sábado, 25 de setembro de 2010

Mitos que metem medo


Em outubro, em várias partes do mundo, comemora-se o Halloween, ou Dia das Bruxas. Tradição norte-americana. Mas será que é o caso de importar lendas alheias se temos tantos mitos capazes de botar qualquer bruxinha na sandália? Para rebater a data, há quem defenda: 31 de outubro é o Dia do Saci. Do Saci e de toda a sua turma, esses meliantes que vivem à solta, praticando toda sorte de malfeitorias. É hora de puxar a ficha corrida dessa gente e dar o veredicto. Podemos ou não tolerar tamanha série de abomináveis maldades? E mais: haverá cadeia capaz de conter a imaginação?

Atenção. Eles são capazes de qualquer coisa. De azedar o leite a raptar crianças que teimam em não dormir; de tirar gente do rumo de casa a roubar presentes. Quebram pontas de agulha, desferem coices, queimam os desavisados. Tem de todo tipo, pra todo gosto e de todos os cantos. O Cabeça de Cuia vem do Piauí; o Negrinho do Pastoreio, do Rio Grande do Sul; a Cobra Norato, do Pará; o Tibanaré, do Mato Grosso. Tem uns que não se sabe nem de onde vêm. A quadrilha é tão extensa que não caberia num ALMANAQUE todinho dedicado a ela.
Ao longo do tempo, perseguida, essa turma acabou se refugiando longe das histórias que contamos para as crianças. Em 1947, Câmara Cascudo já alertava para o risco de extinção. Em Geografia dos Mitos Brasileiros, para garantir-lhes sobrevida, resolveu prendê-los num campo, bem pobre e curto, mas enfim um campinho onde poderão ser vistos em maior número que no meio das matas, dos capoeirões e das várzeas brasileiras, dos rios, dos ares e das montanhas da Pátria. Fez efeito. Hoje, parte fundamental dos registros sobre a nossa riqueza mitológica está nas páginas do patrono deste ALMANAQUE. E de lá, vira-e-mexe, saltam de volta para o terreno da imaginação dos leitores.

Mal necessário
Segundo o crítico literário Fábio Lucas, os mitos brasileiros servem de referência para que nos identifiquemos enquanto grupo social. “Se alguém fala na Iara, por exemplo, você sabe que é brasileiro. A nação identifica esses símbolos.” No interior do País, lendas viram romances e cantorias em feiras. “Remetem a tempos fabulosos, em que o homem era um prolongamento da natureza, as árvores e os animais falavam”, completa.
Este atenuante é válido. Mas como justificar o medo que instilam nas pessoas, dos senis aos mais jovens? O psicanalista Mário Corso, no livro Monstruário, defende que essa sensação colabora para nosso bem-estar: “É ótimo para as crianças. É mais fácil saber do que se tem medo. Ruim com eles, pior sem”. Para Mário, na cultura ocidental, Deus e o Diabo travam batalha sem fim: enquanto um organiza, o outro bagunça o mundo. E com os dois em baixa atualmente, os entes fantasiosos cumprem bem o papel. “Precisamos desses monstros, pois sozinhos não conseguimos explicar o mal, por isso criamos símbolos para sintetizá-lo”. Que tenha início então o julgamento.

SACI


Já foi tema de livros, filmes e programas de tevê. Há três tipos: o Saci Trique, o Saçurá e o Pererê. Os dois primeiros são coadjuvantes, mas o último, com vocação para a liderança, é altamente perigoso. Delinqüente de uma perna só, com capuz vermelho e cachimbo na boca, é acusado de amarrar o rabo de cavalos, atormentar cachorros e atropelar galinhas. Na cozinha, estraga a sopa, azeda o leite, além de queimar a comida. Apronta também com as costureiras, derrubando dedais, quebrando a ponta de agulhas, escondendo tesouras e embaraçando novelos. Deixa os pregos de ponta para cima. Apesar da brandura de suas malvadezas, é réu reincidente. Prova disso é que Monteiro Lobato, já em 1918, compilou num inquérito as acusações que pesavam sobre o malandrinho, reunindo depoimentos de crianças de todo o Brasil - hoje, seguramente, todas avós, bisavós e tataravós.AcusaçãoCrime de injúria, caracterizado por ferir a honra pessoal da vítima. A ação penal prossegue mediante representação. Detenção de um a seis meses, ou multa, caso não haja acusações de maltrato a animais.
SACI

Criminoso astuto, começou suas atividades sabe-se lá onde. Para alguns, veio da Grécia, onde Licaon, rei da Arcádia, teria servido carne humana a Zeus. Furioso, o deus supremo o teria transformado em lobo. Fugiu então para Roma. Perambulou por séculos pela Europa. Depois de muito fugir, o maldito veio parar no Brasil. Dizem que se esconde hoje na paulista Joanópolis, no sopé da Serra da Mantiqueira, embora haja indícios que não seja um, mas muitos.
Corre à boca pequena que leva vida dupla: de dia age naturalmente, sem despertar suspeitas. Mas em noite de Lua Cheia transforma-se em lobo. Vagando sobre quatro patas, se não mata suas vítimas, transforma-as em lobisomem. No dia seguinte, o bandido acorda com as roupas rasgadas, cansado, apático, amarelo.
A ciência ainda não descobriu cura para readaptar esse tipo à sociedade. Armas comuns são inúteis. Só há duas maneiras de contê-lo, dizem: tiro de bala de prata ou com projétil revestido de cera de vela de altar, no qual celebraram-se três missas natalinas.

SACI

Acusação
Homicídio qualificado praticado por motivo fútil: vai a júri popular. Crime hediondo. Pena de 12 a 30 anos. Caso fosse réu primário, poderia cumprir parte da pena em regime aberto. Como é estrangeiro clandestino, está sujeito a extradição sumária.

CUCA

Também conhecida como Coca, é velha, feia e desgrenhada. Aparece de noite para levar embora criança s inquietas, que teimam em não dormir quando os pais mandam. Não por acaso, existe uma canção de ninar ( na verdade um aviso para os mais levados): Nana, neném, que a Cuca vem pegar/Papai foi pra roça, mamãe pro cafezal.
Articulou um a quadrilha que possibilita agir simultaneamente em várias regiões do País, raptando crianças sem deixar rastro. Em diversas partes do mundo sabe-se de sua existência. Recentemente, passou por transformações tão radicais que testemunhas relataram parecer-se mais com um dragão, ou um jacaré: tem o corpo repleto de escamas, uma boca enorme e uma cabeleira vermelha (não se sabe se usa tintura).

SACI

Acusação
Formação de quadrilha. Artigo 288 do Código Penal. Pena de um a três anos. Cárcere privado: até três anos de reclusão. Reincidente, circunstância agravante que aumenta o tempo de pena. Para diminuí-la, a defesa pode alegar crime continuado (dois ou mais crimes da mesma espécie).

Ouvidas as testemunhas, acusações e defesas, este ALMANAQUE resolve livrar a barra dos acusados. A favor deles pesam os seguintes fatos: aguçam a curiosidade, revelam sobre nossa identidade, estimulam a criatividade, engrossam com muita sustança nosso caldo cultural. Que venham novos acusados, que se somem mais relatos, que se crie , no fértil terreno das idéias, tantos campos quanto puderem abrigar nossas lendas e mitos. E nem poderia mesmo ser diferente. Eles se multiplicam, estão em qualquer lugar, surgem a qualquer hora em que se risque a fagulha de novas histórias. Afinal, haverá cadeia capaz de aprisionar a imaginação?
Consultoria jurídica: Leonardo Sica e Bruno Caires

SAIBA MAIS

Monstruário: inventário de entidades imaginárias e de mitos brasileiros, de Mário Corso (Tomo Editorial, 2004).
Geografia dos Mitos Brasileiros, de Câmara Cascudo (Global, 2002).
Danilo Ribeiro Gallucci

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