segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Lee Miller, uma modelo no front


Lee Miller, uma modelo no front
Na Europa da Segunda Guerra, a fotógrafa Lee Miller era a única mulher na cobertura das batalhas. Esse foi apenas um capítulo da vida da ex-manequim, musa dos surrealistas
por Ana Paula Alfano
Lee Miller tirou o uniforme cáqui do exército, os coturnos pesados e entrou nua na banheira. Teria sido um banho como outro qualquer, não fosse a câmera do amigo (e amante) Dave Scherman, fotógrafo da revista semanal Life, que registrou o momento. A banheira não era apenas uma banheira. A casa não era apenas uma casa. E o dia não era outro qualquer. Tratava-se do banheiro da casa onde Adolf Hitler morara durante anos, em Munique, no número 16 da rua Prinzregentenplatz. E era 30 de abril de 1945. Naquela mesma noite, a rede BBC daria a notícia de que o ditador cometera suicídio, em Berlim. Além do local e da data históricos, a imagem resume num só clique quem foi a fotógrafa americana Lee Miller: uma mulher ousada, sem pudores e à frente de seu tempo, ex-modelo, musa dos surrealistas e, no momento daquele banho, correspondente de guerra da revista Vogue (sim, durante a Segunda Guerra Mundial eles não falaram apenas de moda).
Como uma modelo virou fotógrafa e foi parar no front de combate, durante a guerra? Inquieta e atrás de novidades, Lee era movida a aventuras, como conta a biógrafa Carolyn Burke no livro Lee Miller – A Life. Nascida em Pough keepsie, estado de Nova York, viveu em Manhattan, Paris, Cairo e se mudou para Londres exatamente no dia em que a guerra contra a Alemanha foi declarada. Não queria ser apenas espectadora. Como não podia se alistar nas forças auxiliares, por ser estrangeira, procurou a Vogue inglesa com sua máquina debaixo do braço, propondo registrar a guerra para a revista. Na época, a relação da publicação com a guerra se limitava a reportagens, por exemplo, sobre que cor de batom usar com o cáqui dos uniformes, ou como se vestir bem com o racionamento de tecidos. Lee convenceu a editora Audrey Whiters a deixá-la ir além. “Revistas – diferentemente de livros – são essencialmente sobre o aqui e o agora. E o agora que estamos vendo é a guerra”, Whiters explicou na época. O primeiro grande ensaio de Lee feito num front, na Normandia, foi publicado em 1944. “Eu fotografava e virava o rosto para o outro lado. Não queria encarar os feridos, com medo de que minha feição me traísse e entregasse àqueles homens o horror que eu estava sentindo”, Lee escreveu no texto, que mudaria o jeito como a Vogue até então era encarada no mercado. “Ninguém imaginava que faríamos aquele tipo de reportagem, porque éramos vistos apenas como uma revista de moda fútil.” Lee passou um ano de front em front: foi a única correspondente mulher a acompanhar batalhas em solo europeu durante toda a guerra. Muitas fotos eram confiscadas por censores e, no meio do caminho, Lee precisou voltar para casa porque teve sua credencial cassada pelo Shaef (Supreme Headquarters Allied Expeditionary Force), comando das Forças Aliadas no norte da Europa, que proibia a presença de mulheres no front. Sem se dar por vencida, ela conseguiu uma autorização de trabalho da Força Aérea, que, ao contrário do Exército, dava a homens e mulheres o mesmo direito de cobrir a guerra. Os dois sexos tinham também condições iguais no dia-a-dia do front. Ela se lavava com água de chuva que juntava em seu próprio capacete e comia a mesma ração distribuída aos soldados. Além de bombardeios, clicava a rotina dos oficias, as ruínas e os corpos putrefatos e ouvia histórias de sobreviventes, o que a transformou numa inimiga ferrenha dos nazistas. No início de 1945, quando a Alemanha já tinha praticamente perdido a guerra, Lee se dedicou a fotografar oficiais alemães mortos. Todo o trabalho de guerra de Lee Miller foi publicado em junho de 1945, num número histórico da Vogue inglesa, até hoje cobiçado por colecionadores, que foi batizado de “edição da vitória”.
O começo de tudo
Lee deu os primeiros passos na fotografia com o pai, Theodore, com quem mantinha uma relação de adoração quase doentia – a ponto de, já adulta, posar nua para ele, muitas vezes na companhia de outras amigas. Apesar de ter crescido numa cidade do interior, ela tinha uma cabeça de metrópole. A primeira viagem à Europa foi aos 18 anos, com uma professora de dança polonesa. Chegou a Paris e ficou hospedada num hotel que servia de bordel. “Foi ali que senti, pela primeira vez, tudo se abrindo para mim”, revelaria a fotógrafa, 50 anos mais tarde. Ela levava vida de artista, com pouco dinheiro e muita boemia. Estudava cenografia na revolucionária L’Ecole Medgyès e também era amante do dono do curso, bem mais velho que ela. Era 1925 e os dadaístas estavam reinventando a si mesmos como surrealistas, liderados por André Breton. Jean Cocteau, Pablo Picasso, Gertrude Stein e Ernest Hemingway fervilhavam.
Um ano mais tarde, de volta a Nova York, Lee decidiu se dedicar melhor à dança e entrou para o corpo de baile da companhia George White’s Scandals. O dinheiro era curto e a vida em Manhattan cara demais – para ganhar um extra, arranjou emprego de modelo de lingerie da marca Stewart & Company, na Quinta Avenida. Não tinha a intenção de transformar aquilo em carreira, até cruzar com o poderoso Condé Nast, dono de um império editorial que incluía a famosa revista de moda Vogue. Ele a parou no meio da rua e a convidou para visitar seu escritório e trabalhar na Vogue. Edna Chase, editora da revista, já estava acostumada a ter na redação protegidas do senhor Nast, mocinhas lindas e incompetentes. Mas se surpreendeu com Lee, que resumia sua nova linha editorial, direcionada a mulheres modernas e independentes. Lee foi a capa da edição de março de 1927, virou a preferida dos fotógrafos de moda e, incentivada por eles, voltou a fotografar. Apaixonada pelo assunto, ficou sabendo do trabalho revolucionário de Man Ray, na França. Fez as malas e, em 1929, foi atrás do fotógrafo. Seguiu para o estúdio de Ray, no bairro de Montparnasse, e se apresentou como sua mais nova aluna. “Não tenho alunos e vou passar todo o verão fora de Paris”, o fotógrafo respondeu. “Eu vou junto”, ela retrucou. E assim foi. Apaixonado pelo lado ousado de Lee, Ray, 17 anos mais velho, transformou-a em pupila, assistente e amante. Os dois viveram juntos por três anos. Foi uma escola importantíssima para a carreira da fotógrafa. Além de aprender a técnica, Lee convivia com os amigos do namorado, os maiores artistas da época.
O crash da bolsa de Nova York, em 1929, afetou o movimento do estúdio de Man Ray. Sem dinheiro, Lee procurou a Vogue francesa. A revista era a única que não tinha sido abalada pelos problemas econômicos do mundo e abastecia as Vogue americana e britânica com ensaios de moda. Lee virou modelo de vários deles. George Hoyningen-Huene, chefe do estúdio da Vogue na França, logo entrou para a lista de fãs da jovem Lee e a nomeou sua assistente. Man Ray morria de ciúmes da namorada. Incentivava seu trabalho, mas não conseguia conviver com seu espírito moderno e livre. Sufocada e apaixonada por outro homem, o aristocrata egípcio Aziz Eloui Bey, que viria a se tornar seu primeiro marido, Lee terminou o romance com Ray. O fanatismo de Man Ray pela americana era tão grande que, arrasado, ele fez na época um auto-retrato – a foto o mostrava ao lado de uma arma e com uma corda em volta do pescoço.
Lee retornou a Nova York já famosa, símbolo maior da mulher moderna, e dona de seu próprio estúdio. Ensaios da Vogue a colocavam na posição de ícone de elegância. A carreira estava ótima – Lee clicava campanhas de marcas como Saks Fifth Avenue, Macy’s, Helena Rubinstein e Elizabeth Arden. Cada vez mais focada em fotografia de moda, se distanciava do experimentalismo de Man Ray. Mas, em 1934, mesmo eleita pela revista Vanity Fair um dos sete fotógrafos ainda vivos mais brilhantes do mundo, Lee não estava satisfeita. Não achava moda o assunto mais interessante do mundo. Então casada com Aziz, decidiu largar tudo para morar com ele no Cairo.
O começo da vida de Lee no Egito foi um período distante de tudo – da família, dos amigos e, principalmente, dela mesma. A fotógrafa queria negar o que tinha sido até ali. O marido, engenheiro formado na universidade inglesa de Liverpool, era 16 anos mais velho e dono de uma mente aberta. Durante dois anos a fotógrafa não exerceu seu ofício. Quando a monotonia finalmente começou a incomodar Lee, a câmera voltou a ser sua maior companheira. Um capítulo importante de sua obra são os ensaios que fez em expedições pelo Oriente Médio, naquela época.
Se, durante seu primeiro casamento, Lee se enquadrou às regras e ao padrão esperado na época, o mesmo não pode ser dito do segundo. O relacionamento com o pintor e poeta inglês Roland Penrose, bissexual, com quem Lee viveu até morrer, de câncer, em 1977, começou numa festa, em 1937. Naquela noite, Roland estava com os cabelos verdes, a mão direita pintada de azul e calças com cores do arco-íris. Um dos maiores responsáveis por levar o surrealismo para a Inglaterra, depois de organizar no país a primeira exposi ção do gênero, na New Burlington Galleries, Roland tinha o que Lee mais apreciara durante toda a sua vida: era, como ela, uma pessoa guiada pela vanguarda.

Saiba mais
A OBRA
Lee Miller – A Life, Carolyn Burke, Alfred A. Knopf, 2005
R$ 97 426 páginas
SITE
www.leemiller.co.uk
O site oficial mantido pelo filho de Lee, Antony Penrose, tem o acervo fotográfico da carreira dela.
EXPOSIÇÃO
The Art of Lee Miller
A mostra fotográfica vai até janeiro de 2008, no Victoria & Albert Museum, de Londres

Revista Aventuras na História

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