segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Tróia: A Guerra dos Deuses

Por dez anos, em algum momento entre os séculos XII e XIII a.C., gregos e troianos se confrontaram nas portas da cidade de Tróia. O conflito que envolveu homens e deuses foi narrado por Homero, educou os gregos antigos e marcou o fim de um período importante da história da Hélade


POR RODRIGO GALLO

Quadro do pintor alemão Johann Georg Trautmann (1713-1769) mostra o momento em que os gregos conseguiram invadir a cidade de Tróia usando o cavalo de madeira, o famoso "presente de grego"

Nem mesmo Zeus, o senhor dos deuses, deixou de acompanhar aqueles dez anos de conflito. Até ele, que havia destronado o próprio pai e se imposto como soberano, desceu do Olimpo para assistir aos grandes combates, enquanto Posêidon, seu irmão, e Apolo, o arqueiro, interferiam diretamente no desfecho dos combates entre os heróis. E assim, uma década se passou em Tróia, cidade localizada na costa leste do Mar Egeu, onde troianos e aqueus se enfrentaram com ferocidade: e tudo por causa da "mulher mais linda do mundo". Desta forma, o futuro de toda a Grécia foi decidido, em algum momento entre os séculos XII e XIII antes de Cristo. Muitos helenos tombaram naquela guerra, cruzando o rio Styx e adentrando as terras de Hades, o deus dos mortos, e, novamente, vale lembrar o motivo: o rapto de uma rainha.


HISTÓRIA GREGA

Obra do artista italiano Federico Barocci (1528-1612) dramatiza a queda de Tróia e mostra o guerreiro troiano Enéias carregando sua família para fora da cidade

Alguns eventos históricos são assim. De tão incríveis e gloriosos, os poetas, eufóricos, passam a descrevê-los de forma ainda mais heróica, carregados de elementos míticos e divinos. A realidade, no fim, funde-se ao mitológico e, com este formato, a narrativa passa para as gerações futuras, que em muitas situações aceitam os fatos descritos e passam a tratá-los como verdades absolutas.

Os conflitos narrados pelo poeta cego Homero não fogem a esta regra. De tão sensacionais, passaram a incorporar não apenas a crença dos antigos gregos, mas também a educação dos jovens. Os helenos realmente acreditavam na invulnerabilidade de Aquiles, por exemplo. O narrador mostra que a guerra de Tróia foi tão gloriosa que nem mesmo os soberanos do Olimpo contiveram-se e desceram dos céus para acompanhar seus campeões lutarem de frente às muralhas da cidade, naquela que seria "uma das maiores batalhas da Antiguidade".

O LEGADO TROIANO

A cidade de Tróia realmente existiu, conforme ficou comprovado após a bem-sucedida expedição do arqueólogo amador alemão Heinrich Schliemann, mas ninguém sabe ao certo se a lendária guerra ocorreu da forma como Homero a descreveu. Contudo, o poema foi tão importante que deuses e heróis lendários tornaram-se fundamentais para a vida dos helenos daquele período e mesmo para aqueles que viveram nos séculos posteriores. Tróia, no fim, simboliza o modo de vida e os anseios dos povos daquele período, retratando inclusive seus defeitos, fraquezas e crenças - é o relato mais próximo e completo da sociedade da época.

Estátua de Ares, o deus da guerra selvagem, na vila de Adriano, em Roma

O conflito de Tróia, que o poeta narra na Ilíada, parou o mundo helênico por uma década, fez deuses conspirarem contra reis e opôs heróis das duas grandes potências em um dos combates mais ferozes do mundo Antigo. Os confrontos, reais ou fictícios, mudaram os rumos da Antiguidade grega e, mais do que isso, serviram de inspiração para centenas de milhares de guerreiros durante incontáveis séculos: do espartano Leônidas, que evocou Apolo nas Termópilas antes de tombar perante os persas, ao macedônio Alexandre, que visitou a cidade antes de iniciar sua campanha rumo à Ásia, todos os grandes generais helenos celebravam os feitos de Aquiles, Páris e Ajax.

Analisar o embate troiano é fundamental para entender o modo de vida das pessoas da Mediterépoca, pois retrata exatamente as relações sociais, políticas e, no limite, a proximidade dos gregos com a religião. A guerra também foi responsável pelo início de transformações sociais fundamentais para que, tempos mais tarde, os gregos estivessem prontos para criar sua mais importante estrutura política: a democracia.

Pintura do francês Jacques-Louis David (1748-1825) expõe o amor de Helena e Páris

No chamado período homérico, lembra o arqueólogo Alvaro Allegrette, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, a estrutura da sociedade era bastante distinta daquela que ganharia notoriedade séculos depois, na era clássica. "Antes, nos tempos descritos por Homero, o sistema político era monárquico. Depois, com as mudanças, a Grécia passou a ter uma relação de comunidade e unidade", afirma.

Segundo o poema de Homero, o destino de Tróia foi selado no momento em que Páris, filho do rei Príamo, nasceu

MITOLOGIA HOMÉRICA

Segundo o poema de Homero, o destino de Tróia havia sido selado no momento em que Páris nasceu. De acordo com uma profecia, aquele bebê, no futuro, seria a ruína da cidade de Príamo, seu pai. Por conta disso, a criança foi encaminhada à morte, mas foi poupada secretamente pelo sacerdote que havia sido incumbido de executá-la sumariamente. Anos depois, voltaria ao lar e seria bem recebido pelo rei e por seus inúmeros irmãos.

Durante os anos em que permaneceu longe, Páris (que era chamado de Alexandre) foi procurado por três deusas. Atena, Afrodite e Hera. Elas passavam por um dilema: queriam saber qual era a mais bela, e solicitaram que o jovem entregasse um pomo para aquela que ele julgasse ser a mais bonita. Atena e Hera prometeram dar-lhe poder e riqueza. Afrodite, no entanto, foi mais astuta e prometeu lançar um feitiço sob a famosa Helena de Esparta e, com isso, torná-la apaixonada pelo jovem troiano. Conhecendo a fama da beleza da espartana, ele não teve dúvidas e, então, o pomo da Discórdia foi entregue a Afrodite. Ressentidas, as outras duas deusas manipularam os fatos dos anos seguintes para, por intermédio de Páris, jogar aqueus contra troianos.

Para entender a importância da narrativa de Homero é preciso voltar àquele período descrito no poema e analisar o funcionamento da sociedade da época. Séculos antes da democracia, as cidades da Grécia eram dominadas por monarcas com mãos-de-ferro, que assumiam o trono por direito hereditário ou por conquista militar. Era uma estrutura de sucessão política rígida, na qual as pessoas comuns não tinham muitos direitos naturais. Ao povo, restava apenas trabalhar nas colheitas, pagar impostos e lutar em guerras, quando convocados pelos soberanos.

Assim era o tempo de Agamenon, o soberano de Micenas que, após derrotar inúmeras nações no Peloponeso e a Grécia Central, pretendia expandir seus domínios para anexar às suas posses os portos localizados na costa leste do Mediterrâneo. Era justamente onde Tróia ficava, uma grande potência naval que dominava o comércio de grãos, armas e especiarias na região. Portanto, era um local estratégico para quem queria enriquecer à custa dos comerciantes asiáticos.

Afrodite protege Páris contra Menelaus, na obra do pintor alemão Peter von Cornelius (1783-1867)

Nesse universo de grandes monarcas, Helena ficara encantada pelo jovem Páris, que a conheceu pessoalmente durante uma missão em Esparta chefiada por ele. Apaixonada, a rainha espartana decidiu segui-lo até Tróia. Os aqueus, contudo, acreditaram que ela havia sido seqüestrada pelo filho de Príamo. O rei traído, Menelau, buscou ajuda do irmão, Agamenon, que convocou as cidades aliadas e marchou rumo à guerra: finalmente, ele havia encontrado um pretexto excelente para atacar.

Aos soldados, restou apenas reunir os homens de seus clãs, deixar as fazendas sob o cuidado das esposas e dos mais jovens e embarcar rumo à Tróia, localizada onde hoje fica a Turquia. No total, descreve o poeta, 1,2 mil naus foram reunidas para ir ao combate. Munidos de escudos em formato de "oito" e carros de guerra, os guerreiros foram à luta pela honra de Menelau.

As previsões de um oráculo apontavam que a cidade sitiada só cairia após dez anos de pelejas. Homero começa sua obra justamente no décimo e último ano do conflito, em um momento crucial para ambos os exércitos. Agamenon havia tomado a cativa Brisêides para ele, desagradando Aquiles, que era amante da jovem. O líder dos mirmidões, então, decide abandonar a guerra, deixando os aqueus enfraquecidos. Ele só decide voltar à luta após seu amigo Pátroclo ser morto em combate - novamente, por influência dos deuses.

A DESCOBERTA DE TRÓIA

A lenda tornou-se realidade em 1870, quando Heinrich Schliemann, um aventureiro alemão obcecado pela história da Ilíada, encontrou os destroços da antiga cidade no território da Turquia

Até a segunda metade do século XVIII da era cristã, a cidade de Tróia não passava de uma lenda supostamente criada por um escritor grego e relatada em um poema composto a partir da tradição oral dos aedos. Contudo, o arqueólogo amador alemão Heinrich Schliemann provou que a história contada por Homero pode ser muito mais real.

O arqueólogo, na realidade, era um sonhador que havia se apaixonado pela narrativa de Tróia durante a infância, e encontrá-la tornou-se sua grande obsessão - mesmo que todos tentassem demovê-lo da idéia de buscar o fictício lar de Príamo.

Após anos de escavação, Schliemann finalmente encontrou a cidade, em 1870, localizada na costa da atual Turquia, no Helesponto (agora chamado de estreito de Dardanelos). Contudo, a glória da descoberta logo foi transformada em mais dúvidas: ele, na verdade, descobriu indícios de mais de um assentamento no local, datados de períodos e tipos de ocupações distintos. Restava, portanto, descobrir qual era a Tróia relatada por Homero.

Esse impasse foi resolvido pouco tempo depois. A Ílion destruída pelos aqueus é a de número VI, embora outra ruína também guarde elementos daquele mesmo período.

Ânfora da região da Ática representa o assassinato do rei Príamo por Neoptólemo, filho de Aquiles

O arqueólogo, no entanto, valeu- se de métodos pouco ortodoxos para expor sua descoberta ao mundo. Ele afirmou ter encontrado o tesouro do próprio Príamo nas ruínas, algo que nunca conseguiu provar de fato. "Assim como Howard Carter (egiptólogo inglês que descobriu a tumba de Tutancâmon), Schliemann era um aventureiro que queria fama e riqueza", conta o arqueólogo Vagner Porto, coordenador da pós-graduação em arqueologia da Unisa.

De qualquer forma, sua descoberta foi fundamental para provar a existência da cidade e da guerra de Tróia. É possível, portanto, afirmar que Heitor, Aquiles e Pátroclo podem mesmo ter existido. Só não se sabe se era da mesma forma descrita por Homero.

Os troianos queimam barcos, no quadro do francês Claude Lorrain (1600-1682)

CONHEÇA AS TRÓIAS

TRÓIA I
A ocupação da cidade data de 3000 antes de Cristo, no início da Era do Bronze.

TRÓIA II
Apresenta indícios de ser uma cidade já cercada por muralhas.

TRÓIA III
Considerada uma cidade de transição entre a estrutura da segunda Tróia para as seguintes, em uma era de mais riquezas.

TRÓIA IV
Há indícios de que a cidade tenha passado por um retrocesso, ficando isolada por um período.

TRÓIA V
A população cresce novamente, fortalecendo o comércio. Há indícios da existência de torres e uma fortificação.

TRÓIA VI (A DA GUERRA)
Provavelmente é a Tróia descrita por Homero, que foi destruída pelas chamas na guerra, em cerca de 1.300 a.C.

TRÓIA VII
Uma tentativa de reconstruir a cidade de Príamo, na transição da Idade do Bronze para a Idade do Ferro.

Página de um manuscrito da Ilíada feito entre os séculos V ou VI. O poema épico de Homero foi escrito no século VIII a.C.

TRÓIA VIII
Colônia grega que atraía peregrinos e viajantes, como o próprio Homero.

TRÓIA IX
Mais uma colônia, desta vez fundada pelos romanos, durante o reinado de Augusto, e abandonada no século V da era cristã.



Durante as batalhas, segundo a narrativa de Homero, os soldados de ambos os lados paravam de lutar para ver de perto os confrontos entre os grandes heróis de ambos os lados. Aquiles, Ajax e Odisseu lutavam sob o estandarte dos aqueus, enquanto Páris, Heitor e Enéias empunhavam suas lanças para proteger a sitiada Tróia. Esses personagens travaram verdadeiras aretéias, ou seja, combates singulares e heróicos. E tudo foi causado pelos deuses.

As divindades não assumiram uma posição na guerra apenas em seu início, mas sim, durante todo o confronto, ora beneficiando os invasores, ora ajudando os atacados. "Atena colocou-se do lado dos aqueus, para ajudá-los, enquanto Ares, o deus que se alegra com a guerra, foi para o lado dos troianos. Deuses e homens misturavam-se na terrível disputa. Também estavam presentes Deimos e Fobos, filhos de Ares, que semeiam o pavor por onde passam, e Éris, a discórdia, irmã de Ares", conta o helenista turco Menelaos Stephanides, em seu livro Ilíada: a guerra de Tróia.

Ílion, no entanto, era mesmo inexpugnável. Do alto das enormes muralhas, os soldados sitiados repeliam os inimigos com lanças, dardos e flechas. As numerosas bigas aquéias eram inúteis naquela situação. Os invasores, então, construíram um enorme cavalo de madeira e deixaram nos portões da cidade. Acreditando ser um presente dos deuses, os troianos levaram a estátua para dentro da cidade e banquetearam até o meio da madrugada. Porém, os melhores heróis de Agamenon estavam escondidos dentro do construto: eles desembarcaram e abriram as portas para o restante do exército. Os inimigos foram massacrados e, finalmente, após dez anos de batalhas, Tróia era destruída.

Nem tudo é verdade na narrativa da guerra, mas os gregos daquela época acreditavam integralmente na história. Os deuses, para os helenos, realmente estiveram naquele conflito. E não estavam na costa do Egeu apenas como expectadores. "Nessa guerra não combateram apenas homens, mas também deuses, que lutaram ainda com maior obstinação que os mortais. Na verdade, a guerra funesta não teria eclodido se os deuses não a houvessem desejado primeiro. Nisso acreditavam os homens daquela época", escreveu Stephanides.

De fato, aqueus e troianos devem mesmo ter se batido por dez anos no século XVIII a.C. Micenas, provaram os arqueólogos, realmente tinha relações comerciais com povos asiáticos e com a própria Tróia. A questão é que quem dominasse os portos da cidade de Príamo teria a hegemonia do Egeu.

Aquiles, triunfante, arrasta o corpo de Heitor em frente aos portões de Tróia - afresco do alemão Franz Matsch (1861-1942)

Homero, o primeiro poeta grego, teria vivido no século VIII a.C., mas ninguém até hoje sabe ao certo se a Ilíada e a Odisséia são mesmo obras de sua autoria. Há até quem duvide que o grego realmente tenha existido

ILÍADA E EDUCAÇÃO

Os combates entre esses heróis e a influência dos deuses, segundo o helenista alemão Werner Jaeger, foram usados por Homero para despertar a virtude, chamada de arete - era um atributo próprio da nobreza, só alcançado por aqueles que impeliam na batalha de forma verdadeiramente heróica. O poeta, continua o pesquisador, considera que virtude era a qualidade moral ou espiritual dos homens, além de seu empenho em busca da glória e da perfeição. "No conceito cavalheiresco, a vitória e a luta são a prova autêntica da virtude humana."

A Ilíada, para Jaeger, é um "testemunho da elevada consciência educadora da nobreza grega primitiva", pois desde aquele período já se mirava na busca pela virtude suprema. Os mitos dos heróis, portanto, eram essenciais para mostrar às pessoas que a ânsia pela honra e pela glória eram sinais claros de arete. Até mesmo o sábio Platão considerava Homero como o grande educador da Hélade.

A narrativa mitológica da batalha, portanto, é muito mais do que um simples estilo estético e literário usado para engrandecer o relato de um conflito bélico. Mais importante do que isso, os elementos míticos eram fundamentais para transmitir essa idéia de glória baseada no sacrifício ao povo. "Uma prova da íntima conexão entre a epopéia e o mito é o fato de Homero usar exemplos míticos para todas as situações imagináveis da vida em que um homem pode estar na presença de outro para o aconselhálo, advertir, admoestar, exortar e lhe proibir ou ordenar qualquer coisa", explica Jaeger.

Aquiles ataca Heitor - obra de Peter Paul Rubens (1577-1640). Segundo a mitologia, Tróia nunca cairia enquanto Heitor estivesse vivo

O helenista continua, em seu livro Paidéia: "O mito serve sempre de instância normativa para a qual apela o orador. Há no seu âmago alguma coisa que tem validade universal. Não tem caráter meramente fictício, embora originalmente seja sem dúvida alguma o sedimento de acontecimentos histórico que alcançaram a imortalidade atrás de uma longa tradição e de interpretação enaltecedora da fantasia criadora da posteridade."

De acordo com Homero, o ponto de partida para a educação nasce a partir do cultivo das qualidades do herói. Sendo assim, os mitos presentes em sua obra serviam de exemplo para mostrar aos gregos quais eram as características essenciais e inexoráveis de um legítimo filho da Hélade, dotado de arete e sempre disposto a se sacrificar por um bem maior, ou seja, havia muito altruísmo naquela sociedade.

Uma prova dessa "utilidade" educadora do mito em prol da virtude está presente em uma fala de Heitor na Ilíada. Na passagem, o príncipe troiano afirma que "lutar pela pátria é um bom augúrio". Vale ressaltar que esse mesmo personagem é morto nas portas da cidade, sob o olhar de centenas de conterrâneos, em uma luta individual contra Aquiles. De forma dramática, ele é estocado no pescoço pelo herói aqueu e morre em agonia. Seu corpo, depois, é violado pelo inimigo: o filho de Tétis amarra o rival em sua biga e o arrasta até o acampamento de Agamenon.

Para Jaeger, a Ilíada é o "testemunho da elevada consciência educadora da nobreza grega primitiva".

DA MONARQUIA À DEMOCRACIA

Alguns séculos depois da guerra de Tróia, os tempos mudaram na Hélade e muitos costumes locais foram substituídos. Os gregos já não podiam mais viver sob aquele tipo de sociedade, na qual monarcas mandavam com poderes irrestritos, e isso demandava alterações radicais. Contudo, vale lembrar que Ílion não foi o único reino destruído naquela época. Segundo o historiador Robert Drews, da Universidade de Vanderbilt (Estados Unidos), inúmeros palácios caíram naquele período, causando o fim da Idade do Bronze. Tebas, Micenas, Tirinto e Canaã tiveram o mesmo destino da cidade de Príamo.

Um dos motivos foi a mudança na estrutura militar. No caso da Hélade, os gregos abriram mão das eficientes cavalarias e, com isso, desenvolveram um novo tipo de estratégia bélica para fortalecer as infantarias. O problema é que, até então, os carros de guerra eram as armas mais eficazes de combate: um condutor bem treinado guiava a biga enquanto "passageiros" atiravam lanças e flechas nos inimigos. Os novos exércitos foram obrigados a encontrar formas de combater essas máquinas militares de forma mais eficiente.

Com isso, as batalhas envolvendo cavalarias e bigas foram substituídas por pelejas entre homens a pé, os cidadãos-soldados: pessoas que passavam a fazer parte da sociedade de forma mais incisiva e, além disso, vivenciavam a rotina do exército e da polis.

Assim, os clãs foram extintos, para que todos os homens fossem agrupados em uma mesma cidade, onde poderiam treinar em conjunto por mais tempo para se preparar melhor para a guerra. Isso fez que não tivessem apenas relações familiares, mas sim com os pares, criando um sentimento de cidadania coletiva. Era uma forma de despertar conceitos cívicos nas pessoas. Além disso, os heróis também se transformaram em figuras ultrapassadas. Não havia mais espaço para guerreiros como Aquiles e Heitor, que deixavam os companheiros para trás a fim de ir de encontro ao adversário para obter glórias individuais. Tudo passa a girar em torno da sobrevivência da cidade: os soldados deveriam permanecer unidos no campo de batalha para minimizar os riscos de derrota e, desta forma, resguardar a polis. "O herói homérico, o bom condutor de carros, podia ainda sobreviver na pessoa do hippeis; já não tem muita coisa em comum com o hoplita, esse soldado-cidadão. O que contava no primeiro era a façanha individual, a proeza feita em combate singular", explica o helenista Jean-Pierre Vernant em seu clássico As origens do pensamento grego. "Mas o hoplita não conhece o combate singular; deve recusar, se lhe oferecer, a tentação de uma proeza puramente individual. É o homem da batalha de braço a braço, da luta ombro a ombro. Foi treinado em manter a posição, marchar em ordem, lançar-se com passos iguais contra o inimigo, cuidar, no meio da peleja, de não deixar sem posto."

Os troianos arrastam o cavalo deixado pelos gregos para dentro de Tróia - obra do pintor italiano Giovanni Domenico Tiepolo (1727- 1804)argumenta que o desejo está sempre relacionado à autodenominação do sujeito

Depois da guerra de Tróia, não havia mais espaço para guerreiros como Aquiles e Heitor, que buscavam glórias individuais

Nesse novo conceito de exército, as infantarias dependiam muito da força do conjunto e da unidade, portanto, todos os homens deveriam se unir como um só bloco para vencer as batalhas. Surgem aí as temíveis falanges, em que os guerreiros passavam a vida toda treinando para desenvolver uma "dependência" de um para com o outro. Deste modo, os generais formavam unidades de combate sólidas e coesas - como ocorreu com a eficiente infantaria de Esparta, que de tão competente foi apelidada de "usina de cadáveres" durante a Segunda Guerra Médica.

Com a mudança, os monarcas também perderam seu espaço, afinal, os homens já viviam em conjunto para o bem comum da polis, então, sentiam-se capazes de decidir os rumos políticos da cidade-estado. O cidadão passa a se confundir com o soldado, pois a partir do momento em que ganha direitos, também assume seus deveres com a defesa da pátria. Os reis espartanos foram reduzidos a meros generais, sem desempenhar funções administrativas, mas apenas militares. Em seu lugar, quem passou a tomar as decisões políticas foram os conselhos criados pelo legislador Licurgo, que na verdade são os primeiros focos de instituições democráticas no Mundo Antigo.

O período da grande batalha de Tróia e das memoráveis aretéias entre heróis lendários chegava ao fim porque os homens, treinados para ficar unidos nas guerras, passaram a querer lutar juntos para decidir os rumos da comunidade, de forma coletiva. Caem os reis e, no lugar, ergue-se a imponente democracia. "A formação do exército no período clássico carrega elementos das relações sociais, tanto no caso dos espartanos como dos atenienses", explica Álvaro Allegrette, da PUC. "Com as mudanças sociais, as pessoas passaram a viver em comunidade e, assim, as relações entre os cidadãos fica mais evidente."

Depois de Tróia, surgiram as falanges gregas, um novo tipo de exército em que os guerreiros dependiam uns dos outros

A polis, explica Werner Jaeger, representa um princípio novo para os helenos, com reflexos importantes para a vida nas cidades, e surge também a definição de Estado, criado em Esparta: essa instituição pública representa, pela primeira vez, o agente educador do povo.

Hesíodo, outro poeta grego da Antiguidade, dizia que o heroísmo não surge apenas nos combates. Segundo ele, em O Trabalho e os Dias, o verdadeiro herói mítico e exemplar é forjado em qualquer situação nas quais a disciplina é necessária para enaltecer as qualidades humanas. Um desses momentos era o ato erguer-se na ágora e, dotado de um senso cidadão apurado, incitar o povo a votar por mudanças importantes para a vida coletiva. Isso reforça a idéia de que era fundamental aprimorar a erudição do povo. A educação seria, portanto, uma forma de obter mais condições de tomar decisões coletivas corretas. Surgem, assim, os políticos (a própria palavra deriva de polis).

A fuga da bela Helena com Páris foi o estopim para a Guerra de Tróia, quadro do pintor Francesco Primaticcio

REFERÊNCIAS
CAMPOS, Haroldo (tradução). Ilíada: Volume I. São Paulo: 2002, Editora Arx. ________________________. Ilíada: Volume II. São Paulo: 2002, Editora Arx.
DREWS, Robert. The end of the Bronze Age: changes in warfare and the catastrophe 1200 B.C. New Jersey: 1993, Princeton University Press.
HOMERO. The Iliad. Londres: 2003, Wordsworth Classics.
JAEGER, Werner. Paidéia. São Paulo: 1995, Martins Fontes.
STEPHANIDES, Menelaos. Ilíada: a guerra de Tróia. São Paulo: 2004, Odysseys, 3ª edição.
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro: 1998, Bertrand Brasil, 10ª edição.

RODRIGO GALLO é jornalista e escreve para esta publicação.

Revista Leituras da Historia

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