sábado, 25 de setembro de 2010

MITOS BRASILEIROS

MITOS BRASILEIROS

Passemos em análise, mas a título de simples lembrança, alguns Mitos brasileiros catalogados e distribuídos por Basílio de Magalhães, um dos mais brilhantes espíritos de nossa geração, a quem muito admiramos pela cultura que esponta em tudo que lhe sai da pena fulgurante e pela admirável honestidade com que aborda todos os assuntos.

Sem essa revista, que em nada critica ou diminui o que ele disse, ficaria incompleta a primeira parte deste livro e de algum modo sacrificados estudos que virão adiante.

Quase ninguém liga mais ao Lobisomem, à Mula sem cabeça e à Porca-Mole, especialmente no Recôncavo Baiano. onde há tantos mitos e tantas "histórias" diferentes para se ouvir e contar que esses passaram ao rol das futilidades folclóricas. Os motivos, de tão batidos e de tão escassos de interesse, são sempre os mesmos e a estrutura das peças passou a ser parasitária de outros do nosso riquíssimo e quase desconhecido Fabulário Popular.

Talvez, sem tais quedas perceberem e querendo reviver e reanimar mitos agonizantes e que vão desaparecendo a galope do farto repertório dos acalôs, alguns Folcloristas menos avisados andem, por isso, a ver sempre lobisomens, mulas sem cabeça e porcas-moles nos personagens de outros contos, favorecendo assim, com tais e tão esdrúxulas deduções, teses verdadeiramente falsas que se apoiam em hábitos inveterados de "escolas" e de "mestres" e em peças por demais suspeitas de transformação e mescla no curso da vulgarização.

Nós, os do Norte, rimos sempre dos que, sem virem por esses mundos em que as tradições vivem, metem-se, do alto de seus tamanquinhos, a afirmar a mentira de estar o nosso Folclore eivado de equivalências, semelhanças e igualdades, como, por exemplo, Caiçara e Caipora, Caipora e Curupira, Curupira e Jurupari, quando a verdade é que, os Folcloristas sempre tiveram preguiça de os distinguir e confrontar, restabelecendo-os e limitando os característicos e os atributos de cada um.

Dos mitos ameríndios, o do Saci-Pererê assumiu, — do paralelo 20 Lat. S. até os limites do Brasil com o Paraguai, o Uruguai e a Argentina, — todos os vultos de bondade, de brejeirice, de esperteza, de devoção religiosa, de carpideira atroz dos defuntos e até de gaio de fábula, com todas as mazelas e todas as virtudes dos companheiros europeus, africanos, asiáticos e regionais, não sendo mesmo difícil que já tenha aparecido de casaca a disputar uma corrida de automóveis, ou fardado, dentro dum avião de bombardeio, a explorar estratosfera.

Modesta ave noturna de uma perna só em 1850, não é de duvidar um dia venha a ser o símbolo da Criação Brasileira.

Felizmente, na Bahia não existe esse degenerado Saci-Pererê. Nem na Bahia, nem no Norte.

Por essas bandas, especialmente no Recôncavo, temos o Sassu, — beija-flor, — famigerado ladrão de moças bonitas, bem empernadas, que aos noivos não cabe possuir, mas a ele que é perdidinho por donzelas. Um sátiro sem cornos nem pés de hircino, ou melhor, um sultãozinho alado, que vem dos tempos da Colônia e não tem, como o infeliz Saci, — pelo menos no nome, — um olho doente, mas lindos e grandes olhos negros, (sassu), — e ambos vivos, arregalados, tentadores e invencíveis (pererê).

Sassu fez tantos furtos e adivinhou tais coisas de amor que o crioulo baiano o materializou no Sussu, — um povo sundanês cujos homens viviam pelos candomblés do Garcia e da Cruz do Cosme a papar donzelas, — levando-o numa segunda-feira do Bonfim, ao som de canzás e agogôs e outros instrumentos afronegros, à denuncia: —

Sussu, sossegue,

Vá dormir seu sono.

Tá com medo, diga.

Quer dinheiro, tome.

Ficou o Sessu-Sossegue por uns tempos nas cantigas populares, mas um dia a Polícia acordou e varejou os terreiros à procura dos Sussus-suberês, que sabem tudo que se sabe e o que não se sabe, e mandou-os às pulgas da Correção.

Isso foi um incidente sem importância no anedotário do Sassu, pois nem lhe pegou a alcunha de Martim Pereira, nome de um português, caixeirinho de venda, e escolhido para desposar a filha do patrão, airada de amores por um moço que, depois de muitos anos de carinhos, lhe fugira de uma vez.

Martim Pereira caiu na sinonímia do Tapa-Buraco, do Pedreiro Martim, do Seu Pereira e de outros tantos despidos de poesia e de encantos que tem o Sossu, todo ternura e todo belezas, mimese perfeita do Deus do Amor, metamorfizando-se em moço ou em menino nos leitos das donzelas, mas sempre o mesmo Beija-flor ou o Beija-florzinho do Folclore Baiano.

Sussu aparece com esses nomes no fabulário recolhido por Silva Campos e publicado por Basílio de Magalhães, sem o ameríndio, que substituiu o de Chibamba, Zizi das moças casadeiras, diferente de todos os Sacis, de todos os Martins,de todos os Negrinhos, de todos Os Yacis do Brasil, — não sendo ele o Romãozinho, Sussu dos crioulos da Bahia que emigrou para o sul do Estado e daí para Minas Gerais.

O mito do fogo-falso tem sido puro veículo de propaganda católica e de exibição dos letrados. É um dos que necessita ser buscado de novo na boca do ameríndio para se ter a certeza da realidade.

Minhocão, mineiro, sertanejo? Pois sim. A Boiuna, como a Boiassu, são "almas" muito baratas de Boianan, a serpente fantasma, e de Aboinan, a minhoca fantasma, mito com que os ameríndios explicavam, — e ainda hoje explicam, — a origem de Paraguassu, capital deles, que era a Bahia, e de como se formaram suas montanhas e apareceram os animais que substituiram os existentes antes do dilúvio em que Boinas, ou mais seguramente Amboianan, passou pela faquirização, fenômeno esse comum na vida dos jacarés, pitus, &.

Uirá e também Yara, o Pai e a Mãe-d'água, perderam a virtude diante de Iemanjá, de Janaína, de Anamburucu, de Quianda, e de outras chimbis afronegras.

Uiara, andrógino, seduziu-se a si próprio, despertou o libido, fez-se mulher, Iara, para se prostituir ou para ser infeliz como esposa e assim perder a virgindade (para a honra da Igreja) e a divindade (para glória do Fetichismo). Essa é a lenda moderna. Ypu-pi-ára não é Uiara. Na tradição de alguns pontos do Recôncavo, Uiara morreu dentro do corpo de Iara, que ficou viva, e, em vez dele, ou de seu espírito, nasceu Ypipiara, - que foi morar no fundo do mar, de quem Iara tinha horror, não se vendo, jamais um no outro.

A "verdade", porém, não é essa. Veremos, em outro livro, quem são Iara, Uiara e Ypi ou Ypupiara

Tutu, Bicho e Mandu têm feito cócegas na sabedoria e calombos na inteligência de muitos de nossos Folcloristas e até hoje só os têm feito cambês, zarês, manês, zambês e marambaias. Quem manda essas "crenças" se meterem com "gente do mato?"

Mãe do Ouro, paulista, paranaense, gaúcha? Veio da África, na bagagem dos escravos, com Mãe da Chuva, em companhia de Mãe do Mundo, — mitos dos primeiros tempos da Humanidade. Andam. pelo Norte afora, em lindos contos — (no Pará, no Maranhão, no Ceará, em Pernambuco, em Alagoas, na Bahia), — de feição primitivamente árabe, por demais estragados pela vulgarização, sem perderem entretanto suas linhas mestras de beleza.

O Curupira não se desmoralizou ainda no Norte do Brasil. Em Minas Gerais, o Saci fê-lo negrinho em vez de caboclo, roubou-lhe uns tantos adornos e umas tantas roupas e andou a fazer visagens nas estradas.

Desovergonhado esse Saci: — atira para os outros o que é dele e aparece até promovendo tempestades para naufraga galeras...

Yurupari, cuja lenda só tem belezas na Amazônia, ainda aparece, com chifres e cauda de Satanás que os Padres da catequese lhe botaram.

os Folcloristas de agora, seguindo o exemplo dos etnólogos que por lá tem andado, podem, rindo-se das penas da excomunhão, elevá-lo ao trono que lhe cabe na tradição ameríndia.

AS lendas do Irapuru do Norte, ou do Inhamburu do Nordeste até o sul da Bahia, lindas de poesia e de felicidade, infelizmente são raras nos registros folclóricos e ainda no verso brasileiro. Como elas, as do Tongará, que dança ao som de sua própria música.

O mito do Mapin-guari é antigo na costa e no interior do Brasil, desde a Bahia até o extremo Norte.

Já aparece, nas "histórias" que a ele se referem,

o meio de matá-lo: — tiro do umbigo. Isso é puro reflexo da ação sudanesa no Folclore trazido pelos bantos que se transmitiu aos mitos ameríndios. No Recôncavo da Bahia, como no Baixo São Francisco (Sergipe - Alagoas) não encontramos essa perversão.

O Quibungo tem metido, na barriga das costas, muita gente boa.

O verdadeiro "perdeu as forças", mas sua "história", como totem angolês, é a pagina mais formidável da tradição afronegra no Brasil. Dela é que se poderá partir para a reconstituição do mito, aliás muito confuso no Fabulário que tem sido o entusiasmo de seus admiradores.

Mãe do Cabelo, nem mineira, nem afronegra. É parte da Cuiassara, que é uma mina de mitos.

A Cuiassara é haitiana. Os escritores chamam-na Caissara e dizem ser o mesmo que Caipora, embora muitos grafem caa-çara e caa-póra para mentirem com mais "inteligência".

No último quarto do século XIX, Vale Cabral descobriu, na Bahia, o Tutu-Zambê "incorporando-se" num porco. Toda gente riu-se, riram-se os Tutus, e até as pedras riram-se. Chibamba, que é o "rei dos encantados", convidou todo mundo para ver o filhinho do Tutu-Zambê com a Queixada de Vale Cabral. — Que beleza era o pimpolho! Mentira pura, todo mentira. Disforme, nasceu morto. — Os bichos riam-se ainda mais vendo também o retrato de Chibamba pintado, em Minas Gerais, pelo mesmo senhor: — "Anda envolto em longa esteira de bananeira, ronca como porco e dança compassadamente". Chibamba riu-se de mitógrafo...

A Mão-Pelada vive na boca dos caçadores, desde o Ceará até o Norte de Minas Gerais e ainda em território goiano, mas sua ideação é confusa ao sair dessa região.

O Corpo-Seco, de São Paulo, não é realmente a Cabeça de Cuia do Piaui, mas os dois são remanescentes de "histórias de excomunhão" trazida de Roma aos pais brasileiros de outros tempos. Ainda hoje há quem comungue filhos.

Pelo Rio Grande do Sul andam umas lendas de tesouros encantados que também nascem e crescem no Norte e no Centro do Brasil. Por lá correm umas "histórias" da Mulita, dos Zahoris, do Teiú-yaguá e do Nhandu-tata desconhecidas desde o território fluminenese até as regiões equatoriais. A do Boi Barroso é muito parecida com as do Boi Amarelo, Boi Branco, Boi Espacio, Boi Chita e de outros Bois, inclusive mesmo o Barroso, que figuram nos rimários dos vaqueiros das regiões pastoris do resto do Brasil.

E assim deixamos, em traços largos, a "história" dos chamados mitos principais e regionais do Folclore Brasileiro que os folcloristas deveriam ter escrito para chegarem, sem mais auxilio, às seguintes conclusões:

1.° — os mitos havidos como principais refletem uma grande confusão, ou porque os afronegros houvessem "alterado" ou "renovado" os ameríndios, ou porque uns e outros houvessem crescido ou diminuído em atributos próprios ou emprestados;

2.° — mesmo que não existissem, como existem, tribos selvagens e semicivilizadas, além das aldeadas oficialmente ou já emancipadas, em territórios baiano, mineiro, paulista, &. há nessa confusão que os Indianistas e Folcloristas primam em ativar, sem a esclarecer, um tanto de desleixo, senão de descrédito para os intelectuais que não entram em contato com as massas, — pois a Amazônia é onde a influência afronegra não conseguiu penetrar a selva, ou melhor, é o tesouro de tudo que se pode buscar por intermédio do nheengatu, que é, mais ou menos o mesmo tupi que serviu de base à Língua Geral Brasílica;

3.º — não valeram as pesquisas, as obras, os anos de martírio dos naturalistas e outros sábios que se internaram pelas matas virgens para ao menos termos destruída essa confusão e restabelecidos mitos ameríndio em seus predicados e em seus característicos primitivos, pois, a fora muitos casos berrantes, nem Indianistas, nem Folcloristas que escrevem caa-pora fizeram a identificação do verdadeiro e do único Caa-pora, tapir ou tapira, icurê, anta, o morador das selvas, nem do gênio (?), i-cai-pora, Caipora, que aliás não mora no caitetu, - cai-(tetu)-pora;

4.º — tem sido mesmo, caiporas os mitos do nosso abundante e riquíssimo Folclore, todos varejados pela incursão de outros que podem e devem ser reconstituídos.

Sejamos sinceros diante desse espetáculo de carcaças de mitos que passam aos nossos olhos nos livros, nas revistas, nos jornais, nos desenhos.

Assemelham-se a variolosos abandonados em plena via publica que a Polícia atira em casas rotuladas de hospitais, mas sem leitos, sem remédios, sem cuidados, sem clínicos e até sem telhas. Os "benfeitores", que nada fazem para suavizar a agonia de tantos infelizes, "merecem" retratos nas páginas de topo dos periódicos encabeçando entrevistas sobre os progressos da pomada na Europa e na América. Enquanto isso, a peste vai se alastrando mais e as vidas se esvaem ao relento e à mingua.

Esse estado de coisas não se justifica na altura em que vão a Ciência e as Letras no Brasil, atingindo níveis superiores e pronunciadamente novos. Tudo que se tem feito no Folclore quase destoa desses máximos e da independência que a nossa formidável capacidade intelectual se empenha em aumentar.

Nem o registro das Tradições Populares mereceu consecutivos tratos após a febre que reinou no Império e veio aos primeiros tempos da República: — tudo está pedindo se volte a percutir seus bronzes que parecem carcomidos até pelo caruncho.

A mitologia ameríndia, salvo a que se coligiu e veio a lume e a que se fantasiou nos estilos pomposos de nossos polígrafos, vive cheia de belezas e de imaginação do "selvagens" no Norte do Brasil.

Os vastos cabedais que a Amazônia poderia oferecer aos que se entregam a tais misteres desafiam o gênio humano a buscá-los e transferi-los aos patrimônios da Tradição Americana como joias que, se não se emparelham com as dos povos desde cedo trabalhados pela cultura, também não perdem para as primitivas civilizações de outros.

E nem se necessitava ir tão a fundo nesses traços de ideação aborígene. Ainda restam, aqui e ali, esparsos, antigos núcleos que há bem poucos anos se emanciparam ou ainda se têm mantido como um resto do Brasil de outrora entre a cruz dos catequistas e o domínio do colonizador.

Numa e noutra partes ainda se encontram maravilhas jamais registradas e um considerável séquito de "heróis"" e de ciclopes cujos palcos, destruídos ou não, se ficaram na tradição que ainda não está de todo perdida.

Mesmo nos candomblés do Recôncavo Baiano, apenas penetrados com êxito científico por Nina Rodrigues e Artur Ramos e a título de informação por Manoel Querino, a obra do Folclorista não se pôde de todo manifestar. Embora tudo pareça trancado com os sete selos do Apocalipse, ainda se varejam os cantos dos santuários atrás das yawos e das mães de santo,

também dos equejis, dos babalôs e dos pais de terreiro, em busca de pérolas sagradas ou não que se guardam como parte das "histórias" dos orixás bem e malfazejos que passaram, na África, pelos transes dos sacrifícios e pelas fogueiras da divinização.

Infelizmente, em quase tudo que se vê publicado, é a máscara de um na voz de falsete de outro personagem, do negro dos olhos vivos na cara do caboclo desconfiado, — e vice-versa, — senão mesmo o disfarce de um ciclope ou de um ciclame que vem debochando gerações consecutivas sem que ninguém o identifique.

É esse o carnaval que não para aos olhos dos Folcloristas que se deleitam em ver e em comentar, achando semelhanças e igualdade do Boto e da Curacanga e o retrato fiel da Mãe d'Água na Caipora de um pé só que vai de braço com o Saci perneta para a festa do céu.

Enlevado nessas atrações pueris, esses Folcloristas, milionários de avenidas de "castelos", tem horror aos canfundós em que a sociedade sem máscaras se entruda como nos velhos tempos, mas se esconde assim que um chapéu de penacho aponta no alto da montanha distante.

Em registros quase todos velhos, em interpretações subordinadas a "escolas", em glorificações retumbantes de "mestres", em críticas e polêmicas satânicas para desmoralizar a obra sincera dos investigadores, em marmotas europeias que não enxergam à claridade dos trópicos, mas aparecem endeusadas como sóis que divulgam o infinitamente pequeno de um grão de poeira num dos cavos da lua, em assinalamentos de "variantes" e de "fontes" por um caminho transposto às tontas num deserto de Ciência e de Arte, — resume-se quase toda a história do Folclore no Brasil.

Seu Estudo tem quase se limitado a uma tentativa sem diretrizes científicas, sem objetivação artística, sem finalidade propriamente brasileira. Faltaram-lhe as bases que se estão pronunciando de uns tempos a esta parte como neecessárias e indispensáveis: — a Língua Geral Africana, a Língua Geral Brasílica e a Linguagem Popular, pois sem o conhecimento delas não há Folclorista que se aprume nem teorista de Folclore Brasileiro que mereça fé, — além de outros conhecimentos que não vêm "de dentro", mas só se conseguem pelo hábito das análises dos elementos ou pelo acentuado contato com os meios.

Não tente embrenhar-se pela dificuldade do estudo do Folclore quem não se achar suficientemente forrado de cultura científica e literária, mas, por isso, não se invalidem os brasileiros: — Colijam as peças que puderem e façam suas coletâneas sem mudança do que ouvirem, pois é o serviço que mais se afigura sempre necessário e sempre útil.

Obra: Os mitos africanos no Brasil: ciência do folclore (1937)
Por: Antonio Joaquim de Sousa Carneiro

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