A Revolução, a nação e a paz1
Domenico Losurdo
1
O IDEAL da paz perpétua, de um mundo definitivamente liberado do flagelo da guerra, não caracteriza somente a consciência contemporânea, mas tampouco nos remete a épocas muito antigas. Pode-se dizer que data, fundamentalmente, das lutas que precederam e acompanharam a Revolução Francesa. A partir desse momento, a reflexão sobre a paz se enriquece de dois elementos radicalmente novos. Começa a ser pensada em termos universalistas. Em Bernardin de Saint-Pierre, o ideal da "paz perpétua" concerne ainda explicitamente à Europa, ou "os estados cristãos":2 os que assinam o tratado que bane para sempre a guerra são os representantes das potências cristãs, que são assim colocadas em condições de enfrentar melhor a ameaça dos "turcos", dos "corsários da África" e dos "tártaros", e que, repelindo as agressões eventuais provindas desse lado, podem mesmo encontrar "ocasiões para cultivar o gênio e os talentos militares".3
O outro elemento de novidade é que, sempre a partir das lutas que precederam e acompanharam a Revolução Francesa, o ideal da paz perpétua deixa de se apresentar como uma vã esperança, para assumir uma dimensão política precisa: é agora a ação política que é chamada a realizar o ideal em questão. Trata-se então de atacar as forças que têm interesse na guerra e essas são identificadas com o sistema feudal e o absolutismo monárquico. Tomando como alvo as guerras de gabinete de seu tempo, Voltaire (2006, cap.VII) declara que, para acabar com os massacres periódicos entre as nações e os homens, seria preciso punir "esses bárbaros sedentários que, do fundo de seu gabinete, ordenam, durante sua digestão, o massacre de um milhão de homens, e em seguida mandam solenemente agradecer a Deus".
Por sua vez, Rousseau (1959, p.593) declara que "por um lado, a guerra e as conquistas, por outro, o progresso do despotismo ajudam-se mutuamente". A guerra finca então suas raízes não na maldade presumida da natureza humana, no pecado original, mas nas instituições político-sociais concretas, determinadas. Rousseau não hesita em tirar disso todas as conseqüências. Sendo revolucionário, é inevitável: "e então não se trata mais de persuadir, mas de obrigar, e não é necessário escrever livros, mas retirar as tropas". Em conclusão, a união cosmopolita entre os povos e os Estados só pode "ocorrer por meio de revoluções" (ibidem, p.595-600).
Uma inversão radical de posições produziu-se em relação a Saint-Pierre (1986, p.40-1 e 164ss). Para ele, o tratado que instituía a paz perpétua tinha também o papel de garantir a estabilidade interior, ou seja, "preservar infalivelmente" os Estados signatários "de toda secessão, toda revolta, e, principalmente, toda guerra civil", um mal que é ainda "mais terrível" e "mais funesto" do que as guerras "estrangeiras" (ibidem, p.41 e 143). Se, em Saint-Pierre, o objetivo da paz perpétua impõe a sufocação das revoluções (e a condenação à morte dos "sediciosos" e dos "rebeldes"), em Rousseau, a revolução política se apresenta como a via obrigatória para a instauração da paz perpétua. O "pacifismo" conduz Saint-Pierre à condenação da primeira revolução inglesa; no "pacifismo" de Rousseau ouve-se já, como veremos, um dos motivos centrais da Revolução Francesa.
A revolução antifeudal e antiabsolutista, reconhecida por Rousseau como o verdadeiro antídoto ao flagelo da guerra, desencadeia-se alguns anos depois. Com a vaga de entusiasmo difundem-se não somente na França, mas também no exterior ilusões segundo as quais o abatimento do regime feudal em âmbito internacional acabaria por extirpar para sempre o flagelo da guerra. De Paris, Mirabeau podia anunciar que, em seguida à conquista da "liberdade geral", desapareceriam também as "invejas insensatas que atormentam as nações", e jorraria a "fraternidade universal".4 Após ter denunciado no despotismo, na ambição e sede de dominação das cortes feudais a causa das guerras incessantes que até então dilaceraram a humanidade, outros numerosos protagonistas da Revolução prometiam a realização do "sonho filantrópico do abade de Saint-Pierre".5
É significativo que Barnave insista em particular sobre o efeito benéfico do controle dos proprietários sobre o Poder Legislativo. Todavia, também ele pensava que a guerra podia ser extirpada se se acabasse com o poder absoluto dos reis que podiam se lançar em aventuras de guerra sem nenhum controle e, principalmente, sem correr nenhum risco. Ao contrário, "o corpo legislativo dificilmente decidirá fazer guerra. Cada um de nós possui propriedades, amigos, uma família, uma quantidade de interesses pessoais que a guerra poderia comprometer".6 Com efeito, a nova França revolucionária se comprometia a não iniciar uma guerra de conquista, ela se comprometia solenemente – como declarava a Constituição de 1793 – a não se ingerir "no governo das outras nações". Ou, para usar os termos da Constituição de 1791: "a Nação Francesa renuncia a iniciar qualquer guerra com o fim de conquista e nunca usará suas forças contra um Povo qualquer".
Pela primeira vez na história, um país se comprometia a conduzir uma política de paz e o ideal da paz perpétua encontrava sua consagração, ainda que indireta, em um texto constitucional. Trata-se de uma novidade radical. Para Grotius, intérprete, de certo modo, dos resultados da Revolução Holandesa, não se discute o direito de reduzir à escravidão, por meio da guerra, não somente os indivíduos, mas mesmo povos inteiros (cf. Grotius, De jure belli ac pacis, liv.III, cap.VIII, par.1). (Ele se refere, certamente, aos povos colonizados, visto que estão excluídas explicitamente "as nações em que jus illud servitutis ex bello in usu non est" – liv.III, cap.XIV, par.9.) Uma crítica da guerra não pode nem sequer ser encontrada na "Declaração dos Direitos" derivada da "Revolução Gloriosa" inglesa de 1688, da Declaração de Independência ou dos textos constitucionais surgidos com a Revolução Americana: nesses fixam-se as regras para o recrutamento do exército em caso de guerra, mas a guerra permanece um dado de fato e não se torna um problema. A guerra só se torna realmente um problema com a Revolução Francesa: é um problema que a ação política deve resolver para assegurar definitivamente a paz.
Até agora falamos somente da segunda das novidades radicais surgidas com a Revolução Francesa. Convém mencionar a primeira. A paz, compreendida em um sentido universalista, não é mais pensada em termos de exclusão dos não-cristãos; o inimigo não é mais o "infiel" ou o "bárbaro", mas o déspota e o partidário do despotismo, que têm interesse ou ajudam a perpetuar a condição de guerra. Pode-se observar esse ponto de partida universalista também na decisão da Convenção de abolir a escravidão nas colônias, durante os tumultos da revolta dos negros em São Domingos. Saint-Pierre escreve seu Projet no momento do Tratado de Utrecht, que permite à Inglaterra, saída há pouco de sua "Revolução Gloriosa", retirar da Espanha o Asiento, ou seja, o monopólio do tráfico dos negros. E a paz perpétua é invocada por Saint-Pierre (1986, p.17) também em nome da segurança e da liberdade "de comércio, tanto da América quanto do Mediterrâneo". Nesses "dois comércios", que "constituem mais da metade das entradas da Inglaterra e da Holanda" (ibidem), incluía-se também o tráfico dos negros, o comércio de escravos, como se evidencia nos textos de economia política da época.7 Mas, para Rousseau (Contrato social, I, 4), a escravidão não é nada mais do que a continuação do estado de guerra. Objetivamente, a realidade da guerra é descoberta também no comércio garantido pela paz perpétua, e a realização de uma paz autêntica implica, ao mesmo tempo, a liberação dos escravos das colônias. O problema da Paz começa a não ser mais pensado em termos exclusivamente europeus.
Nesse quadro, vemos claramente quais conseqüências a Revolução Francesa traz para o debate sobre o tema da independência de cada Estado e das relações internacionais entre os Estados. Em Saint-Pierre (1986), o tratado que institui a paz perpétua prevê o compromisso recíproco da não-ingerência. Há, porém, duas exceções a esse princípio: a primeira, explícita, à custa dos revolucionários; a segunda, implícita, à custa dos não-cristãos: "a sociedade européia só se ocupará do governo de cada Estado para conservar sua forma fundamental e para socorrer, de forma rápida e eficaz, nas monarquias, o príncipe, nas repúblicas, os magistrados, contra os sediciosos e os rebeldes" (ibidem, p.164). Por sua vez, a Sociedade Européia, mesmo quando não toma uma atitude abertamente hostil aos Estados muçulmanos, tem o direito de recorrer à força para obrigá-los a aderir ao Tratado, aderindo em uma posição subalterna, pois deverão promulgar "vários artigos em favor dos Cristãos, seus súditos" (ibidem, p.161). Desse ponto de vista, Saint-Pierre não vai além das bases tradicionais do direito internacional. Alberigo Gentile considera ilícita a redução dos prisioneiros à escravidão, mas somente no que se refere aos Estados cristãos. Balthazar Ayala, outro autor considerado pela escola de Carl Schmitt como um dos artífices da teoria da limitação da guerra, exclui toda limitação no que diz respeito a rebeldes e heréticos, contra os quais invoca, ao contrário, uma espécie de cruzada exterminadora (Grewe, 1988, p.252 e 246ss; ver também Schmitt, 1950, p.123-31).
Domenico Losurdo
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O IDEAL da paz perpétua, de um mundo definitivamente liberado do flagelo da guerra, não caracteriza somente a consciência contemporânea, mas tampouco nos remete a épocas muito antigas. Pode-se dizer que data, fundamentalmente, das lutas que precederam e acompanharam a Revolução Francesa. A partir desse momento, a reflexão sobre a paz se enriquece de dois elementos radicalmente novos. Começa a ser pensada em termos universalistas. Em Bernardin de Saint-Pierre, o ideal da "paz perpétua" concerne ainda explicitamente à Europa, ou "os estados cristãos":2 os que assinam o tratado que bane para sempre a guerra são os representantes das potências cristãs, que são assim colocadas em condições de enfrentar melhor a ameaça dos "turcos", dos "corsários da África" e dos "tártaros", e que, repelindo as agressões eventuais provindas desse lado, podem mesmo encontrar "ocasiões para cultivar o gênio e os talentos militares".3
O outro elemento de novidade é que, sempre a partir das lutas que precederam e acompanharam a Revolução Francesa, o ideal da paz perpétua deixa de se apresentar como uma vã esperança, para assumir uma dimensão política precisa: é agora a ação política que é chamada a realizar o ideal em questão. Trata-se então de atacar as forças que têm interesse na guerra e essas são identificadas com o sistema feudal e o absolutismo monárquico. Tomando como alvo as guerras de gabinete de seu tempo, Voltaire (2006, cap.VII) declara que, para acabar com os massacres periódicos entre as nações e os homens, seria preciso punir "esses bárbaros sedentários que, do fundo de seu gabinete, ordenam, durante sua digestão, o massacre de um milhão de homens, e em seguida mandam solenemente agradecer a Deus".
Por sua vez, Rousseau (1959, p.593) declara que "por um lado, a guerra e as conquistas, por outro, o progresso do despotismo ajudam-se mutuamente". A guerra finca então suas raízes não na maldade presumida da natureza humana, no pecado original, mas nas instituições político-sociais concretas, determinadas. Rousseau não hesita em tirar disso todas as conseqüências. Sendo revolucionário, é inevitável: "e então não se trata mais de persuadir, mas de obrigar, e não é necessário escrever livros, mas retirar as tropas". Em conclusão, a união cosmopolita entre os povos e os Estados só pode "ocorrer por meio de revoluções" (ibidem, p.595-600).
Uma inversão radical de posições produziu-se em relação a Saint-Pierre (1986, p.40-1 e 164ss). Para ele, o tratado que instituía a paz perpétua tinha também o papel de garantir a estabilidade interior, ou seja, "preservar infalivelmente" os Estados signatários "de toda secessão, toda revolta, e, principalmente, toda guerra civil", um mal que é ainda "mais terrível" e "mais funesto" do que as guerras "estrangeiras" (ibidem, p.41 e 143). Se, em Saint-Pierre, o objetivo da paz perpétua impõe a sufocação das revoluções (e a condenação à morte dos "sediciosos" e dos "rebeldes"), em Rousseau, a revolução política se apresenta como a via obrigatória para a instauração da paz perpétua. O "pacifismo" conduz Saint-Pierre à condenação da primeira revolução inglesa; no "pacifismo" de Rousseau ouve-se já, como veremos, um dos motivos centrais da Revolução Francesa.
A revolução antifeudal e antiabsolutista, reconhecida por Rousseau como o verdadeiro antídoto ao flagelo da guerra, desencadeia-se alguns anos depois. Com a vaga de entusiasmo difundem-se não somente na França, mas também no exterior ilusões segundo as quais o abatimento do regime feudal em âmbito internacional acabaria por extirpar para sempre o flagelo da guerra. De Paris, Mirabeau podia anunciar que, em seguida à conquista da "liberdade geral", desapareceriam também as "invejas insensatas que atormentam as nações", e jorraria a "fraternidade universal".4 Após ter denunciado no despotismo, na ambição e sede de dominação das cortes feudais a causa das guerras incessantes que até então dilaceraram a humanidade, outros numerosos protagonistas da Revolução prometiam a realização do "sonho filantrópico do abade de Saint-Pierre".5
É significativo que Barnave insista em particular sobre o efeito benéfico do controle dos proprietários sobre o Poder Legislativo. Todavia, também ele pensava que a guerra podia ser extirpada se se acabasse com o poder absoluto dos reis que podiam se lançar em aventuras de guerra sem nenhum controle e, principalmente, sem correr nenhum risco. Ao contrário, "o corpo legislativo dificilmente decidirá fazer guerra. Cada um de nós possui propriedades, amigos, uma família, uma quantidade de interesses pessoais que a guerra poderia comprometer".6 Com efeito, a nova França revolucionária se comprometia a não iniciar uma guerra de conquista, ela se comprometia solenemente – como declarava a Constituição de 1793 – a não se ingerir "no governo das outras nações". Ou, para usar os termos da Constituição de 1791: "a Nação Francesa renuncia a iniciar qualquer guerra com o fim de conquista e nunca usará suas forças contra um Povo qualquer".
Pela primeira vez na história, um país se comprometia a conduzir uma política de paz e o ideal da paz perpétua encontrava sua consagração, ainda que indireta, em um texto constitucional. Trata-se de uma novidade radical. Para Grotius, intérprete, de certo modo, dos resultados da Revolução Holandesa, não se discute o direito de reduzir à escravidão, por meio da guerra, não somente os indivíduos, mas mesmo povos inteiros (cf. Grotius, De jure belli ac pacis, liv.III, cap.VIII, par.1). (Ele se refere, certamente, aos povos colonizados, visto que estão excluídas explicitamente "as nações em que jus illud servitutis ex bello in usu non est" – liv.III, cap.XIV, par.9.) Uma crítica da guerra não pode nem sequer ser encontrada na "Declaração dos Direitos" derivada da "Revolução Gloriosa" inglesa de 1688, da Declaração de Independência ou dos textos constitucionais surgidos com a Revolução Americana: nesses fixam-se as regras para o recrutamento do exército em caso de guerra, mas a guerra permanece um dado de fato e não se torna um problema. A guerra só se torna realmente um problema com a Revolução Francesa: é um problema que a ação política deve resolver para assegurar definitivamente a paz.
Até agora falamos somente da segunda das novidades radicais surgidas com a Revolução Francesa. Convém mencionar a primeira. A paz, compreendida em um sentido universalista, não é mais pensada em termos de exclusão dos não-cristãos; o inimigo não é mais o "infiel" ou o "bárbaro", mas o déspota e o partidário do despotismo, que têm interesse ou ajudam a perpetuar a condição de guerra. Pode-se observar esse ponto de partida universalista também na decisão da Convenção de abolir a escravidão nas colônias, durante os tumultos da revolta dos negros em São Domingos. Saint-Pierre escreve seu Projet no momento do Tratado de Utrecht, que permite à Inglaterra, saída há pouco de sua "Revolução Gloriosa", retirar da Espanha o Asiento, ou seja, o monopólio do tráfico dos negros. E a paz perpétua é invocada por Saint-Pierre (1986, p.17) também em nome da segurança e da liberdade "de comércio, tanto da América quanto do Mediterrâneo". Nesses "dois comércios", que "constituem mais da metade das entradas da Inglaterra e da Holanda" (ibidem), incluía-se também o tráfico dos negros, o comércio de escravos, como se evidencia nos textos de economia política da época.7 Mas, para Rousseau (Contrato social, I, 4), a escravidão não é nada mais do que a continuação do estado de guerra. Objetivamente, a realidade da guerra é descoberta também no comércio garantido pela paz perpétua, e a realização de uma paz autêntica implica, ao mesmo tempo, a liberação dos escravos das colônias. O problema da Paz começa a não ser mais pensado em termos exclusivamente europeus.
Nesse quadro, vemos claramente quais conseqüências a Revolução Francesa traz para o debate sobre o tema da independência de cada Estado e das relações internacionais entre os Estados. Em Saint-Pierre (1986), o tratado que institui a paz perpétua prevê o compromisso recíproco da não-ingerência. Há, porém, duas exceções a esse princípio: a primeira, explícita, à custa dos revolucionários; a segunda, implícita, à custa dos não-cristãos: "a sociedade européia só se ocupará do governo de cada Estado para conservar sua forma fundamental e para socorrer, de forma rápida e eficaz, nas monarquias, o príncipe, nas repúblicas, os magistrados, contra os sediciosos e os rebeldes" (ibidem, p.164). Por sua vez, a Sociedade Européia, mesmo quando não toma uma atitude abertamente hostil aos Estados muçulmanos, tem o direito de recorrer à força para obrigá-los a aderir ao Tratado, aderindo em uma posição subalterna, pois deverão promulgar "vários artigos em favor dos Cristãos, seus súditos" (ibidem, p.161). Desse ponto de vista, Saint-Pierre não vai além das bases tradicionais do direito internacional. Alberigo Gentile considera ilícita a redução dos prisioneiros à escravidão, mas somente no que se refere aos Estados cristãos. Balthazar Ayala, outro autor considerado pela escola de Carl Schmitt como um dos artífices da teoria da limitação da guerra, exclui toda limitação no que diz respeito a rebeldes e heréticos, contra os quais invoca, ao contrário, uma espécie de cruzada exterminadora (Grewe, 1988, p.252 e 246ss; ver também Schmitt, 1950, p.123-31).
Em sua cruzada contra a Revolução Francesa, pode-se dizer que Burke (1826a, p.123ss e 145) identifica a figura do revolucionário à do não-cristão ou do bárbaro: os governantes da nova França são, pois, condenados como "selvagens" e "bárbaros ateus e assassinos", como indivíduos que, por "sua crueldade, arrogância, espírito de rebelião e hábito de desafiar toda lei humana e divina", devem ser considerados "selvagens ferozes". Nesse caso – observa Gentz (1836-1837, p.198ss), tradutor de Burke em alemão e futuro conselheiro de Metternich –, o princípio de independência de cada Estado não tem mais sentido: diante de uma revolução como a que se produziu na França, que altera a ordem político-social, "insulta publicamente as idéias religiosas e viola tudo o que é sagrado para os homens", não é mais possível, e nem mesmo permitido, que os outros Estados permaneçam apartados. Uma intervenção não é somente legítima, é um dever.
Do lado oposto, o princípio do direito à independência e à autodeterminação foi radicalizado por Marat, a ponto de incluir o direito à secessão nas colônias. São Domingos, portanto, onde então se desencadeara uma revolta da população negra, tinha o direito de se separar da França, mesmo se da França revolucionária, para se constituir como Estado autônomo, e não sob a direção de colonos brancos e escravistas, mas sob a direção de escravos ou antigos escravos negros, que constituíam a grande maioria da população.8 Se as publicações contra-revolucionárias empurravam a França entre os "selvagens", recusando seu direito à independência, Marat rompia a distinção tradicional entre "selvagens" e "civilizados", reconhecendo aos primeiros também o direito à autodeterminação.
2
O entusiasmo pela Revolução Francesa além do Reno pode ser entendido também à luz da nova abordagem do problema da paz. É nesse contexto que se coloca o ensaio fundamental de Kant, de 1795, Para a paz perpétua. Já o "primeiro artigo definitivo para a paz perpétua" é categórico: "em todo Estado, a constituição civil deve ser republicana". Apesar de todas as atenuantes que seguem essa afirmação, não se deve perder de vista que, nesse momento, o principal país de regime republicano era a França revolucionária. Kant prossegue assim:
em uma constituição onde o súdito não é um cidadão, que não é, portanto, republicana, a guerra é o que exige menos reflexão, pois o soberano não é membro, mas detentor do Estado, e a guerra não lhe causa o menor dano no que diz respeito à mesa, à caça, aos castelos de diversão, às festas de corte etc.; ele pode, pois, decidir a guerra por motivos fúteis como uma espécie de jogo de prazer.9
A dura denúncia que aqui é feita dos responsáveis pela guerra visa, explicitamente, às cortes feudais, das quais se descreve e denuncia, de forma precisa e implacável, o modo de vida corrompido e decadente.
O quinto "artigo preliminar" possui também um significado relevante: "nenhum Estado deve se imiscuir com a força na constituição e no governo de um outro Estado". O texto de Kant reproduz aqui, em substância, o artigo já citado da Constituição de 1793. Partindo da defesa do princípio da independência de cada Estado, Kant não hesita em submeter a uma dura crítica o abuso de poder da Europa em suas colônias, e, principalmente, o da Inglaterra, tema que encontramos nas correntes mais radicais da Revolução Francesa. Kant denuncia, com palavras de fogo, "a conduta hostil dos Estados policiados, em particular, dos Estados comerciantes de nossa parte do mundo" (a alusão à Inglaterra é transparente). Precisamente, "a injustiça que testemunham quando visitam países e povos estrangeiros (visitas que eles confundem com a conquista) vai tão longe que nos amedronta". Essa "conduta hostil" chegou a ponto de reduzir à escravidão populações inteiras: e assim, as "ilhas de açúcar" são indicadas como sede da "escravidão mais cruel e refinada". E tudo isso por conta de Estados "que fazem muito barulho com sua piedade"!10 Os países que se recusaram a seguir o exemplo dado pela França republicana com a abolição da escravidão nas colônias eram aqueles comprometidos com a cruzada contra-revolucionária em nome do cristianismo.
No meio-tempo, porém, no plano político e militar, as relações de força se modificavam rapidamente em favor da França: seus exércitos passavam da posição defensiva à contra-ofensiva, avançando e se dirigindo além das fronteiras. A virada no plano militar se reflete também no plano ideológico. A Constituição de 1793, pronunciando-se contra toda forma de ingerência nos negócios internos de um outro país, limitava-se a acrescentar que "o povo francês é amigo e aliado natural dos povos livres": fórmula que podia, no máximo, abrir as portas a uma política de hegemonia em relação a países e povos já "livres", mas que não autorizava, de nenhum modo, uma intervenção do exército francês para "libertar" os povos ainda oprimidos pelo "despotismo". Mas já na Convenção ouvem-se vozes que dirigem a contribuição da nova França para a realização da paz perpétua, não para a abstenção em vista de toda guerra de agressão, mas para a exportação da revolução, uma espécie de ajuda internacionalista aos outros povos para que se libertem, por sua vez, do despotismo, que é a verdadeira causa das guerras fratricidas entre as nações. Entre essas vozes, distingue-se a de um emigrado alemão, Anacharsis Clootz, que, em 26 de abril de 1793, desejando uma república universal definitivamente pacificada, declara: "a Convenção não esquecerá que somos os mandatários do gênero humano: nossa missão não está circunscrita aos departamentos da França; nossos poderes são referendados por toda a natureza".11
É, porém, o projeto girondino de Constituição que é verdadeiramente caracterizado por um claro desenho de expansão e hegemonia. Esse projeto foi recusado pela Convenção, mas convém examiná-lo também para se dar conta, ao mesmo tempo, das tendências de fundo que emergiam pouco a pouco na nova França burguesa dos primeiros anos de sua vida, e dos argumentos por meio dos quais essas tendências eram justificadas, ou seja, dos instrumentos ideológicos graças aos quais os próprios ideais revolucionários eram postos a serviço de uma política expansionista. Todo o "Titre XIII" do projeto girondino tratava das "relações internacionais da República francesa". Após ter declarado (artigo 1º) que "a República francesa só tomará as armas para manter sua liberdade, a conservação de seu território e a defesa de seus aliados", ele deixava a porta aberta às anexações com o artigo 2º: "ela renuncia solenemente a reunir a seu território regiões estrangeiras, a não ser segundo o desejo livremente exprimido pela maioria de seus habitantes, e somente no caso em que as regiões que solicitarão essa reunião não serão incorporadas e unidas em uma outra nação, em virtude de um pacto social expresso em uma Constituição anterior e livremente consentida" (Buchez & Roux, 1834, v.XXLV, p.153). Visto que, nesse momento, era rodeada pela Europa feudal, ou seja, por países dominados pelo despotismo, a França revolucionária podia tranqüilamente anexar região após região: a idéia do "pacto social" como instrumento de luta contra a opressão feudal se transformava em instrumento do expansionismo francês ressuscitado.
Quem se opunha à inversão, em senso expansionista, do alcance universal da Revolução Francesa, era Robespierre. Sua polêmica é dura contra "o pregador inoportuno da República una e universal", assimilado aos contra-revolucionários (1958, v.III, p.101 – 25 de dezembro de 1793); sua ironia é cortante, contra os que querem não se entende bem o quê: "a República, ou, antes, o incêndio universal" (1967, v.X, p.267 – 23 de dezembro de 1793); é lúcida sua advertência a não esquecer que "ninguém ama os missionários armados" (1958, v.I, p.129 – 2 de janeiro de 1792); é clara sua recusa da "mania de tornar toda casa feliz e livre, apesar dela". E, ao contrário, "todos os reis poderiam vegetar ou morrer impunes em seus tronos ensangüentados, se tivessem sabido respeitar a independência do povo francês" (1967, v.X, p.230 – 5 de dezembro de 1793). Naturalmente, também em Robespierre é possível vislumbrar recaídas, mas sua orientação de fundo recusa, sem equívoco, a teoria da exportação da revolução.
É uma teoria que encontra adeptos mesmo fora da França. Quando escreve A missão do homem, em 1799, Fichte repete que a condição da realização da paz perpétua é o triunfo, em âmbito internacional, de uma constituição política racional, do "verdadeiro Estado". Mas como chegar a esse resultado? Ele formula bem a hipótese de que agitações revolucionárias interiores acelerariam a crise do sistema feudal; mas, com uma mudança em relação ao passado, aparece uma hipótese completamente diferente:
nenhum Estado livre pode razoavelmente admitir a seu lado formas de governo sob as quais os chefes têm interesse em submeter os povos vizinhos e que, portanto, por sua simples existência, ameaçam incessantemente a tranqüilidade de seus vizinhos: a preocupação por sua própria segurança obriga todos os povos livres a transformar igualmente todos os outros povos vizinhos em Estados livres [...] e assim, quanto nascerão alguns Estados verdadeiramente livres, o reino da cultura e da liberdade, e com ele o da paz universal, acabará, necessariamente, por abraçar aos poucos todo o universo. (Losurdo, 1983-1984, p.135-45)
As raízes da guerra serão definitivamente arrancadas por ondas sucessivas de exportação da revolução, que abaterão os Estados não-livres que não teriam ainda sucumbido após agitações internas. Com Napoleão, a intenção de expansionismo e conquista colonial torna-se cada vez mais evidente, por parte de um país que tinha, todavia, prometido liberdade e paz perpétua, e isso provoca na Alemanha uma crise colossal dos mitos, e, por conseguinte, uma onda reacionária e um turvo chauvinismo (Losurdo, 1989, p.1). É, ao contrário, um balanço extremamente seco o traçado por Engels (1955, v.XX, p.239), no final do século XIX, para o período que vai de 1789 às campanhas-relâmpago de Napoleão: "a paz perpétua que tinha sido prometida se transforma em uma guerra de conquista sem fim". Mas essa constatação não significa, como em tantos contemporâneos de Engels, a celebração da guerra e a derrisão do ideal de paz perpétua. Não. Somente que o processo de realização desse ideal era bem mais complexo e tortuoso, e implicava mutações político-sociais bem mais radicais do que se previra no início.
Ironizando mais tarde o fracasso do ideal da paz perpétua, Joseph de Maistre (1884, v.V, p.24ss) celebra a guerra como uma espécie de rito sagrado, a cujo encanto o homem não pode se subtrair de forma alguma:
não ouvis a terra que grita e pede sangue [...]? Não notais que, no campo de morte, o homem não desobedece nunca? Ele pode massacrar Nerva ou Henrique IV; mas o mais abominável tirano, o mais insolente açougueiro de carne humana não ouvirá nunca: não queremos mais vos servir. Uma revolta no campo de batalha, um acordo para se aliar renegando um tirano, eis um fenômeno de que não tenho memória.
Maistre tinha, talvez, razão, mas somente no que diz respeito à história que estava atrás de si: a Revolução de Outubro é a primeira revolução que surgiu nos traços da luta contra a guerra, empunhando novamente o ideal de paz perpétua oriundo da Revolução Francesa e enriquecendo, de certo modo, o catálogo dos direitos do homem, do direito, fundamental, à paz.
3
Um período de entusiasmo comparável ao que fora suscitado pela Revolução Francesa ocorreu, em uma escala bem maior, após a Revolução de Outubro. O vigor universalista e internacionalista é ainda mais acentuado. Lenin ("A guerra e a revolução", 1955, v.XXIV, p.412) observara que a ideologia dominante não considerava verdadeiramente como guerras as aventuras coloniais, mas as considerava como simples operações de polícia internacional, operações que implicavam, porém, massacres gigantescos. Com a Revolução de Outubro, fala-se, ao contrário, com insistência, dos que são definidos como "escravos coloniais", vistos como uma das forças protagonistas da luta que deve terminar, finalmente, com a opressão nacional e a guerra.12 Os estados imperialistas que disputam, com a guerra, as colônias são denunciados por Lenin ("O socialismo e a guerra", 1955, v.XXI, p.276ss) como Estados escravistas. Se, em 1789, as raízes da guerra eram encontradas no sistema feudal e no absolutismo monárquico, agora são encontradas no sistema do capitalismo e do imperialismo. É essa análise que aparece nos textos de Lenin, assim como nos documentos da Internacional comunista. Mas convém reproduzir aqui, para esclarecer seu ensino e sua eficácia, uma declaração, mesmo se muito posterior, de Mao Tsé-tung:
A guerra, esse monstro que leva os homens a se matarem uns aos outros, acabará por ser eliminada pelo desenvolvimento da sociedade humana, o que ocorrerá em um futuro não distante. Mas para suprimir a guerra há somente um meio: opor a guerra revolucionária à guerra contra-revolucionária.
Para apreender o significado correto dessa declaração, não se deve esquecer que, nesse momento, era iniciada a invasão da China pelo imperialismo japonês, e, portanto, as armas tomavam a palavra. A orientação de base que aparece é, de qualquer forma, semelhante à que vimos em Rousseau: independentemente das lutas concretas, particulares e diferentemente articuladas cada vez, a guerra como fenômeno geral é eliminada, em última análise, por um processo revolucionário que arranca suas raízes uma vez por todas. "Quando a sociedade humana chegar à supressão das classes, à supressão do Estado, não haverá mais guerras [...] Será a era da paz perpétua para a humanidade".13 A instauração da paz perpétua não mais pressupõe a desaparição dos déspotas e barões feudais, mas a dos capitalistas, assim como das classes sociais em geral.
Se, na Rússia, a Revolução de Outubro triunfara, um ano depois as revoluções populares varreram, na Alemanha e na Áustria, a dinastia dos Hohenzollern e dos Habsburgos e proclamaram a República, sem que a situação estivesse, porém, estabilizada; em março e abril de 1919, a revolução proletária parecia triunfar na Hungria e na Bavária, ao passo que, por sua vez, a Itália se preparava para ser abalada pelo movimento de ocupação das fábricas. Tudo isso parecia justificar a esperança de uma passagem rápida do capitalismo ao socialismo em escala européia, ou mesmo mundial. Havia muitas declarações exaltadas, ou que, pelo menos, assim hoje nos parecem. Algumas semanas após a fundação da Internacional comunista, Zinoviev se exprimira assim:
o movimento progride com uma rapidez tão vertiginosa que se pode afirmar, com certeza, que em um ano já teremos começado a esquecer que houve na Europa uma luta pelo comunismo, porque em um ano a Europa será comunista. E a luta se estenderá para a América, talvez mesmo para a Ásia e demais continentes. (Agosti, 1974, p.75)
Por sua vez, o próprio Lenin, habitualmente sóbrio e comedido, no discurso final pronunciado no Congresso de fundação da Internacional, declarara: "a vitória da revolução proletária em todo o mundo está garantida. A fundação da república soviética internacional se aproxima" (ibidem, p.74). E a república soviética internacional significaria a instauração da paz perpétua: quais motivos de guerra poderiam ainda subsistir, no momento em que o sistema mundial do capitalismo e do imperialismo seria abatido e desaparecessem as fronteiras dos Estados e as rivalidades nacionais?
Nesse momento, a luta pelo triunfo do socialismo em escala européia, ou mesmo mundial, é ainda penetrada pelo tema antimilitarista e de compromisso pela paz que caracterizara a Revolução de Outubro; e está extremamente misturada à denúncia da intervenção contra-revolucionária à custa da jovem União Soviética, e à luta pelo reconhecimento do direito de todo país e de todo povo à independência e à autodeterminação; pelo reconhecimento, pois, de um direito que constitui uma das condições fundamentais para a instauração de uma ordem internacional de paz. Todavia, já começam a se desenhar as tendências de sinal um pouco diferente. Sempre por ocasião do primeiro congresso da Internacional comunista, Trotski (1970, p.98), após ter defendido que o Exército Vermelho era sentido e considerado por seus melhores soldados "não somente como o exército de proteção da República socialista russa, mas também como o Exército Vermelho da Terceira Internacional", concluía assim:
E se hoje não pensamos mesmo em invadir a Prússia Oriental – ao contrário, ficaríamos contentes se os senhores Ebert e Scheidemann nos deixassem em paz –, todavia, é certo que, quando chegar o momento em que nossos irmãos do Ocidente nos chamarem em sua ajuda, responderemos: eis-nos! (ibidem)
Após ter sido desencadeada e ter chegado à vitória na onda da luta pela paz, a Revolução de Outubro é invocada como um instrumento para legitimar uma política de expansão revolucionária que não respeita as fronteiras entre os Estados e as nações.
Encontramo-nos, aqui, diante de uma dialética semelhante à que tinha se realizado após a Revolução Francesa. É por isso que Gramsci (1975, p.730) denuncia, na teoria da "revolução permanente", uma "forma de napoleonismo anacrônico e antinatural". Mas essa condenação do "napoleonismo" à la Trotski não revela um juízo claro sobre o "napoleonismo" propriamente dito. Como avaliar a grande nação nascida da Revolução Francesa, ou melhor, da contra-ofensiva que se desenvolveu em seguida à derrota da intervenção da reação; como julgar essa grande nação que, objetivamente, contribuíra para acelerar a crise e a derrota do sistema feudal em escala internacional, mas que, progressivamente, se abandonara a uma política de opressão nacional e mesmo de pilhagem de tipo colonial? É um problema que chama a atenção de Lenin principalmente após a Revolução de Outubro, no momento em que aprofundou sua reflexão sobre a dialética que se realizou após 1789, quando "a época das guerras revolucionárias da França cedeu o passo à das guerras de conquista imperialista".
É significativo que, no momento da paz de Brest-Litovsk, a luta da jovem Rússia soviética contra a agressão do imperialismo alemão seja comparada à luta que, em outros tempos, a Prússia conduzira contra a invasão e ocupação napoleônicas, mesmo se guiada pelos Hohenzollern, ao passo que, por sua vez, é Napoleão que é definido como "um pirata semelhante ao que são hoje os Hohenzollern".14 A França, que vira triunfar a Revolução, em particular com a onda da luta contra as guerras de gabinete e a política de aventura coloniais própria das cortes feudais, que se tornara o país propagador do ideal da paz universal, e que, a um certo momento, encarnara, efetivamente, esse ideal, com sua reivindicação do direito de todo país à independência, essa mesma França se transformara em uma potência expansionista. Como a linha de demarcação entre progresso e reação, assim como entre forças de paz e forças de guerra, não pode ser definida de uma vez por todas, ela é suscetível de mutações e inversões que podem ser radicais, e, em todo caso, deve ser definida pela análise concreta da situação concreta.
Em outras palavras, países e povos tinham o direito de reivindicar a independência e a autodeterminação também diante da França revolucionária e napoleônica. Como se vê, Lenin era decididamente hostil a toda forma de napoleonismo. Compreende-se, assim, sua preocupação, esvaecida a perspectiva da "república soviética internacional", em desenvolver as regras da coexistência pacífica entre países de regime social diferente.
As esperanças de paz suscitadas pela Revolução de Outubro não parecem, todavia, ter tido um resultado melhor do que o da Revolução Francesa. Da Revolução Francesa à Revolução de Outubro: a história do ideal de paz entre as nações é a história de dois fracassos? Na realidade, fazem-se hoje acusações mais graves contra o ideal revolucionário da paz perpétua. Segundo Carl Schmitt (1950, 1963) (e as publicações a partir dele), é a tradição política que vai da Revolução Francesa à Revolução de Outubro que forjou, com o universalismo, o instrumento ideológico para justificar um intervencionismo universal. Principalmente, a tradição política revolucionária, com seu universalismo, construiu "a inimizade absoluta", essa nova figura desconhecida do jus publicum europaeum, e é aí que é preciso procurar a origem dos massacres e da catástrofe do Ocidente. Nesse quadro, o ideal revolucionário da paz perpétua teria significado, na realidade, a retomada das guerras de religião (cf. também Schnur, 1983).
Seria fácil demonstrar, no plano histórico, a falsidade desse esquema, pondo em evidência o fato de que a intervenção internacional contra-revolucionária, inicialmente contra a França que tinha destruído o Ancien Régime, depois contra a jovem União Soviética, foi conduzida justamente como uma cruzada para defender a "civilização", e, às vezes, mesmo a religião. Bem antes de Schmitt, é Edmund Burke (1826b, v.VII, p.13ss) quem viu na Revolução Francesa "uma revolução de doutrina e dogma teórico" que, por seu "espírito de proselitismo", fazia pensar na Reforma protestante, mesmo se se tratava de um proselitismo ao serviço de uma doutrina ímpia e atéia.
Schmitt, que denuncia os revolucionários franceses como os únicos responsáveis pela retomada das guerras de religião na Europa, é, no entanto, desmentido justamente por Burke (1826a, v.VII, p.174ss), que, após ter denunciado a impiedade da Revolução, lança em seguida o apelo a uma guerra geral (uma verdadeira cruzada) contra a França, a uma guerra que se configura explicitamente como "uma guerra religiosa", no sentido literal do termo. Tratava-se de uma guerra "sob vários aspectos completamente diferente" das guerras tradicionais, dos conflitos tradicionais entre uma nação e outra (Burke, s. d., v.VII, p.387).15
O que estava em jogo, dessa vez, era "a Causa da Humanidade", tratava-se de salvar "o mundo civilizado da impiedade e da barbárie", afastar a ameaça que pairava sobre "a alegria de todo o mundo civilizado". Tratava-se, em última análise, de uma "guerra civil" de caráter internacional. Por isso, as tropas ocupadas contra a França revolucionária eram "os vingadores das injúrias e agressões que foram dirigidas à raça humana": eram chamadas não somente a enfrentar os batalhões franceses, mas a extirpar o jacobinismo "em seu lugar de origem", para proceder, em seguida, à "punição exemplar dos principais autores e articuladores" da ruína da França. É uma verdadeira Cruzada que é planejada: não por acaso Burke é o destinatário de uma carta do papa que bendiz sua nobre dedicação à defesa da causa humanitatis.16 E não é por acaso que Burke (1826c, v.V, p.278), quando apela para uma guerra geral contra a França, cita o exemplo do alarme suscitado em seu tempo em toda Europa pela agitação anabatista. Nesse sentido, contrariamente às teses de Schmitt, a guerra de religião nunca cessou completamente, mesmo na Europa; somente os heréticos tornaram-se, cada vez mais claramente, os revolucionários e destruidores da ordem social.
Carl Schmitt não esconde sua admiração por Joseph de Maistre, "esse pensador grande e corajoso do Antigo Regime"; e, com efeito, Maistre é o primeiro a acusar a Revolução Francesa de tornar as guerras, até então limitadas e cavalheirescas, bárbaras e impiedosas. Todavia, Maistre celebra, em contrapartida, "o entusiasmo da carnificina" e parece mesmo justificar o genocídio dos índios. É verdade: "a descoberta do Novo Mundo" foi "a declaração de morte de três milhões de índios". Mas, enfim, "havia uma profunda verdade" – declara Maistre – "neste primeiro movimento dos europeus que recusaram, no século de Colombo, reconhecer seus semelhantes nos homens degradados que povoavam o Novo Mundo". O desaparecimento das guerras cavalheirescas é lamentado no que diz respeito às nações européias. 17
Pode-se dizer a mesma coisa quanto a Carl Schmitt. Quando ele denuncia a guerra total e discriminatória, deplora a desaparição do jus publicum europaeum, deplora a desaparição das limitações que a guerra estabelecera exclusivamente no interior da comunidade ocidental. A guerra limitada, não-total e não-discriminatória, pressupõe uma "homogeneidade no plano da civilização", e essa homogeneidade, o Schmitt dos anos 30 recusava tanto à Etiópia e aos países africanos quanto à União Soviética, que ele situava fora da Europa. Mesmo no interior da Europa, sempre para o Schmitt dos anos 30, os povos incapazes de se dar um Estado, e mesmo pequenos Estados, não podiam ser considerados "sujeitos ao direito internacional".18
Desse modo, o caminho fica livre para a guerra discriminatória e total contra os países colocados fora do jus publicum europaeum (mesmo se de um ponto de vista "exteriormente" geográfico fazem parte da Europa). E nisso, Schmitt se situa em uma posição de continuidade ideal com os teóricos da contra-revolução: após ter definido, como vimos, os revolucionários franceses como "bárbaros, ateus e assassinos", Burke (s. d., v.VII, p.382) insiste na unidade substancial da Europa cristã, em relação ao mesmo tempo aos turcos e aos jacobinos; estes últimos, além do mais, são bem piores do que os próprios turcos. Dir-se-ia que Burke exclui do jus publicum europaeum os turcos e a França revolucionária, assim como mais tarde Schmitt fará com a Etiópia, com os países incapazes de se dar um Estado e com a União Soviética. Pôr exclusivamente na conta da tradição revolucionária a reideologização da guerra, após o fim das guerras de religião – como fazem Schmitt e seus discípulos –, é, portanto, uma simplificação que se aproxima, perigosamente, da falsificação histórica.
Permanece o fato de que as esperanças de realização da paz perpétua não foram realizadas nem pela Revolução Francesa nem pela Revolução de Outubro: conflitos sangrentos ocorreram, mesmo entre Estados que se diziam socialistas. Deveríamos, portanto, concluir que fracassou a utopia revolucionária da paz perpétua? Diante da evidência dos fatos, diante da continuação do fenômeno da guerra, deveríamos concluir que o pensamento de Maistre, isento da "utopia", da ilusão "messiânica" de um mundo sem guerra, revela, nesse ponto, uma maior dignidade teórica e científica do que, por exemplo, o de Kant? Seria uma conclusão simplista e arbitrária.
Esclareçamos: não devemos aqui contrapor duas personalidades, ou mesmo dois ideais. Não se trata de justificar Kant com base na nobreza de seu ideal; trata-se de comparar duas análises opostas do fenômeno da guerra em um plano rigorosamente científico. Pois bem, Maistre procede a uma naturalização forçada de um fenômeno político-social ("é a terra que grita e invoca o sangue"), de tal modo que a guerra aparece como uma maldição (ou benção) divina, à qual é impossível se subtrair, como um fenômeno que não possui nenhuma relação com a ação e com as instituições políticas; é um discurso extremamente ideológico, visto que absolve, antecipadamente, os responsáveis de toda guerra. No campo oposto, Kant apreende a ligação existente entre as guerras de gabinete de seu tempo e o regime feudal, mesmo se possui a ilusão de que a desaparição das guerras de gabinete, em seguida à abolição do regime feudal, significasse a desaparição do fenômeno da guerra como tal (ilusão assombrosa, se se considera que precisamente o ensaio Para a paz perpétua começa a entrever e denunciar as guerras de novo tipo provocadas pela expansão colonial). Todavia, em seu conjunto, se se quer fazer um balanço correto, a página de Kant, junto à ilusão revolucionária e a tensão utópica, revela uma dimensão científica precisa, ao passo que o realismo político de Maistre é pura e simples ideologia.
Vimos Engels constatar como era ilusória a paz perpétua prometida pelos protagonistas da Revolução Francesa. Essa promessa continha uma ambigüidade de fundo: se Barnave se dirigia aos proprietários e a seus interesses, outros se referiam às camadas sociais mais humildes da população (em terra alemã, Fichte deposita suas esperanças nos "camponeses", nos "artesãos", nos "filhos do povo" enviados ao açougue pelos poderosos) (Losurdo, 1983-1984, p.132ss). A ambigüidade das promessas de paz perpétua feitas pelos revolucionários é, no fundo, a ambigüidade inerente ao Terceiro Estado como tal. Entende-se melhor, então, a consideração crítica de Engels, e, todavia, essa não trasborda no assim chamado "realismo", que gostaria de fazer da guerra algo de natural e eterno. O resultado científico da análise de Kant (e dos protagonistas da Revolução Francesa) é sólido: a ligação entre as guerras de gabinete e o Antigo Regime era um ponto fixo, trata-se agora de ir além.
Considerações análogas podem ser feitas quanto às esperanças suscitadas pela Revolução de Outubro. Inegavelmente, sua contribuição foi grande não somente no plano político, mas também no plano mais estritamente científico, para apreender, atrás da fumaça das frases grandíloquas, patrioteiras e chauvinistas, a lógica real (corrida para se apropriar dos mercados e das matérias-primas, para obter lucros mais elevados, pela hegemonia) que conduzia a provas de força e a massacres nas colônias e no plano mundial. Essa lógica cessa de modo total e definitivo quando se opera uma transformação radical das relações de propriedade e produção? E quais mecanismos ulteriores podem se desencadear nas sociedades socialistas ou que se proclamam socialistas, e suscitar novas tensões, rivalidades e conflitos nacionais?
O problema permanece aberto, mas não pode ser resolvido dissolvendo o patrimônio não somente de experiências políticas, mas também de conhecimentos científicos historicamente acumulados. Uma coisa é certa: não se pode voltar à posição anterior a 1917, e ainda menos a 1789. A guerra não pode tornar-se novamente um fato: ela é um problema. Os movimentos pacifistas que se desenvolveram em nossa época não se limitam à luta, evidentemente justa e absolutamente necessária, para impedir e deter tal ou tal conflito determinado; eles têm uma ambição mais alta: determinar e romper de uma vez por todas os mecanismos que provocam a guerra e impedem que ocorra uma paz durável e perpétua. Essa ambição não seria pensável sem as duas grandes revoluções que marcaram o mundo contemporâneo. Entretanto, exatamente pelo fato de que a guerra se tornou, de forma irreversível, não um acontecimento natural, mas um problema político-social, ela põe em causa responsabilidades precisas.
Os governantes, o poder e as instituições políticas são chamados a responder pela guerra, ou mesmo somente pela preparação da guerra e da corrida às armas. Essas premissas, hoje evidentes, do movimento pacifista possuem atrás de si a Revolução Francesa e a Revolução de Outubro. A sorte de Luís XVI foi decidida também por suas intrigas para precipitar a França em uma guerra que ele esperava pudesse fazer renascer o absolutismo monárquico. E o fim dos czares foi marcado pela luta de um povo inteiro contra o massacre imperialista. Desde então, não se contam mais as dinastias, reais ou não, os reis e governantes que foram chamados a responder, se não diante de um tribunal, pelo menos no plano político, por suas responsabilidades no desencadeamento ou na preparação da guerra. Mesmo independentemente das atrocidades e dos crimes de guerra propriamente ditos, o desencadeamento de uma guerra, de uma agressão, é, cada vez mais, sentido e condenado como um crime. E essa consciência é um dos resultados mais importantes obtidos pela humanidade pelo longo caminho da Revolução Francesa à Revolução de Outubro, perseguindo um ideal, da paz perpétua, cuja realização estamos ainda longe de entrever.
A limitação da guerra desenvolveu-se de modo diferente da imaginada por Schmitt, assim como pelos nostálgicos de um jus publicum europaeum, que, na realidade, excluíam as colônias e o que se encontrava além da Europa e do Ocidente "autênticos", e que não hesitavam em expulsar, da Europa e do Ocidente "autênticos", rebeldes e revolucionários. Nos momentos de crise aguda, a falta de universalismo acabava por colocar em discussão as limitações da guerra mesmo no interior da Europa.
As idéias que brotaram de 1789 e de 1917 podem ter contribuído por si mesmas (e não somente por seus adversários) para reideologizar e fanatizar a guerra; mas, ao mesmo tempo, retirando a máscara de fatalidade natural do fenômeno da guerra, essas idéias suscitaram uma crítica enorme e um controle por baixo da guerra e das operações belicosas. É verdade que o universalismo revolucionário se transformou, em circunstâncias históricas concretas, em instrumento de expansão, mas esse expansionismo encontra seu limite e uma contratendência eficaz exatamente no universalismo revolucionário. Não é por acaso que, em sua polêmica contra os teóricos da exportação da revolução à la Brissot, Robespierre (1958, v.I, p.114-5) alerta contra o perigo de seguir nas pegadas do Antigo Regime: "se violais seus primeiros territórios, irritareis os povos da Alemanha [...] nos quais as crueldades exercidas no Palatinato pelos generais deixaram as impressões mais profundas do que as que puderam produzir alguns opúsculos proibidos"; uma invasão francesa "poderia despertar a idéia de um incêndio do Palatinato" (ibidem, p.130). Brissot acabava por se situar em uma linha objetiva de continuidade com o Antigo Regime, enquanto as preocupações de Robespierre exprimiam o conteúdo novo da Revolução.
Devemos, porém, refletir sobre um outro aspecto: pela primeira vez, com a Revolução Francesa, a dominação colonial é colocada em questão ao mesmo tempo que a guerra. É um questionamento que está, evidentemente, ausente das revoluções holandesa e inglesa (fortemente estimuladas pelo desejo de uma participação ativa na apropriação dos despojos coloniais), mas que é igualmente ausente da revolução americana, durante a qual a reivindicação da independência nacional, desde o início, se mistura com a ambição de constituir um novo império substituindo o império inglês (Bairati, 1975). Ao contrário, é durante a Revolução Francesa que vozes de personalidades tão diferentes como Dupont de Nemours e Robespierre se elevam para gritar "Morram as colônias", se a sua conservação devia significar o sacrifício da liberdade ou dos ideais revolucionários (cf. Dockès, 1989, p.85). Não é por acaso que, anos depois, o principal ato de acusação que Renan (1982, p.103) vai dirigir contra a Revolução Francesa será exatamente de ter bloqueado "o desenvolvimento das colônias [...] fechando, desse modo, a única saída pela qual os Estados modernos podem escapar dos problemas do socialismo".19
Notas
Revista Estudos Avançados
Eduardo!
ResponderExcluirÉ impressionante esse mote de "MAISTRE": "é a terra que grita e invoca o sangue".
A Revolução Francesa, que deu margem a outras idéias e ideais de guerra, não conseguiu implementar a PAZ que o mundo à visão de uma guerra necessita.
Depois disso, houve Hiroshima, Israel. e Irã, que destaco principalmente estes dois últimos, pela força bélica e por, popularmente estarem sempre em ponto de guerra.
A PAZ almejada por todos como eterna e perene, está ao meu ver, longe de ser alcançada, devido aos diferentes ideais e poderio das nações.
Infelizmente!
Abraços
Mirze