina, mas, entre seus seguidores gregos e macedônios, essa pretensão – mesmo que não passasse de truque político – era encarada com desconfiança. Muitos pensavam que, ao declarar-se filho de um deus, Alexandre renegava a memória de seu pai, Filipe. Outros acreditavam que a vaidade do jovem soberano estava indo longe demais. Em 324 a.C., quando Alexandre ordenou que os súditos o reconhecessem como um deus vivo, seus inimigos denunciaram o ato como pura megalomania. Em Esparta, comentou-se com desprezo: “Deixem Alexandre ser um deus, se isso lhe agrada...”
Rei dos Reis
Conquistado o Egito, Alexandre não voltou para casa. Ele preferiu rumar para a Ásia, onde iniciou uma caçada humana – cuja presa era Dario III. “Se te consideras um rei”, escreveu o macedônio ao imperador da Pérsia, “prepara-te para a luta e não fujas, pois eu te perseguirei aonde quer que vás”. Os inimigos voltaram a se defrontar em 331 a.C., em Gaugamela (atual Tell Gomal, no Iraque). Dario fugiu pela segunda vez e acabou sendo assassinado por um de seus próprios oficiais. Em Susa, uma das antigas capitais do império, Alexandre sentou-se triunfalmente no trono dos soberanos persas. Agora ele era o “Rei dos Reis”, senhor de gregos e dos asiáticos. Tinha apenas 25 anos.
No entanto, ao mesmo tempo em que o rei atingia o ápice da glória, as tensões entre ele e seus seguidores chegavam a um ponto crítico. O macedônio começava a se comportar como um monarca absoluto – e muitos de seus oficiais ressentiam-se dessa transformação. Alexandre instituiu em sua corte a cerimônia da proskynesis, ou prostração – gesto de humildade em que o súdito se curva perante o soberano. Entre os persas, esse ritual não passava de uma mostra de respeito. Para os gregos e macedônios, era um ultraje. “Os soldados de Alexandre consideravam-se seus companheiros, e o ato de se prostar era visto como uma degradação própria de escravos”, afirma o historiador Zalewski.
Alexandre passou a favorecer cada vez mais os súditos asiáticos e começou a imitar muitos de seus costumes. Incluiu nobres persas em seu círculo de amizades, entregou o governo de províncias a antigos funcionários de Dario e adotou trajes orientais. Também estimulou a união entre seus oficiais e mulheres asiáticas – chegando ele próprio a se casar com uma nobre iraniana chamada Roxane. Muitos gregos e macedônios acusavam o rei de estar se afeiçoando perigosamente ao inimigo.
Durante os anos que Alexandre passou na Ásia, a antiguidade e o mistério das culturas orientais exerceram grande fascínio sobre seu espírito. No livro Alexandre e o Império Helênico, o historiador britânico A.R. Burn, da Universidade de Glasgow, Escócia, afirma que o macedônio “aprendera a respeitar os persas por sua coragem em luta, e mesmo por sua eficiência administrativa”. Além disso, certamente lhe agradava o ego ser tratado como um soberano supremo. Acima de tudo, no entanto, havia uma questão de ordem estratégica: para governar um império que pretendia ser universal, era preciso ganhar o coração dos novos súditos e estabelecer uma unidade cultural em seus domínios. “Sua tática era mimetizar os costumes dos povos dominados, procurando conciliar a tradição helênica e a memória cultural local”, diz o historiador e arqueólogo Francisco Marshall, também da UFRGS. “O grande motivo por trás da orientalização de Alexandre e de sua política de mestiçagem é o desejo de evitar a fragmentação em seus domínios”, afirma.
É claro que um projeto tão complexo não poderia ser totalmente compreendido por aqueles que o cercavam. “A orientalização de Alexandre causou amargo rancor entre os macedônios e a tensão passou a disseminar-se pela corte”, afirma o historiador britânico John Maxwell O’Brien em Alexander the Great: the Invisible Enemy (“Alexandre, o Grande: o Inimigo Invisível”, sem tradução no Brasil). Murmúrios de descontentamento fervilhavam entre as tropas e o rei já sentia a solidão do poder absoluto. Desconfiado e taciturno, bebia cada vez mais, enxergava inimigos por todos os lados e tratava sem piedade os suspeitos de traição.
Em 328 a.C., durante um banquete de casamento na cidade de Samarcanda, Clito, o heróico oficial que tinha salvado a vida de Alexandre anos antes, às margens do Granico, deixou-se levar pela raiva e lançou na face do rei uma série de acusações amargas. “Tenho inveja dos mortos” gritou ele, “que não viveram para ver macedônios açoitados com varas, implorando aos persas, como se fosse um favor, uma audiência com nosso próprio rei!” A inveja de Clito não duraria muito. Alexandre, que estava completamente embriagado, arrancou uma lança das mãos de um de seus guardas e atravessou com ela o coração do amigo. Clito caiu com um gemido e morreu na hora. Ao ver o cadáver estirado a seus pés, Alexandre ficou imediatamente sóbrio e entrou em desespero. O remorso o manteve na cama durante três dias, sem aceitar comida nem vinho.
O episódio, contudo, não diminuiu a determinação do macedônio – e, passado o choque inicial, sua ambição e seus modos autoritários voltaram com força redobrada. Os domínios de Alexandre já abrangiam três continentes, mas ele não estava disposto a descansar enquanto não alcançasse os limites do mundo conhecido. Assim, em 327 a.C., o rei voltou a reunir suas tropas e marchou. Rumo à Índia.
Deus caído
Para os gregos, a Índia era uma região misteriosa e de geografia incerta. Alguns afirmavam que, para além dela, estendia-se o Oceano Exterior – uma gigantesca massa de água que demarcava os limites da Terra. Acreditasse ou não nessas lendas, o fato é que Alexandre pretendia ultrapassar as antigas fronteiras do Império Persa e estabelecer seu domínio sobre as “terras incógnitas” do Extremo Oriente. Ele queria nada menos do que a China.
Às margens do rio Hidaspes (hoje Jhelum, na Caxemira, região disputada pela Índia e o Paquistão), Alexandre encontrou um adversário à altura: o rajá de Paurava, conhecido entre os gregos como rei Porus. Porus era um gigante – dizem que tinha mais de 2 metros – e poucos igualavam sua coragem em batalha. Segundo algumas fontes, seu exército contava com 23 mil homens, 300 carros de guerra e 85 elefantes. A luta começou sob chuva, na penumbra da madrugada, enquanto os cavaleiros gregos atravessavam o rio com água no peito. Montado em seu elefante, Porus continuou a lutar com fúria mesmo após a morte de seus dois filhos e a dispersão de quase todas as tropas. Quando o indiano finalmente se rendeu, Alexandre estava impressionado com sua bravura. Perguntou-lhe como desejava ser tratado, ao que Porus respondeu: “Como um rei”. Alexandre atendeu seu pedido: manteve Porus no poder e fez dele um aliado. O rajá permaneceu leal ao rei da Macedônia até o fim da vida. Foi nessa batalha que morreu Bucéfalo, o célebre cavalo de Alexandre.
Entusiasmado com a vitória, o conquistador preparava-se para avançar até o rio Ganges. Mas a encarniçada batalha contra Porus havia esfriado o ânimo das tropas. Esgotados pelo sufocante verão indiano e pelas incessantes chuvas de monção, os soldados, que acompanhavam Alexandre havia oito anos, só pensavam em voltar para casa. Às margens do rio Hífaso, o exército recusou-se a dar um único passo adiante. Furioso, Alexandre afirmou que seguiria sozinho se fosse preciso. Encerrou-se em sua barraca e, por dois dias, recusou-se a ver qualquer pessoa. Mas, dessa vez, sua ira foi inútil. Compreendendo que não lhe restava opção, ele cedeu ao apelo dos oficiais. Quando souberam que iam voltar, os soldados choraram de alegria.
Retornando ao centro do império, Alexandre começou a sonhar com novas campanhas. Mas seu corpo e sua mente estavam esgotados por uma década de guerras. Em 324 a.C., o espírito combalido do macedônio recebeu um golpe duro: Heféstion, seu amigo mais íntimo (e, segundo alguns, seu amante), morreu por excesso de bebida. O rei chorou sobre o cadáver do companheiro e resolveu afogar as mágoas de seu jeito favorito: marchou contra a tribo dos cosseanos e ordenou que toda a população masculina fosse passada no fio da espada.
Com a alma envenenada pela solidão e pela desconfiança, o homem mais poderoso do mundo deixou-se derrotar pelo vinho. Seus banquetes estendiam-se noite adentro. Numa dessas ocasiões, segundo Plutarco, 41 convivas morreram de tanto beber. Com a saúde destroçada, Alexandre foi dominado por fantasias supersticiosas e começou a ver presságios de sua própria morte por todos os lados.
Em 323 a.C., na Babilônia, os presságios se confirmaram. Após um dia e uma noite de bebedeira, o imperador caiu de cama, ardendo em febre. No dia 10 de junho, ao pôr-do-sol, Alexandre, o Grande, estava morto. Para alguns, a causa foi a bebida; para outros, uma doença não diagnosticada, como malária (pesquisadores atuais cogitam a hipótese de ter sido sífilis). Há quem fale em envenenamento. Alexandre ainda não tinha 33 anos.
O rei não deixou herdeiros – e quando, no leito de morte, perguntaram-lhe a quem legaria o trono, ele murmurou: “Ao mais forte”. Enquanto os soldados pranteavam o grande líder, seus generais já se batiam pela soberania. Em meio a uma profusão de assassinatos, lutas e traições, o sonho de um império universal chegava ao fim.
A herança
A partir de 321 a.C., os domínios de Alexandre foram divididos entre seus oficiais: Seleuco apoderou-se da Ásia Ocidental, Antígono reinou sobre a Macedônia e Ptolomeu fundou uma dinastia no Egito, cuja herdeira mais famosa foi a rainha Cleópatra. O gigantesco império fragmentou-se em pedaços que acabaram sendo subjugados pelos romanos, cerca de dois séculos depois. Alguns detratores de Alexandre chegaram a negar sua contribuição para a história – um texto anônimo afirma que “nada do que ele fez permaneceu, exceto pelas pessoas que matou, e essas continuam mortas”.
A verdade, no entanto, é que as conquistas macedônicas, motivadas em grande parte pela ambição e pelo orgulho de um único homem, tiveram conseqüências tão vastas e profundas que deram início a um novo período histórico – conhecido como “época helenística”. Em sua passagem pela Ásia e pela África, Alexandre fundou cidades, estabeleceu rotas de comércio e abriu as portas do mundo para a cultura helênica. Gregos passaram a migrar para o Oriente e metrópoles floresceram, como Pérgamo, Antióquia e Alexandria do Egito. Nas regiões mais remotas, governantes cercavam-se de filósofos, historiadores, geógrafos, pintores e escultores, ajudando a criar novos estilos artísticos e dando início a um período de curiosidade intelectual e avanço científico.
Para o classicista Marshall, a helenização do mundo antigo pode ser interpretada como a primeira globalização da história. “Alexandre foi o primeiro a realizar um projeto de unificação dirigida, planificada, deliberada. Com a fundação de cidades gregas por todo o Oriente, ele estabeleceu focos de irradiação da cultura clássica.”
O período foi marcado por um intenso diálogo entre civilizações. O fascínio das culturas orientais logo começou a agir sobre o helenismo, transformando o espírito dos dominadores. Deuses como Ísis e Serápis, vindos do Egito, passaram a ser adorados pelos gregos. Ao redor do Mediterrâneo, fiéis eram iniciados em novos cultos, que prometiam salvação individual e imortalidade para a alma. Surgia, assim, o caldo heterogêneo no qual nasceria o cristianismo. “Os conquistadores gregos e macedônios passaram a interagir com as elites e as populações das terras dominadas, e o resultado foi uma experiência de total encontro de culturas”, diz a arqueóloga Maria Beatriz Borba Florenzano, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.
Embora Alexandre tenha inaugurado uma era de tanto florescimento, seria ingênuo imaginar que o objetivo de seus atos fosse a fraternidade universal ou o bem das nações. Como escreveu Burn, “a idéia de que a ambição e o desejo de dominar são motivos indignos só surgiria na Europa sob influência do cristianismo”. Alexandre viveu na certeza de que a dominação em larga escala era o único alvo digno de seus talentos. E foi seguindo a implacável lógica da conquista que ele escreveu seu nome, em letras de fogo e sangue, na história da humanidade.
Os imbatíveis macedônios
Embora os macedônios falassem um dialeto semelhante ao da Grécia e compartilhassem muitos elementos de sua cultura, alguns gregos consideravam seus parentes do norte como uma nação semi-bárbara. Criticavam, entre outras coisas, o hábito macedônico de beber em excesso. Filipe II é descrito como um beberrão, e Alexandre, que em sua adolescência evitava os excessos, acabou seguindo os passos do pai. Contudo, os reis macedônios sempre se orgulharam de trazer sangue grego nas veias – e, durante seus reinados, Filipe e Alexandre fizeram o possível para serem aceitos como legítimos representantes do mundo helênico. Mesmo os maiores críticos dos macedônios tinham de concordar numa coisa: o mundo nunca vira guerreiros tão eficazes e disciplinados. Filipe, que apesar da boemia era um estrategista brilhante, transformou o exército do país na maior máquina de guerra de seu tempo. Alexandre aperfeiçoou as táticas do pai. A grande inovação do exército macedônico foi o uso combinado de diferentes tipos de armas e unidades.
Amigos do rei
A cavalaria pesada, formada por guerreiros aristocratas e liderada pelo rei em pessoa, era responsável pelas investidas mais violentas. Dentre os cavaleiros, destacava-se o regimento dos companheiros do rei (hetairoi), tropa de choque que reunia alguns dos oficiais mais próximos de Alexandre
Lanção
A célebre falange macedônica era composta por soldados a pé, protegidos por capacetes e escudos circulares. Para o ataque, usavam a sarissa, uma lança de 6 metros de comprimento, o terror dos inimigos
Elite
Os hypaspistai (“portadores de escudos”) compunham uma tropa de elite que protegia o flanco direito da falange. Conhecidos como Escudos Prateados, esses guerreiros eram os que ficavam mais expostos à violência da batalha
Entre dois cerébros
Alexandre passou a maior parte da vida em campos de batalha. Mas sua biografia cruzou com a de personagens mais ligados ao mundo das idéias do que ao das batalhas. Os dois intelectuais mais famosos que estiveram no caminho do rei guerreiro são o mestre Aristóteles e o rival Demóstenes.
Aristóteles (384-322 a.C.) foi escolhido pelo rei Filipe para ser tutor de Alexandre. Dono de uma erudição extraordinária, o discípulo mais famoso de Platão escreveu tratados sobre temas tão diversos quanto política, ética, lógica, literatura e metafísica, tornando-se talvez a figura mais influente na história do pensamento ocidental. A amizade entre o filósofo e o conquistador chegou ao fim quando Alexandre aprisionou o historiador Calístenes, primo de seu antigo mestre.
Já o advogado e estadista ateniense Demóstenes (igualmente nascido em 384 a.C. e morto em 322 a.C.) foi o mais virulento inimigo do rei da Macedônia. Considerado o maior orador da Grécia antiga, Demóstenes fez uma série de discursos nos quais conclamou os atenienses a se unirem contra Filipe e assim preservarem a autonomia das cidades-estado. Os discursos ganharam o nome de “filípicas” – termo que até hoje designa um enfurecido ataque verbal. As palavras de Demóstenes surtiram efeito, e Atenas e Tebas formaram uma aliança, derrotada pela Macedônia na batalha de Queronéia, em 338 a.C. Após a morte de Alexandre, Demóstenes foi perseguido pelos macedônios e procurou asilo em um templo. Ao perceber que não escaparia, suicidou-se com veneno.
O mundo a seus pés
A campanha de dezanos levou Alexandre àsportas da Índia
1. Pela, 356 a.C.
Nasce Alexandre, filho de Filipe II, rei da Macedônia, e de sua esposa Olímpias. Segundo Plutarco, o nascimento ocorreu no mesmo dia em que o templo de Ártemis, em Éfeso, ardeu em chamas
2. Tebas, 335 a.C.
Já entronado, Alexandre enfrenta rebeliões e ordena que Tebas seja destruída e seus habitantes, massacrados. O rei se arrependeu depois e, daí para a frente, jamais negaria o pedido de um tebano
3. Rio Granico, 334 a.C.
Às margens do rio Granico, ocorre a primeira batalha entre macedônios e persas. No ano seguinte, Alexandre derrota o exército inimigo na batalha de Issus. Dario III, rei dos persas, consegue escapar
4. Alexandria, 331 a.C.
No Egito, o macedônio funda Alexandria, em um ponto estratégico próximo ao delta do Nilo. A cidade irá tornar-se uma das metrópoles mais importantes do mundo helenístico
5. Babilônia, 331 a.C.
Alexandre retorna à Ásia e volta a derrotar Dario em Gaugamela, próximo à aldeia de Arbela. O conquistador penetra triunfalmente na cidade de Babilônia, cujo povo sempre detestou o domínio persa
6. Persépolis, 330 a.C.
Os macedônios invadem a principal capital persa, uma das cidades mais grandiosas e opulentas da Ásia. Durante uma noite de bebedeira, Alexandre ordena que os magníficos palácios sejam incendiados
7. Bukhara, 328 a.C.
Após o assassinato de Dario III, Alexandre convence o exército a partir no encalço do assassino, Bessus. Os macedônios marcham para noroeste, capturam o criminoso perto de Bukhara e o executam
8. Fronteira da Índia, 327 a.C.
Alexandre chega ao lugar que Aristóteles considerava o fim do mundo habitado. No ano seguinte, às margens do rio Hífaso, as tropas recusam-se a seguir adiante
9. Deserto de Gedrósia, 325 a.C.
No caminho de volta, as tropas atravessam o pavoroso deserto de Gedrósia, onde o calor causou mais mortes que qualquer exército inimigo. Estima-se que, dos 60 mil soldados que entraram, apenas 15 mil saíram
10. Babilônia, 323 a.C.
Alexandre, o Grande, estabelece-se na Babilônia, tornada a capital de seu imenso império. Lá ele passaria seus últimos e amargurados dias
Um nome, 17 cidades, 3 continentes
Alexandrópolis, no vale do rio Styrmon, foi a primeira cidade a ganhar o nome do conquistador. Na época, Alexandre tinha apenas 16 anos e combatia uma rebelião na Trácia. Ao longo de suas conquistas, ele fundaria em torno de 70 cidades, sendo que pelo menos 17 levariam seu nome. Alexandretta foi criada próximo à planície de Issus, onde Alexandre derrotou Dario pela primeira vez. Hoje chama-se Iskenderun e fica em território turco. Diversas Alexandrias foram fundadas na Ásia Central, como Alexandria Hereion (atual Herat) e Alexandria Aracósia (hoje Kandahar), no atual Afeganistão, e Alexandria Margiane (Merv, no Turcomenistão).
Dentre as cidades que levaram o nome do macedônio, Alexandria Escate (atual Leninabad, no Tadjiquistão) foi a mais longínqua. Fundada perto do rio Jaxartes, servia como ponto estratégico na fronteira nordeste do império. A cidade foi povoada por veteranos macedônios que já não estavam aptos para a guerra – os combates duraram tantos anos que houve tempo até para que alguns soldados se aposentassem. Alexandre não fazia apenas auto-homenagens nos nomes das cidade que fundava. Bucefália, na Índia, foi batizada em memória de Bucéfalo, o cavalo do rei.
Do homem ao mito
Alexandre viveu num mundo em que a imagem do herói era onipresente e sempre demonstrou o desejo de igualar-se às figuras da mitologia. Se, por um lado, ele desejava sinceramente superar os heróis das lendas, é inegável que o poder do mito funcionava como uma estratégia de dominação. O macedônio soube transformar sua imagem em um instrumento de propaganda, convencendo seus súditos de que era superior aos outros homens. Esse “marketing” funcionou tão bem que, durante séculos, Alexandre foi adotado como modelo por vários governantes, incluindo os imperadores romanos e monarcas medievais como o germânico Oto III e o franco Carlos Magno.
A imagem de Alexandre fascinou também a imaginação popular e deu origem a um universo de lendas fabulosas. Nas páginas do Romance de Alexandre, escrito no século 2 ou 3, o conquistador enfrenta gigantes antropófagos, encontra leões de três olhos, descobre a fonte da imortalidade e tenta viajar ao fundo do oceano no interior de um jarro; seu exército atravessa rios congelados em pleno Oriente Médio e alcança uma terra onde o Sol nunca nasce. Essas narrativas fantásticas tiveram versões em sírio, grego, armênio e latim, atraíram a fantasia dos poetas árabes e persas, espalharam-se até a Etiópia e a Mongólia e foram trazidas de volta à Europa pelos cruzados. Nas lendas egípcias, Alexandre é filho de Nectanebo III, o último faraó. Entre os maometanos, ele é retratado como um profeta que combate os ídolos. E os monges cristãos o transformaram num santo e num asceta.
O mito é tão forte que chegou a nós. Alexandre já foi interpretado por Richard Burton, em um filme de 1956, e por William Shatner, no piloto de uma série televisiva, em 1964. Agora é a vez de Colin Farrell – astro da superprodução de Oliver Stone – e de Leonardo di Caprio – que deve fazer o mesmo papel num filme de Baz Luhrmann, o diretor de Romeu e Julieta e Moulin Rouge, com estréia prevista para o ano que vem.
Revista Superinteressante
Eduardo!
ResponderExcluirPeço desculpas pela ausência que eu mesmo perco. Textos como este e tantos outros que lerei com mais calma.
Meu irmão caçula está hospitalizado, e parece grave a situação cardíaca dele. Mas depois eu recupero.
Sobre o ALEXANDRE, fiquei imaginando se os homens daquela época seriam mais capazes. Aos 25 anos e com um império, tornou-se um mito e ficou para a História entre os Grandes!
Talvez naquela época as ordens fossem mais respeitadas. Havia hierarquia, e uma lógica de domínio.
Parabéns!
Voltarei!
Abraços
Mirze