quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Mulheres em movimento: histórias do feminismo pela fotografia


Mulheres em movimento: histórias do feminismo pela fotografia*

Juliana PerucchiI; Karla Galvão AdriãoII

IPsicóloga, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e pesquisadora do Núcleo MARGENS/UFSC. jperucchi@hotmail.com
IIPsicóloga, doutoranda no Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, sócia fundadora do Instituto Papai e pesquisadora do Núcleo MARGENS/UFSC. kgalvaoadriao@hotmail.com



A proliferação vertiginosa de ensaios fotográficos com foco nos movimentos sociais tem evidenciado a contribuição da fotografia não apenas para o registro histórico desses processos, mas, sobretudo, para que se possa rever certas posturas, suprir lacunas e legitimar estratégias de lutas. Ao mesmo tempo em que resgatam o cotidiano da militância feminista, onde as possibilidades se apresentam como bandeiras que buscam a unidade/pluralidade do sujeito "mulheres", enquanto estratégia política, o material histórico contemplado pela fotografia, remete a este lugar de pesquisadoras militantes feministas, em diálogo com o campo.

O acervo fotográfico reunido no livro Mulheres e movimentos, da fotógrafa Claudia Ferreira e da socióloga Claudia Bonan (que assina os textos ao longo da obra), lançado em março de 2005, reúne fotos que retratam a história dos últimos 15 anos do movimento feminista no Brasil e na América Latina, discutindo as relações de Gênero e como estas são representadas no cotidiano do movimento. A história do livro começa quando Claudia Ferreira fotografou o 8º Encontro Nacional Feminista, ocorrido em 1989 em Bertioga, São Paulo. Fotógrafa e câmera começam ali sua trajetória na captura de imagens de mulheres no movimento feminista. Mas como relatam as próprias autoras, a história do livro começa antes, em 1975, quando, pela primeira vez, a ONU institui o Ano Internacional da Mulher e dedica a década seguinte às mulheres do mundo inteiro. Os registros da presença das mulheres na vida política e nas manifestações sociais do feminismo estão reunidos em 260 fotos que retratam as personagens, a militância, as reivindicações e bandeiras de luta, os encontros, seminários, protestos, enfim, momentos e pessoas importantes do feminismo nos últimos anos.

O livro parece mostrar um lado do feminismo que o grande público não conhece. A idéia de que o movimento feminista continua queimando sutiãs em praça pública, de que as feministas são mulheres mal amadas, recalcadas, chatas e mal humoradas ainda atravessa concepções do senso comum. O livro pretende mostrar que as reivindicações feministas, apesar de serem todas muito sérias, importantes e bem articuladas, são feitas e encaminhadas pelas militantes com bom humor e de maneira bastante criativa e festiva. Embora em preto e branco, as fotos retratam o colorido e o brilho do movimento. A estrutura do livro foi organizada de modo a fugir da maneira mais simplista de contar a história, que seria pela cronologia linear: o que aconteceu antes, o durante e o depois. O resgate fotográfico escapa brilhantemente dessa linearidade e transgride a cronologia.

O primeiro capítulo retrata o Movimento Feminista ao longo dos anos 90 na América Latina e no Brasil, tratando dos grandes temas da agenda feminista – direitos sexuais e reprodutivos, violência de gênero, acesso ao trabalho.

O segundo capítulo é dedicado aos encontros feministas brasileiros, apresentados e retratados como momentos de articulação e de convivência feminista, espaços de troca de idéias, de organização e articulação das reivindicações, retratados em sua seriedade, mas também em sua informalidade e intimidade. Ou seja, espaços de constituição de um ethos feminista, onde se aprende e se apreende as relações de desigualdade de gênero – desde as vivências intimistas de grupos de discussão, retomando a égide "nosso corpo nos pertence", até pautas da agenda transnacional de reivindicações dos movimentos feministas e de mulheres.

O terceiro capítulo do livro retrata a participação das feministas nas conferências internacionais. Com a participação de aproximadamente 500 brasileiras, a conferência de Beijing ganhou representação especial, assim como a de Durban e a ECO92.

No quarto capítulo, as autoras apresentam as perspectivas para o terceiro milênio, dois grandes acontecimentos estão em foco: o processo de conferências organizado pela Articulação de Mulheres Brasileiras (importante rede nacional feminista, que articula os 27 fóruns de mulheres estaduais), que se iniciou em abril de 2000 e tinha como objetivo a realização de uma conferência nacional de mulheres que sintetizasse em uma plataforma a agenda feminista de longo prazo e que apresentasse as mulheres como sujeitos políticos no contexto eleitoral de 2002. Esta conferência ganhou destaque pelas lentes de Claudia Ferreira e pelo texto de Claudia Bonan, exatamente pela importância deste evento no panorama feminista nacional. Entre os vários desdobramentos, o principal resultado foi a Plataforma Política Feminista, construída no processo da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras (CNMB), em Brasília, junho de 2002.

O livro retrata o movimento feminista que o grande público não conhece. A fotógrafa teve interesse especial em divulgar o movimento para além do público feminista, mas também para esse público, e retratar o que as feministas estão fazendo ao longo desses anos. Esta perspectiva, da própria fotógrafa e militante, deu visibilidade ao movimento. O livro não se pretende restrito às militantes feministas – protagonistas das fotografias reunidas na obra –, tampouco aos estudiosos das teorias feministas, talvez por isso tenha ultrapassado os limites do movimento, estendendo-se ao campo da produção artística, apesar de manter a referência teórica e histórica das lutas feministas.

Para além de atestar a existência de personagens, atos de militância, reivindicações, encontros, seminários, protestos, as fotos de Claudia Ferreira afirmam a presença do movimento feminista na realidade brasileira e latinoamericana de modo contundente há, pelo menos, mas não apenas, quinze anos. Os instantes capturados pela lente da fotógrafa permitem ler as peças de um quebra-cabeça que contempla os processos de construção democrática, articulação política, proposição de políticas públicas, mudanças na legislação, transformações nos arranjos sociais, enfim, dos desdobramentos que se processaram no Brasil ocasionados, não exclusivamente, mas muito fortemente, por situações e por pessoas ali retratadas.

Se a imagem que se tinha do movimento feminista, e das pessoas que dele fizeram parte ao longo desses anos, era carregada de concepções equivocadas, as fotos de Claudia Ferreira evidenciam outras existências neste movimento: pessoas felizes, festivas, comprometidas, sérias, porém, bem humoradas, que amam tanto suas bandeiras de luta, quanto suas companheiras de luta.

Talvez a característica mais marcante do livro, especialmente das fotografias, seja o impacto que elas têm no sentido de refutar concepções preconceituosas que comumente definem o feminismo. As fotos ali reunidas são testemunhos de algo que nós, feministas, já sabemos: o feminismo não é um movimento composto exclusivamente de mulheres, brancas, assexuadas, de camadas médias e da elite, intelectualizadas e urbanas. O feminismo é, acima de tudo, um movimento plural, que agrega diferentes pessoas, de diferentes camadas sociais, de múltiplas etnias, com diferentes crenças religiosas, de diversas orientações sexuais e oriundas de diferentes contextos territoriais. O feminismo não é sisudo, mal amado ou chato. Se nos arriscássemos a brincar com as autoras e colocássemos uma legenda geral para as fotos, poderíamos utilizar uma citação de Carmen da Silva, tirada do próprio livro: "Digam o que disserem, o Feminismo é uma festa!".

Esse debate também vem contribuir para as discussões na atualidade em torno de possíveis identidades feministas. Ou seja, quais referentes constituem as mulheres enquanto grupo-movimento reivindicatório. Ao mesmo tempo, coloca a discussão em torno de: se o que une as mulheres em torno de processos de desigualdade está marcado em seus corpos (se é que os corpos são atestado de concretude dissecada em uma binaridade natureza-cultura), então, é sobretudo essa concretude que as torna mulheres – sexo feminino – seres unidos neste mesmo conjunto-movimento reivindicatório.

Assim, as fotos que compõem o livro são de mulheres – corpos femininos. Mulheres diversas, em diversidade. São mulheres que fazem os movimentos feministas pós-terceira onda, onde a diferença faz-se presente dentro do próprio movimento. Processos de diferença demarcados através da existência de diversos grupos que buscam processos de igualdade, enfaticamente marcados nestas diferenças. Além de compor um belíssimo ensaio fotográfico, este livro aponta para um entendimento do percurso de nosso passado e reflexão de nosso presente, vislumbrando as pautas das contradições atuais e futuras do movimento feminista na América Latina.

* Mulheres e movimentos, Claudia Ferreira e Claudia Bonan, Rio de Janeiro, Aeroplano, 2005, 208p.

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