segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Um por todos e todos por... D·Artagnan


Um por todos e todos por... D·Artagnan
Na ficção, ele foi único, símbolo da elegância e do poder dos que defendiam o absolutismo francês no século 17. Na realidade, foram dois os homens que inspiraram as aventuras do mais famoso dos mosqueteiros de sua majestade
por Haroldo Ceravolo Sereza
Charles Batz de Castelmore era um mosqueteiro. Nasceu em 1611 e morreu em combate na batalha de Maastricht, em 1673, depois de uma vida a serviço do rei de França. Além da fama de excelente espadachim e de uma brilhante carreira militar, ele deixou outro legado. Um livro de memórias publicado em 1700 por um escritor cuja importância foi apagada pelo tempo, mas que se tornou um documento para entender a centralização do poder na França no século 17, e que deu origem a um dos personagens mais conhecidos no mundo da ficção. O sobrenome Batz de Castelmore foi esquecido, mas o nome que Charles herdou da família da mãe foi alçado à condição de mito por outro escritor, este um dos mais populares da história da literatura: Batz de Castelmore tornou-se o conde D’Artagnan.

No romance Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, D’Artagnan, um nobre empobrecido, chega a Paris, montado num cavalo amarelo, em busca de aventuras e fortuna. Lá, conhece Aramis, Porthos e Athos, mosqueteiros do rei Luís XIII, que o admitem no grupo. Os quatro envolvem-se na luta cotidiana contra os homens do cardeal Richelieu – o poderoso primeiro-ministro da França. O país vivia um clima de guerra civil e D’Artagnan se mete nas intrigas palacianas, luta pela honra da rainha, vence e cobre-se de glórias.

A história ultra-romântica de Dumas, escrita em 1843, 200 anos depois dos fatos relatados, portanto, eram para parecer verdadeiras. Mas, jamais, para serem tomadas como uma narrativa fiel de fatos históricos. Seu propósito era aquele próprio do folhetim: divertir. Por isso, muita gente pode surpreender-se ao saber que D’Artagnan existiu. Não como o herói romântico, mas como um guerreiro leal e dedicado ao trono francês. O livro foi fiel às memórias de D’Artagnan, só que elas eram inventadas. O autor, Gatien de Courtilz de Sandraz, pode até tê-lo conhecido, mas certamente não colheu o depoimento do mosqueteiro (o livro foi publicado em 1700, 27 anos depois da morte do suposto narrador).

Sobre o verdadeiro D’Artagnan sabe-se que foi realmente um mosqueteiro do rei, nome dado aos componentes da guarda de elite criada para proteger o rei Luís XIII, em 1622. Era um pequeno exército formado por cerca de 200 homens armados com o que havia de mais moderno na época. Para ser aceito na turma, além de ser um excelente soldado, capaz de combater a pé, a cavalo ou na infantaria, o sujeito precisava jurar fidelidade ao rei e estar disposto a morrer em seu nome. O que não era lá muito difícil na atribulada Paris daqueles dias. A criação da Companhia dos Mosqueteiros do Rei fazia parte da complexa política de Estado e, sobretudo, das perigosas relações entre a nobreza. Quando Luís XIII tornou-se rei, em 1614, a Europa passava por um período turbulento, conhecido como Reforma Religiosa. Protestantes e católicos brigavam pelas almas dos fiéis e pelo controle de reinos, entre eles o francês. Por isso, Luís XIII esforçava-se para conter a sede de poder dos nobres num país dividido pela fé. Mantendo o governo e a economia com rédeas firmes e ajudado pelo primeiro-ministro e líder católico, o cardeal Richelieu, Luís XIII transformou a França numa potência militar e econômica.

Os mosqueteiros eram uma das peças mais importantes do jogo de interesses da corte francesa naquela época. Recrutados entre os mais corajosos cavaleiros da pequena nobreza do país, formavam uma milícia particular do monarca, tornando-se um símbolo importante do seu poder absoluto. “Os mosqueteiros eram a companhia favorita do rei, que gostava de treiná-los pessoalmente em jogos de tiro e em caçadas”, diz o historiador francês Claude Dufresne, especialista na obra de Dumas. “Como a guarda era uma prerrogativa do rei, era natural que existisse uma hostilidade entre a nobreza e os mosqueteiros.”

Nessa época, o próprio Richelieu criou para si uma pequena tropa de elite. Não demorou muito para que as duas facções se estranhassem. No romance de Dumas, essa rivalidade é explorada ao máximo. D’Artagnan e seus amigos volta e meia topavam com os homens do cardeal e começavam uma briga. Como a popularidade do rei era cada vez maior que a de Richelieu, os fiéis defensores do cardeal são os vilões do livro. “Contudo, na realidade, as duas companhias de mosqueteiros serviram ao mesmo propósito – proteger os poderes do rei e de seu governo e muitas vezes agiram juntas”, afrima o pesquisador francês Théophile Monier, autor do verbete sobre os mosqueteiros no clássico L’Art de la Guerre.

O certo é que o verdadeiro D’Artagnan jamais duelou com os homens de Richelieu. Charles Batz, nascido em 1611, teria entrado para a companhia dos mosqueteiros apenas em 1644 e, portanto, não serviu a Luís XIII, como está no romance, mas a Luís XIV, que, depois da morte do antecessor e de Richelieu, uniu seus homens aos do cardeal – sinal de que as rivalidades entre eles não deviam ser tão radicais como no livro. Mas ele, de fato, se tornou homem de confiança do rei: em 1658, comandou o cerco aos revoltosos de Dunquerque, no norte da França. Em 1659, liderou a tropa que protegeu o comboio real durante o casamento de Luís XIV com a infanta da Espanha, Maria Teresa. Em 1661, com a morte do cardeal Mazarin (que, de certa forma, foi o Richelieu de Luís XIV), ficou ainda mais próximo do trono, até assumir, em 1667, o posto de capitão-tenente. Na guerra contra a Holanda, em 1673, D’Artagnan caiu em combate, à frente de suas tropas, durante o cerco a Maastricht.

Mas o mais surpreendente sobre a história do real D’Artagnan é que Charles de Batz não teria sido o único a inspirar Alexandre Dumas. “Ele misturou a vida de Charles Batz com a de outro D’Artagnan, Pierre de Montesquiou, que viveu entre 1645 e 1725, foi marechal do Exército francês e primo de Charles”, diz Dufresne. O segundo D’Artagnan também foi mosqueteiro e tomou parte nas mais importantes batalhas de seu tempo. E não foram poucas, já que Luís XIV não foi um rei famoso por sua diplomacia com os vizinhos. Pierre foi governador de Arras, que, na complexa geografia da França do século 17, manteve-se fiel à Coroa espanhola até 1640 e que veio a demonstrar com fervor sua adesão à França no século 18, sob o reinado de Luís XV. Um dado curioso é que suas tropas, em Arras, passaram a utilizar fuzis, e não mosquetes, num regimento que passou a ser chamado de D’Artagnan, em homenagem a ele.

Na história da França, os mosqueteiros foram extintos por Luís XVI em 1775, por razões financeiras. Uma péssima jogada. Pouco mais de 15 anos depois, durante a revolução de 1789, uma turba de franceses furiosos levaria a família real para a guilhotina. As tropas de elite que protegiam os reis da França fizeram falta, o que custou as cabeças coroadas de Luís XVI e sua mulher, Maria Antonieta.

Três mosqueteiros
As Memórias de D’Artagnan, que serviram de base para Dumas, contam histórias que são, em geral, sem fundamento real, mas nas quais aparecem personagens que existiram.

É o caso do mosqueteiro Isaac de Portau (que pode ter virado Porthos, na obra de Dumas), do ex-abade Henry D’Aramis (para Dumas, Aramis é mosqueteiro, mas seu desejo é se tornar religioso) e do nobre Sillègue Athos.

Para além do livro, pouco se sabe dessa turma. D’Aramis, por exemplo, casou-se em 1650 com uma mulher chamada Jeanne de Bonasse, cuja família foi, por longo período, dona de um castelo. Não há traços de sua vida de mosqueteiro e até o ano de sua morte é ignorado.

De Portau, quase não se tem notícias e, de Athos, sabe-se apenas que foi morto em 1643, vitimado por um golpe de espada. Mas há mais um mosqueteiro nessa história: o próprio Dumas. “Sob os quatro personagens, escondem-se características com as quais ele, filho de um general, gostava de ver em si”, diz Claude Dufresne.

O pai da criança
Em 1843, o escritor Alexandre Dumas passou uma temporada em Marselha, no sul da França. Durante as longas caminhadas pelo movimentado porto da cidade, Dumas aproveitava para visitar um velho amigo, Joseph Méry, bibliotecário do lugar. Um dia, dando uma olhada nos livros da biblioteca, o grande escritor francês topou com um volume que o deixou intrigado: Mémoires de Monsieur d·Artagnan, Capitaine Lieutenant de la Première Compagnie des Mousquetaires du Roi (Memórias do Senhor D’Artagnan, Capitão-Tenente da Primeira Companhia dos Mosqueteiros do Rei). O pequeno volume de capa, publicado em Colônia em 1700, havia sido escrito por um autor conhecido da época, Gatien de Courtilz de Sandras, que romanceou a vida do militar. Embriagado pelas aventuras narradas no livro, Dumas esqueceu-se de devolver (ou simplesmente surrupiou) o volume e levou-o para Paris.

Em pouco tempo, estava pronto o romance que o tornaria imortal. Alexandre Dumas tinha uma método pecul

Revista Aventuras na História

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