sábado, 28 de agosto de 2010

Perspectivas para o trabalho

Perspectivas para o trabalho

Rene Revol

Já faz agora dois a três anos que uma idéia invadiu as ciências sociais, tentando forjar novas idéias para o grande público: o desemprego que se espalha sem mostrar sinais de retrocesso seria apenas uma crise de emprego ligada à crise econômica aberta ou latente, que vem de 1974, mas que se ligaria mais fundamentalmente a uma crise do trabalho enquanto tal, a um questionamento da centralidade do trabalho em nossa civilização. São incontáveis os artigos e contribuições a respeito, sendo os principais amplamente difundidos, fato atestado, por exemplo, pelo sucesso de livraria de Le travail, une valeur en voie de disparition, da filósofa e funcionária do Ministério do Trabalho francês, Dominique Méda. Tal sucesso é facilmente compreensível: o desemprego dissemina-se como uma praga, parece resistir a todas as conjunturas, tanto de recessão como de crescimento, assim como a todas as políticas e todos os remédios. Impõe-se a idéia de que as causas devem ser profundas e estruturais, que estão talvez ligadas a atributos fundamentais e de nossas modalidades de produção e existência.

Também para o marxismo, o desemprego não é um mal passageiro; é, porém, uma necessidade do modo de produção capitalista e só poderá desaparecer com ele: qualquer reabsorção do desemprego só pode ser provisória. A esse respeito, é divertido constatar que a tese da excepcionalidade do crescimento forte com pleno emprego durante os pretensos "trinta anos gloriosos", defendida até o início dos anos 80 por uma minoria de autores marxistas, é hoje retomada pela imensa maioria dos pensadores em moda, só que agora para fustigar um apego conservador dos assalariados ao pleno emprego! Por exemplo, a organização patronal Centro dos Jovens Administradores escreve em 1994, num artigo intitulado "L’ilusion du plein emploi":

Nossa cultura mais imediata enraíza-se no período pós-guerra, o dos Trinta Gloriosos, quando o pleno emprego permitia dar a cada qual um lugar na sociedade, superar a contradição entre o econômico e o social e regular as relações entre a empresa e a sociedade. Essa situação fez-nos tomar por "regra" o que jamais foi se não uma exceção histórica.



A partir daí se pode derivar a temática do declínio inexorável do trabalho em todas as suas funções. Os autores concernentes têm o hábito de analisar esse declínio em torno de três funções principais:

o trabalho como modo de produzir bens e serviços, sob o efeito de novas tecnologias;

o trabalho como o fornecedor de um emprego e de rendimentos, agora sob o efeito do desenvolvimento de atividades não remuneradas e de rendimentos sociais;

o trabalho como meio de integração social, com os indivíduos realizando suas personalidades em muitas outras áreas de atividades (família, lazer e esporte).

Jean Boissonat contribuiu para a popularização deste último ponto de vista no relatório da Comissão do Planejamento (francês) "Le Travail dans vingt ans" (1995).

Pode-se imaginar o alcance e as conseqüências de tais análises e a importância de se esmiuçá-las.

O pleno emprego morreu, viva a plena atividade?

Essa afirmação, de Michel Godet, expressa bem o ponto de partida de todo um pensamento em moda. Uma florada de autores exprime-se nesse sentido. Jacques Robin: "Cabe-nos tender não mais a uma sociedade de pleno emprego, mas sim a uma sociedade de plena atividade". Xavier Gaullier: "está globalmente em jogo saber como passar da sociedade das exclusões maciças, da sociedade flexível e seletiva, para uma sociedade diversificada de plena atividade." Yoland Bresson: "o pleno emprego salarial terminou; outro contrato social deve ser proposto; outro objetivo: a plena atividade". E muitos outros poderiam ser citados.

O essencial desse discurso é, pois, fazer uma distinção muito clara entre emprego e atividade. Assim, o Centro de Jovens Administradores vê duas lógicas diferentes:

A primeira que chamaremos lógica do emprego assalariado, confunde trabalho e emprego. Ela promove uma regulação do sistema por uma série de medidas, que teríamos de aceitar, a fim de que a maioria das pessoas possa ter acesso ao emprego salariado. A segunda, a lógica da atividade, é mais inovadora. Ela faz uma distinção entre o trabalho e o emprego. Neste momento em que os modelos existentes desabam um após outro, ela imagina um modo de regulação baseado no questionamento dos próprios fundamentos de nossa civilização.



Mesmo se a fala carece ainda de precisão, vê-se bem que a distinção entre atividade e emprego serve de vetor a um questionamento mais profundo do lugar do trabalho na sociedade. Mas o que se entende por atividade? A vagueza de tal palavra-veículo pode encobrir acepções bastantes variadas. Decifrando um pouco os textos em moda sobre o assunto, pode-se ver um continuum de definições que variam entre dois pólos. De um lado, uma definição liberal, que apresenta a atividade como uma válvula de escape para todos os que não mais encontrassem seu lugar num mercado de trabalho saturado; este podendo, por isso mesmo, tornar-se mais flexível e oferecer menor garantia social. É, por exemplo, a tese de Michel Godet, que atribui o desemprego à rigidez do mercado de trabalho, particularmente a existência de um salário mínimo, que não propõe suprimir, substituindo por uma renda mínima de existência universal. Nesse espírito, atividade designa de fato empregos que não teriam mais quaisquer das garantias do emprego salariado padrão, para os quais a justiça do trabalho não existiria e onde a remuneração mínima permitiria evitar que esses ativos afundassem na pauperização.

Esse ponto de vista, que se escreve na lógica liberal de desregulamentação, pode surgir sob outros autores, que não se esperava ver nesta corrente. Assim, para o antigo conselheiro de Pierre Mauroy (1º ministro socialista do Governo Mitterrand), Bernard Brunhes: "pode haver pleno trabalho ou plena atividade, se soubermos renunciar a antiga rigidez". Ou ainda o filósofo Jean Marc Ferry, apresentando seu projeto de alocação universal, de amplitude tão generosa que permitiria desenvolver setores sociais não rentáveis por meio de uma maior rentabilidade dos setores não produtivos.

De outro lado, certos autores defendem uma concepção de atividade baseada exclusivamente em razões sociais, que fazem dela uma espécie de extensão do assistencialismo. Uma vez que a exclusão do trabalho ameaça romper os laços sociais com um número crescente de indivíduos, tratar-se-ia de encontrar uma ocupação para essas pessoas, mesmo sem salário, mesmo sem retribuição, para evitar que fiquem relegados da sociedade e permitir a cada um a permanência, por meio de atividade úteis, conforme escreve Guy Roustang:

atividades que escapem às normas de relacionamento empregatício de nossa sociedade e que sejam adaptados às possibilidades e desejos de cada um, permitindo a reintegração no jogo coletivo, quer se trate de atividades de autoprodução individuais ou coletivas, no domínio da alimentação, do melhoramento da habitação ou da conservação de bens duráveis, quer se trate de atividades de lazer.

À parte o fato de que os operários (estes sim assalariados normalmente!) não esperaram nossos novos pensadores para se entregar às alegrias da jardinagem, da manutenção doméstica e da ajuda mútua entre amigos e vizinhos (às vezes ditada pela insuficiência de rendimentos) — seria melhor, tudo somado, chamar as coisas por seu nome habitual! —, não se vê bem como tudo isso poderia sustentar um homem e sua família; e daí a idéia de uma renda universal, que permitiria dispor de um mínimo para viver aos que "se ocupassem" sem ter um emprego remunerado.

Nessa perspectiva, o desenvolvimento da atividade é um meio de luta contra a exclusão social. Assim, para o Centro dos Jovens Administradores:

Se o emprego assalariado não pode mais desempenhar seu papel de integrador social, capaz de assegurar para cada homem uma função, um rendimento e um status, e se recusarmos o espectro de uma sociedade de excluídos e assistidos, então precisamos fazer uma atividade, isto é, uma forma de participação na vida da coletividade e emprego assalariado, que não é mais que uma forma de atividade entre outras.

A lógica de tal concepção leva a propor uma ruptura da relação emprego-rendimento e a implantação de um rendimento parcial, determinado do modo coletivo, separadamente do emprego.

Esta segunda corrente, mais social que liberal, é levada assim a assimilar a importância de um rendimento cada vez mais socializado e cada vez menos ligado a uma participação individual na produção. O defeito dessa tese é que, se é verdade que atualmente nos países capitalistas avançados 30% e 50% do rendimento doméstico é socializado, isso é diretamente dependente dos benefícios e posições conquistados pelos assalariados. E se pode apostar com boas chances que, se for cortado o laço entre rendimento e emprego, assim desaparecendo a relação social que sustenta a parte socializada do rendimento, esta ficará reduzida a uma esmola de sobrevivência.

Após este apanhado rápido, transparece que a concepção liberal e a concepção "caridosa" de atividades não contribuem significativamente para esclarecer essa palavra-veículo. Pode-se distinguir com P. Sauvage, quatro tipos de atividades, a partir da mais até a menos rentável economicamente:

a) artesanato e pequeno comércio de sobrevivência;

b) comércio de proximidade economicamente inviável;

c) serviços de proximidade, exigindo um financiamento público, total ou parcial;

d) "as atividades de relação humana, nas quais a dimensão gratuidade deve ser absolutamente preservada".

No fim das contas, a atividade aparece como tudo o que o mercado não pode tomar em consideração e que releva de uma atividade social. Em tais condições, legitimamente perguntar por que "atividade", mais ou menos remunerada, substituiria " serviço público "e "serviço social" que, no quadro do Estado e da proteção social, dão lugar a verdadeiros empregos salariados. Não é preciso ser grão-letrado para se dar conta de que, ao mesmo tempo que esse conceito permanece etéreo, a martelagem sobre a atividade como substituta do emprego acompanha com perfeição o questionamento dos direito e garantias dos assalariados, o qual, sim, é bem real.

O esforço dos mais generosos dos pensadores por fazer com que essa emergência de atividades sociais dê lugar a um "estatuto" ou a um "reconhecimento social" só serve como correção de rodapé a um empreendimento de desregulamentação do estatuto salarial, já em plena marcha. E a proposta de juntar atividades lado a lado com empregos verdadeiros, acaso não se orienta para uma sociedade explicitamente dual, bem diferente da sociedade de classes que conhecemos? A oposição entre grupos sociais participantes da mesma esfera produtiva, com posições hierárquicas e rendimentos diferentes, seria substituída por universos sociais completamente separados, sendo que pode, rendimentos decentes e consideração estariam evidentemente só de um lado. Alguns desses autores se deram conta disso, como Guy Roustang, por exemplo, que, após uma resenha crítica das ambigüidades da noção de atividade, afirma que o objetivo do pleno emprego não se deve ser abandonado, se ao mesmo tempo se quiser dar toda a sua dimensão à pluralidade de atividade de uma vida humana.

Isso dito, não é por que a noção de atividade seja vaga e perigosa que o problema expresso por sua aparição não existiria; noutros termos: está o trabalho em declínio?

O chip destrói o emprego?

O trabalho seria, pois, cada vez mais raro a essa rarefação é que produziria uma reviravolta considerável no sistema de emprego. A primeira explicação disso apoia-se sobre os efeitos das mutações tecnológicas, principalmente na informática; esse discurso, já antigo, funciona sempre muito bem, principalmente porque é apresentado com ares de revelação: estaria ocorrendo um fenômeno extraordinário, que ninguém vê, que logo se imporá a todos, e não teríamos outra solução se não aceita-lo.

Nesse papel de grã-sacerdote da mutação tecnológica pode-se lembrar Jacquesa Robin, com uma obra, apesar de tudo, interessante, Quand le travail quitte la société postindustriele: "pode-se prever, certeiramente que, de forma incansável, a revolução da informática produzirá sempre mais objetos, bens e serviços, com cada vez menos trabalho humano".

A tese é forte ... mas é falsa, conforme assinalam economistas de diferentes áreas. Com efeito, para supor crescimento econômico sem criação de emprego é preciso que a produtividade do trabalho cresça mais forte do que o PIB. Ora, desde o começo da crise, constata-se uma queda constante dos ganhos de produtividade. Comparando-se o período de crescimento forte dos anos 60 ao de crescimento reduzido, sobre tudo após o início dos anos 80, vê-se no primeiro uma taxa de crescimento do PIB e da produtividade do trabalho próxima de 5% e, no segundo, em torno de 2%. Em resumo, a partir da crise, a produtividade conhece uma desaceleração paralela à do crescimento do PIB, se o desemprego fosse de origem essencialmente tecnológica, teria que ocorrer um crescimento da produtividade maior que o do produto.

O desemprego é, portanto, muito ligado a uma queda de crescimento, mesmo que sua amplitude e permanência possam ser explicados pela junção de outras causas, principalmente pelo fato de que, diante da desaceleração conjuntural, o patronato utiliza a mão-de-obra como primeira "variável de ajuste", ou ainda, como assinala justamente Michel Housson, limita a redução da jornada de trabalho. Diga-se de passagem — pois não é diretamente nosso assunto — que a luta contra o desemprego supõe certamente uma política de crescimento, mas que deve ser travada juntamente com uma regulamentação do mercado de trabalho e uma drástica diminuição do tempo de trabalho.

Uma vez amplamente relativizada a explicação tecnologista para a rarefação do trabalho, podemos voltar às explicações que buscam demonstrar que se estaria desenvolvendo uma dimensão nova, do trabalho ou da vida humana, a qual se oporia ao trabalho tal como o conhecemos até hoje. Essas explicações são muitas vezes usadas como fundamento para a distinção entre emprego e atividade, que acabamos de analisar.

Liberdade por meio do não trabalho?

André Gorz prossegue nesse terreno uma reflexão continuada há muitos anos. Ele distingue o trabalho heterônomo (isto é, trabalho coagido, definido como "o conjunto de atividades que os indivíduos devem cumprir em funções coordenadas do exterior por uma organização pré-estabelecida") e trabalho autônomo, em que os indivíduos exercem livremente sua atividade. O trabalho heterônomo releva a esfera da necessidade e do trabalho autônomo e a esfera da liberdade; e nossa sociedade capitalista restringiria o espaço do segundo em proveito do primeiro. Seria possível reconhecer um linguajar marxiano nesse elogio da passagem da necessidade à liberdade, desde que se esquece que Marx atribui uma dupla natureza ao trabalho salariado em si e que o salto para a liberdade, segundo ele, supunha a emancipação nas próprias relações de trabalho. Ora, Gorz, considerando irredutível a esfera da necessidade (a heteronomia), propõe reduzi-la e encontra na extensão da autonomia extra trabalho o meio da emancipação.

A libertação, portanto, não se daria dentro das relações de trabalho, condenadas a permanecer hoterônomas; a libertação passaria pela extensão dos lugares onde os indivíduos "produzem de forma autônoma, fora do mercado, sós ou livremente associados, bens e serviços materiais e imateriais não necessários, mas atendendo aos desejos, aos gostos e à fantasia de cada um".

Tudo isso é belo e grandioso, tem um perfume libertário e alegre, ressalvada a dúvida de que a extensão do não-trabalho nesta sociedade seja um fator de emancipação (pode-se aconselhar Gorz a dar uma olhada no horário nobre da televisão francesa TF-1, por exemplo) ... Mas isso tem uma conseqüência por outro lado mais temível: ela abandona a esfera do trabalho salariado a sua heteronomia e considera necessariamente as lutas de emancipação nas relações de trabalho como ilusórias. Aliás, Gorz intitulou uma das suas obras Adeus ao proletariado e nela vê a "não-classe dos trabalhadores" como "sujeito social potencial da abolição do trabalho". Essa conclusão de um pensamento que, em certos momentos, é interessante e tem um charme provém do abandono da dupla natureza do trabalho alienado, em troca de uma visão dualista, separando duas esferas que, na realidade, se interpenetram. Como imaginar que a esfera da autonomia poderá se desenvolver e expandir segundo os desejos e gostos dos homens se estes renunciarem ao controle social da esfera da heteronomia? As condições nas quais os indivíduos exercem seu trabalho salariado (salário, tempo de trabalho, condições de trabalho, transportes, stress etc.) só podem limitar o surgimento de desejos e gostos livres. É quase penoso ter que lembrar tais evidências. Isso é ainda mais verdadeiro para outros autores, como Sue, por exemplo, que vê na extensão do lazer o meio de emancipação humana, esquecendo que nem toda hora de trabalho a menos é necessariamente hora de tempo liberado.

Avançando para uma sociedade pós-industrial?

A perspectiva comum a numerosos autores é o abandono da sociedade industrial por uma sociedade baseada em serviços e chamada, segundo a moda, pós-industrial, informacional, servicial ... A tese não é nova. O americano Daniel Bell, nos anos 60, e Allain Touraine, pouco depois, fizeram-se profetas nessa perspectiva, segundo a qual estaríamos passando de um sistema produtivo fundado sobre a transformação da matéria em bens materiais para uma produção de bens imateriais e de serviços, em que as atividades diretamente produtivas seriam suplantadas pelas atividades de circulação e informação. O trabalho ficaria radicalmente modificado: o trabalho físico e instrumentado cederia lugar ao trabalho intelectual; o próprio proletariado cederia lugar aos prestadores de serviços: os conceitos de mercadoria e valor-trabalho perderiam sentido e se dissolveriam no informacional e imaterial.

Há uma quinzena de anos floresce esse discurso: do barqueiro americano Alvin Toffler à inevitável figura mediática de Alain Minc. Seu ponto comum é considerar que a revolução informacional teria uma conseqüência produtiva maior: a diminuição e depois o desaparecimento do trabalho direto, em proveito dos serviços, e uma diminuição geral do tempo de trabalho necessário, em proveito do tempo livre. É verdade que tais análises podem simplesmente camuflar uma justificação do desemprego, definido como ... tempo liberado. Mas elas põem o dedo sobre uma evolução, contestável por todos, que pôde ser retomada numa perspectiva mais social. Alguns desenvolvem a idéia de que necessariamente se desenvolverá um terceiro setor, dito de utilidade social, também chamado "economia solidária", respondendo a necessidades novas, nem sempre solventes, e que seria necessário solvibilizar através de meios públicos e associativos.

Mas que lugar vai ocupar esse terceiro setor na economia? Ele não concorre ao setor rentável, que continuará a funcionar livremente, exigindo o máximo de flexibilidade, necessária a sua eficácia. No melhor dos casos, esse setor servirá de válvula de escape, mas há fortes possibilidades de que preencha outra função: a de ajuda social menos onerosa que o estado de bem-estar; isso se não for a de meio de pressão para a baixa dos salários e das garantias de outros setores. Porque há uma diferença entre as produções industriais e as de serviços: as primeiras fornecem bens de produção, permitindo economia de tempo, que corresponde a tempo liberado (sem pré-julgar o que a sociedade fará com ele, evidentemente); em troca, nos serviços, o tempo consumido é igual ao tempo gasto de outro modo. Os famosos empregos de proximidade não visam a que as tarefas domésticas ocupem globalmente menos tempo, e assim o liberem para atividades mais nobres, pelo contrário, eles ocupam cada vez mais tempo disponível, só que agora sobre a forma de serviços pagos.

Isso desemboca numa sociedade dual, em que uma minoria absorveria as atividades nobres e a maioria não teria outra escolha a não ser colocar-se a serviço da minoria e de seus desejos. Um dos méritos de André Gorz foi denunciar essa sociedade de "serviços", que constitui de fato a sociedade pós-industrial:

As prestações que não criam valor de uso, embora sendo objeto de troca mercantil pública, são trabalhos servis ou trabalhos de servidor. É o caso, por exemplo, do engraxate, que vende um serviço que seus clientes poderiam bem fazer a si mesmos em tempo menor do que ficam sentados no trono, diante de um homem agachado a seus pés. Eles o pagam, não pela utilidade de seu trabalho, mas pelo prazer que têm em fazer-se servir.

A revolução terciária tornou-se uma contra revolução servil, que transforma os assalariados em servidores. Entretanto, pode-se predizer que ela não se generalizará. Primeiro, porque, contrariamente ao que pensam dessa evolução muitos autores (quer os que as incenssam, quer os que a temem), a economia capitalista terá sempre a necessidade de basear sua acumulação na extração de mais-valia no setor produtivo; mas sobretudo porque a função preenchida pela extensão do setor terciário pode ajudar à extração de mais-valia empurrando para baixo o custo do trabalho no setor produtivo.

Fim da centralidade do trabalho?

Atividade no lugar do trabalho, revolução tecnológica rarefazendo o trabalho, desenvolvimento exponencial do tempo livre, sociedade de serviços ... todos esses esquemas em moda encontram sua apoteose na idéia do trabalho como valor inexoravelmente em declínio. O sucesso da pequena obra de Dominique Méda vem daí: ela dá coerência e cobertura "filosófica" a todas essas temáticas. Resumamos rapidamente a tese de Dominique Méda. Para ela, o trabalho não é uma característica antropológica da humanidade, constrangida a transformar a natureza para sobreviver, segundo afirma toda uma série de tradições desde os séculos XVIII e XIX, de Smith a Marx; tradições que apresentam o trabalho salariado como uma forma histórica particular de trabalho, forma necessária e emancipatória para uns, necessária e espoliadora para outros.

"O século XVIII teria simplesmente inventando o trabalho salariado. Eu defendo a tese inversa: é o próprio trabalho que foi inventado no século XVIII". Partindo daí, a autora distingue três épocas:

1. No século XVIII, particularmente em Adam Smith, o trabalho é só um simples fator de produção, que permite manter juntos os indivíduos "libertados" de suas lealdades comunitárias.

2. A partir do início do século XIX, em Hegel e sobretudo Marx, o trabalho é um poder criador e transformador nas mãos do homem, que deve ser livrado da exploração para fornecer sua plena capacidade.

3. É o momento atual, que se tem desdobrado o longo de todo o século XX: o "momento social-democrata", em que o trabalho salariado é aceito porque concebido como meio privilegiado de obter rendimentos decentes, proteção e status jurídico.

O trabalho é sempre considerado como realizador da personalidade, enquanto a expectativa de prazer não é mais ligada às capacidades transformadoras do trabalho, mas exclusivamente aos rendimentos e ao consumo. Esse é o modelo que estaria em crise, não para elaborar uma quarta fase do trabalho, mas sim para questionar a própria centralidade do trabalho. Retomando uma inspiração aristotélica (que também inspirara Hannah Arendt), D. Méda distingue quatro tipos de atividades fundamentais para o homem: as atividades produtivas, as atividades políticas, as atividades culturais e as atividades familiares, de amizade ou amorosas. A vida social seria muito absorvida pelas atividades produtivas e a atual crise do emprego traduziria de fato uma crise não só do trabalho salariado, mas do trabalho enquanto tal, que não forneceria mais base para uma existência social equilibrada. Essa crise pode ser salutar se tomarmos consciência (graças a Dominique Méda?) do que ocorre e prepararmos uma mudança de civilização, permitindo reduzir o lugar do trabalho, em proveito de outros espaços, políticos, culturais e familiares. É antes de tudo uma crise das representações e é a mudança de nossa representação sobre o trabalho e seu lugar que cabe empreender em primeiro lugar.

A sedução dessa obra deve-se certamente a sua brevidade e a seu caráter enlevado, sintetizando de modo brilhante uma idéia "no tom da época". Ela merece um exame atento. De início, poder-se-ia notar algumas aproximações e erros: falar de grandes entidades (e Economia, a Revolução francesa, o século XVIII ...), erigidas em sujeitos que pensam falam e agem não é geralmente sinal de clareza e precisão; a tendência de estudar os movimentos da história sob forma de irrupções súbitas e inexplicadas está muito visível através do uso significativo do advérbio "subitamente"; as contradições também: "o trabalho terminou por tornar-se seu próprio fim"; e que a lógica faz do trabalho "um meio a serviço de outro fim que não ele próprio"; sem esquecer, a afirmação de que Marx viveria, em 1844, em Manchester. Mas isso poderia ser secundário, se a tese de fundo fosse sólida.

O que chama a atenção numa primeira abordagem é o procedimento idealista: as representações é que formam a realidade e é mudando-as que as coisas avançarão. Aliás, é normal afirmar isso quando se pretende também que "nós todos sabemos hoje que o caráter alienante do trabalho" não está ligado ao capitalismo e à exploração. O essencial é pois nos desempregarmos da idéia "humanista" de que o trabalho é central. O pleno emprego de tempo integral para todos está definitivamente perdido e isso "abala o que tínhamos como evidente", chegando até a afirmar "a idéia falsa de que o desemprego seria um mal extremamente grave".

Se o desemprego não é um mal grave é porque nos permite operar "uma conversação do pensamento" e "por em ordem nossas representações". Mudemos nossas representações e o mundo irá melhor. É de se esfregar os olhos, diante de um idealismo tão ingênuo, sem falar no uso do "nós" para fazer passar sua própria concepção (a multiplicidade dos "sabemos agora que" é impressionante).

Quanto ao fundo, a demonstração é conduzida com certa desenvoltura. Assim, para demonstrar que o trabalho é "inventado" no século XVIII, é-nos servida uma vista rápida da história, com generalizações particularmente audaciosas sobre três períodos ("três exemplos servirão para ilustrar nossos propósitos"!): as "sociedades primitivas", o "paradigma (!) grego", o "Império Romano". Afirma-se a tese da ausência de centralidade do trabalho em toda uma época, ilustrando-a em seguida com alguns exemplos, quando sobre o assunto, entretanto, não faltam debates e trabalhos que mereceriam pelo menos ser citados. Demonstração não se vê. Chega-se mesmo a afirmar que certas sociedades não têm fundamentos econômicos, o que releva do milagre, como o da imaculada concepção. Quanto aos três atos do trabalho desde o século XVIII, que resumimos acima, trata-se de mais um percurso de autores rapidamente caracterizados num quadro impressionista, para permitir a afirmação, no fim da viagem, de que o trabalho vai declinar.

O objetivo do arrazoado fica claro quando a autora afirma que manter a exigência de uma vida social centrada no trabalho é uma atitude conservadora: "trata-se de nada menos que defender a ordem existente". A visão de trabalho exposta é particularmente tênue, pois afirma-se que a "sociedade de trabalhadores" na qual estamos priva-nos "daquilo que faz a essência do homem: o pensamento; isso acompanhado de uma visão idílica da Grécia antiga, onde os homens teriam vivido livremente para sua cidade, esquecendo que essa liberdade civil estava fundada sobre a servidão de uma parte da humanidade e negligenciando que a participação política promovida pelos antigos não era concebida como participação de indivíduos autônomos e conscientes de seus direitos, mas sim fusionados com a cidade de modo relativamente identitário. A esse respeito, a leitura de Aristóteles é esclarecedora. As referências filosóficas da autora são variadas e mereceriam clarificações, particularmente quando são utilizados Horkheimer e Hannah Arendt para justificar uma autonomia da esfera política; a referência a Heidegger e seu "esquecimento do ser", engendrado por nossa sociedade do trabalho, dá finalmente uma coloração inquietante à conversão proposta.

As páginas em que D. Méda descarta com um aceno de mão o fato de que a principal exigência dos desempregados e beneficiários da Renda Mínima de inserção (na França) seja a obtenção de um verdadeiro emprego são ao mesmo tempo penosas e reveladoras: buscam convencer a sociedade de que se há uma evolução exorável para o declínio do trabalho. Trata-se de uma evolução na qual é preciso assumir uma posição.

Tudo isso tem um sentido político: tornar aceitável uma situação que, no entanto, exige remédios radicais.

Sobre a natureza do trabalho em nossa sociedade

O traço comum das diversas análises que citamos até agora está em que elas não concebem a dupla natureza, intrínseca e contraditória, do trabalho em nossa sociedade. Ao mesmo tempo criador e alienado, o trabalho só é compreensível através da relação social que o põe em ação. Deste modo, pode-se compreender como se desenvolvem, ao mesmo tempo, ganhos de produtividade e exclusão maciça do trabalho. Vivemos numa época em que se tem simultaneamente o sentimento de que, tecnicamente, coisas portentosas seriam enfim possíveis: trabalhar menos, trabalharem todos e satisfazer as principais necessidades humanas; e pode-se medir o peso enorme dos obstáculos sociais à realização disso. Correndo o risco de incomodar alguns, digamos que a contradição entre as forças produtivas e as relações sociais de produção parece hoje muito mais verdadeira do que antigamente. Michel Husson, que chega a mesma conclusão, tem razão em citar Marx que escreveu páginas luminosas a esse respeito. Vamos reproduzi-las para responder às teses unívocas em moda:

O capital é, apesar de si mesmo, o instrumento que cria o tempo social disponível, que reduz sem cessar o tempo de trabalho a um mínimo para toda a sociedade e libera assim para todos tempo para o desenvolvimento próprio individual. ... Se ele conseguir bem demais criar tempo de trabalho disponível, sofrerá de superprodução e o trabalho necessário será interrompido, porque o capital não poderá mais valorizar qualquer sobre-trabalho. Quanto mais essa contradição se desenvolve, mais se revela que o crescimento das forças produtivas não pode ser mais freado ainda pela apropriação do trabalho alheio. ... Quando o trabalho, em sua forma imediata, deixa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho cessará e deverá deixar de ser a medida do trabalho, assim como o valor de troca deverá de ser a medida do valor de uso. ... A partir daí, a produção fundada sobre o valor de troca desmoronará e o processo imediato de produção material se despirá de sua forma e de suas contradições miseráveis. Não se dando mais o proveito do sobre-trabalho, a redução do tempo de trabalho necessário permitirá a livre expansão do indivíduo.

E, no fim de O capital:

A única liberdade possível está em que o homem social, os produtores associados, regulem racionalmente suas relações com a natureza, que eles a controlem em comum, em lugar de ser dominados em seu poder cego, e que realizem esse intercâmbio despendendo o mínimo de esforço e nas condições mais dignas, mais conformes à natureza humana. Mas essa atividade constituirá sempre o reino da necessidade. É além deste que começa o desenvolvimento das forças humanas em si, o verdadeiro reino da liberdade, que não pode se expandir a não ser baseando-se sobre o outro reino, sobre a outra base: a da necessidade. A condição essencial dessa expansão é a redução da jornada de trabalho.

Sem maiores comentários, basta dizer que estes textos nos fornecem o quadro em que cabe abordar a "crise do trabalho". Uma vez que o trabalho se exerce numa relação social que opõe e ao mesmo tempo reúne empregadores e assalariados, o avanço da humanidade pela utilização de menor tempo de trabalho é feito pela manutenção da exploração de uns e a exclusão de outros e, por isso mesmo, volta-se contra esse avanço. A reivindicação de menor tempo de trabalho não tem como objetivo a liberação de tempo para a verdadeira vida, que seria o não-trabalho, porque o tempo livre só será realizador quando o próprio tempo de trabalho for libertado. É por isso que a reivindicação de menor tempo de trabalho só tem sentido inscrita numa emancipação social. Menor tempo de trabalho na lógica capitalista leva a exclusão pura e simples; menor tempo de trabalho com manutenção do salário e contratação dos desempregados torna-se realidade num movimento emancipador, tanto no trabalho como em outras esferas da vida social.

A partir daí outra análise da exclusão social contemporânea

Uma das vantagens deste estudo crítico dos discursos em moda sobre o trabalho é permitir uma renovação das análises do que já é chamado de ressurgimento da exclusão social em grande escala em nossas sociedades. Os discursos há muito tempo dominantes sobre a pobreza de massa (de fato, desde os livros pioneiros de Lenoir e Stoléru, em 1974), têm, grosso modo, a estrutura seguinte: a maioria da sociedade está incluída ou integrada num sistema estável, com domínio do assalariamento e o avanço da crise e do desemprego desenvolveu uma massa de excluídos do sistema, os "entregues a si mesmos" que "abandonamos à beira da estrada" — o que significa que os outros continuariam a avançar. O objetivo de tal representação é, portanto, a reinserção desses excluídos do sistema, por meio de uma política social específica para alguns e da caridade coletiva para outros. Desse modo, tais estudos economizam a análise dos processos de crise em andamento no coração do sistema e, no mínimo, não fazem uma ligação estreita entre a crise "dentro" e o crescimento do número de excluídos "fora".

Nestes últimos anos, uma obra trouxe uma contribuição maior à renovação da análise da exclusão. É a de Robert Castel, Les métamorphoses de la question sociale. Após um afresco detalhado do assalariamento desde o século XI, ele aborda a nova questão social. O assalariamento atravessou, até agora, três eras: a da tutela, quando o assalariamento era indigno; depois, a partir do século XVIII, o do contrato, quando o salário é o preço de uma negociação desigual e precária, até a emergência, ao longo do século XX, da era do estatuto, quando o assalariamento não está mais somente submetido ao contrato individual, mas sim acede, através de sua condição, a direitos de assalariado e de cidadão, por sua participação numa coletividade (por meio de convenções coletivas, organismos públicos e direitos sindicais, associados ou mútuos, assim como de usuário de serviços públicos). Páginas notáveis descrevem, por exemplo, o papel insubstituível desempenhado pela seguridade social obrigatória na emergência desse estatuto. A nova questão social é, pois, a crise do estatuto salarial. Detalhemos um pouco a análise que ocupa o último capítulo dessa obra.

A expressão "sociedade salarial" é utilizada por Robert Castel e Michel Aglietta principalmente para designar o período capitalista em que não somente se generaliza o assalariamento, mas também este conquista direitos e garantias, dando forma a um verdadeiro estatuto na sociedade. A questão social não deve, portanto, concentrar-se na exclusão; não porque esta não exista, mais sim porque focalizar o debate social unicamente na exclusão, apresentada como o encerramento de um sistema normal e estável, é camuflar, por um lado, a fonte do processo de exclusão, que toma raízes no corpo central da sociedade e, por outro, a profunda desestabilização do assalariamento e da sociedade salarial. No momento em que os atributos ligados ao trabalho e ao estatuto de assalariado pareciam impor-se nas definições das identidades, fazendo recuar os outros suportes de identidade (por exemplo, família e comunidades reduzidas), brutalmente, o trabalho é recolocado em questão. Mais que o desemprego, o não-trabalho tem efeitos sociais globais tão poderosos, mais inversos quanto o próprio trabalho. O fenômeno mais significativo desse processo é o aparecimento de "trabalhadores sem trabalho" (para retomar a expressão de H. Arendt em Condition del’homme moderne), de homens excedentes, de "inúteis no mundo".

a) Uma ruptura de trajetória

A "sociedade salarial" foi parcialmente mitificada, devido a sua correlação com o crescimento forte, com a extensão do estado de bem-estar e com a crença no progresso contínuo. Na realidade, eram escondidas certas características desse desenvolvimento passado, que lhe limitavam os efeitos positivos.

1. Em primeiro lugar, seu caráter inacabado. Por exemplo, no Direito do Trabalho há um progresso: a limitação da arbitrariedade patronal (na França, leis sobre as dimensões, de 1973 e 1975, a generalização do contrato-padrão); mas essas conquistas só foram justificadas pelo crescimento econômico e por uma inversão da concepção de sociedade; não havia reciprocidade entre empregador e empregado e a empresa estava (e está, mas do que antes) longe de ser "cidadã". Isso é diferente das conquistas de 1945-6, que não eram justificadas pelo crescimento; e quando este pára, o questionamento das conquistas sociais se encontra justificado.

2. Os efeitos perversos das proteções: "as proteções têm um custo; elas são pagas pela repressão dos desejos e pela aceitação do entorpecimento da vida, em que tudo está pré-estabelicido". Ver Donzelot e as interpretações de 1968 ou as teses de Hirschman sobre a frustração, críticas das gestões tecnocráticas das empresas estatais.

3. Homogeneização e individualização; contradição fundamental da "sociedade salarial".

Por um lado, as intervenções do estado de bem-estar têm poderosos efeitos homogeneizadores e, por outro, o funcionamento desse estado (mais tecnocrático e burocrático do que democrático) produz efeitos individualistas temíveis. Os beneficiários do estado do bem-estar são, ao mesmo tempo, unificados sobre um regime universal, garantindo direitos relativamente igualitários, e cortados de toda ligação concreta a uma entidade coletiva. Essa idéia, muito tocquevilleana, foi retomada, por exemplo, por Marcel Gauchet:

O estado de bem-estar clássico, ao mesmo tempo que se origina do compromisso entre classes, produz formidáveis efeitos individualistas. Quando se provê os indivíduos com esse pára-quedas extraordinário que é a segurança de assistência, fica permitido, em todas as situações da existência, livrar-se de todas as comunidades, de todos os laços possíveis, a começar pelas solidariedades elementares da vizinhança: se há seguridade social, não preciso que meu vizinho se incomode para me ajudar. O estado de bem-estar é um poderoso fator de individualismo".

O estado substituiu com felicidade as proteções tutelares desaparecidas, minadas pela urbanização industrial. Porém, ao fazer isso, aumentou ainda mais a distância entre o indivíduo e os laços que formam a sociabilidade primária; o indivíduo encontra-se só face ao Estado, que é a sua única proteção, seu único suporte social. Ele está unido a uma coletividade, é verdade, porém abstrata. Só pode resultar disso o desenvolvimento da contradição entre o aumento do individualismo da "sociedade salarial" e o fato de que essa sociedade repousa essencialmente sobre uma socialização crescente dos rendimentos e dos condicionamentos administrativos coletivos.

No que diz respeito à proteção social, essa contradição é acentuada pelo desenvolvimento do desemprego e do desequilíbrio demográfico: passa-se de um sistema de seguridade entre ativos a um sistema de solidariedade de ativos, cada vez menos numerosos, para com inativos cada vez mais numerosos, dos quais um número crescente nunca trabalhou e jamais trabalhará; o que constitui um fator de distanciamento ainda mais grave entre trabalho e rendimento. O equilíbrio entre o "sistema bismarquiano" (seguridade dominante) e o "sistema beveridgeano", (solidariedade dominante), construído na França, perde-se, uma vez que seus dois elementos entram em contradição, a partir do momento em que a população ativa se torna minoritária. Esse fenômeno é naturalmente acentuado pelo enfraquecimento do estado-nação e pela mundialização da economia.

Estaríamos assistindo ao "esgotamento de um modelo" (J. Habermas), aquele em que a integração social dos indivíduos estava organizada por um jogo de solidariedade e de trocas em torno da centralidade do trabalho, garantido pelo estado?

b) Os excedentes

Mais que o desemprego, a crise contemporânea provocou, sobretudo, uma terrível precarização do emprego e do trabalho, que parece prosseguir inexoravelmente, embora não de modo linear. Insistir sobre a precariedade que se instala no centro do sistema estatuário de assalariamento significa poder analisar o desemprego maciço, de longa duração, e sua conseqüência, a exclusão, não como ruptura nas margens do sistema, mas sim como processo que tem sua fonte na transformação do sistema estatutário de assalariamento. A palavra-chave dessa transformação tem sido, certamente, "flexibilidade". A prova de que esse processo não é marginal está no fato de que não são mais atingidas apenas as camadas periféricas do mercado de trabalho: jovens, mulheres sem qualificação, não-qualificados em geral, imigrantes. Agora emerge, por exemplo, um problema novo: a possível inutilizabilidade da mão-de-obra qualificada.

Em conseqüência, num contexto de competitividade acentuada, a empresa, absorvida por outros imperativos, desempenha cada vez menos sua função integradora. Por exemplo, a segmentação do mercado de trabalho levaria a pensar que somente o "mercado secundário" sofreria efeitos desestabilizadores; ora, esta desempenha, em período de certeza, um papel de amortecedor, protegendo o "mercado primário" (conforme a teoria de Piore e Doeringer). Em período de incerteza, de crise prolongada e redução de postos de trabalho, os dois mercados entram em contradição e "os estáveis são desestabilizados".

Pode-se, portanto, entrever os contornos de uma nova fase, perigosa de volta à vulnerabilidade de massa. Não é mais a vagabundagem medieval, o assalariamento indigno dos séculos XVII/XVIII ou o pauperismo do século XIX. O excluído, do qual tanto nos falam, seria a nova imagem da vulnerabilidade de massa: os excedentes modernos, os novo inúteis no mundo, formando uma massa em estado de flutuação, uma espécie de no man’s land social, não integrada e não integrável, entretanto, sem ser uma massa estrangeira que se pode deixar acampada às portas da cidade (retomando uma expressão de Auguste Comte, referindo-se ao proletariado do século passado), ela se alimenta da crise no centro da "sociedade salarial".

Esse fenômeno cristaliza-se em três pontos:

1. desestabilização dos estáveis;

2. instalação de um número crescente na precariedade, nutrindo estratégias e culturas do aleatório ( um neo-pauperismo?);

3. carência de posições sociais definidas (daí um sentimento de inutilidade).

Para essas populações crescentes, portanto, para todos por contaminação, a identidade pelo trabalho parece perde-se. Existem certamente vários níveis de formação da identidade coletiva: profissão, comunidade de habitação, modo de vida, família, porém, no mudo salarial, principalmente industrial, o trabalho tem desempenhado um papel de indutor principal (ver, por exemplo, o interesse e o último relatório do centro de estatísticas, dissolvido pelo Ministério Balladur, sobre a correlação entre perda de emprego e ruptura conjugal).

c) A inserção social ou mito de Sísifo

Paradoxalmente, não se pode afirmar com seriedade que a situação atual surgiu de um recuo da intervenção social do Estado; esta, pelo contrário, aumentou quantitativamente. É sua orientação que se modificou: passagem de políticas conduzidas em nome da integração a políticas conduzidas em nome da inserção social.

A inserção sistematizada a discriminação positiva que já existia: diferencia seguridade social de assistência social, as quais, originalmente concebidas como complementares, vão se opondo cada vez mais. Privilegiar somente a assistência social é a palavra-de-ordem, dominante no discurso liberal, atualmente; consiste em analisar a população assistida em termos de "incapacidade", "inviabilidade como mão-de-obra", "inadaptação social"; inventa-se, em seguida, a inserção social para enfrentar o forte aumento desses "alvos" da assistência. Ora, essas políticas, cada vez mais disseminadas, parecem fracassar no essencial, provocando uma espécie de assentamento na vida incerta e provisória.

Procura-se incessantemente melhorar os assistidos, principalmente aumentando sua coerência social de modo transversal e global: desenvolvimento social dos bairros, comitês de prevenção da delinqüência, zonas de educação prioritária, política urbana ... ou seja, políticas múltiplas mobilizando o máximo de participantes (com a notável ausência das empresas, como sublinha do relatório de M. Aubry e M. Praderie, em 1991, para a França), que parecem se mover no sentido de uma questão regional dos problemas sociais. Tais políticas colmataram brechas e impediram numerosas explosões, o que já é muito bom, mas elas não inverteram a tendência para a precariedade social.

A mesma apreciação pode ser feita sobre a Renda Mínima de Inserção (RMI francesa): ela comporta duas inovações principais:

1. É oficializada, pela primeira vez, depois de muito tempo, a diferença entre inaptidão para o trabalho e impossibilidade de trabalhar: "toda pessoa que, devido a sua idade, seu estado físico ou mental, à economia e demanda de emprego, se encontrar impossibilitada de trabalhar terá o direito de obter da coletividade os meios de subsistência convenientes".

2. Esse direito não significa direito a assistência, mas sim a inserção, buscando-se assim quebrar a imagem do "pobre mal" (recentemente revivida com a "cultura RMI" de E. Raoulte) e evitar qualquer estigma social. A RMI deve ajudar ao retorno de uma situação normal.

É esforçoso constatar que, sete anos após sua entrada em vigor, a RMI consegue preencher sua função, embora cubra cerca de um milhão de pessoas. Quinze por cento reencontram empregos de ajuda; os 70% restantes dividem-se entre demitidos sem salário-desemprego e inativos estáveis.

A inserção não é mais uma etapa: é um estado de coisas. É "situação transitória durável", no dizer do relatório oficial de avaliação de 1992, que não pode constituir uma existência estabilizada, realizar uma "socialização" verdadeira, porque as instituições são instáveis e provisórias. A inserção é uma socialização secundária tanto mais incompleta quanto o é a "a social sociabilidade em configurações racionais mais ou menos evanescentes, que não se inscrevem ou se inscrevem de modo intermitente problemático em instituições reconhecidas, deixando os sujeitos que vivem em situação de apreensão".

Se as políticas de inserção fracassaram em seu objetivo explícito é talvez porque tenham outra função implícita: "acalmar o trouxa", para falar como Erving Goffman (deixar, no jogo social, uma porta de saída para os vencidos, para que estes possam guardar uma "apresentação de si", evitando a desqualificação social, mesmo sabendo que ninguém é bobo).

A crise do futuro

"O corpo social vai perdendo suavemente seu amanhã." (PAUL VALÉRY)

R. Castel visualiza quatro cenários:

1. Continuar a degradação salarial, sob o efeito do triunfo das regras econômicas e do mercado, desestruturando os diversos níveis da vida social.

2. Manter a situação por meio da multiplicação de esforços coletivos. Isso, além de supor uma não degradação da situação macroeconômica global, implicaria uma forte reação das pessoas excedentes, seja pela violência, uma vez que elas não constituem um grupo organizado, como o movimento operário da época industrial, seja pela contaminação do corpo social em que nasce essa desvinculação. Veja-se, por exemplo, a reação da juventude ao contrato da inserção profissional (na França). O movimento social de dezembro 1995 também explicitou a ligação entre as recusas dos incluídos e dos excluídos, tanto mais significativas pelo fato de terem sidos impulsionadas pelos assalariados de estatutos menos precário. Também significativo, quanto a esse laço novo entre inseders e outsiders, o conflito dos metroviários de Marselha.

3. Tentar compensações e escapatórias centradas sobre o desenvolvimento da "atividade" em lugar do "trabalho", aceitando a perda de centralidade do trabalho e do assalariamento. Trata-se de aproveitar, quer reservas de empregos junto às pessoas (com riscos de neodomesticidade), quer novos empregos e atividades gerados pela revolução tecnológicas em curso (efeitos compensátorios globalmente positivos ou negativos?), supondo-se uma evolução social em que a identidade e a dignidade dos entes sociais se relacionará cada vez menos com o trabalho. Essa perspectiva só se mantém como conjectura bastante vaga: dois termos dos "RMIstas" franceses pedem, antes de tudo, um emprego; e a maioria esmagadora dos jovens recusou estágios que não desemboquem num "verdadeiro trabalho"! Todo esse discurso de atividade pode preparar individualmente uma sociedade dual. Deste ponto de vista, o salário-base (SMIC na França) não é somente um salário garantindo o mínimo decente, mas também, sociologicamente, "uma barreira", defendendo "um nível", para falar como Edmond Goblot. A partir do SMIC, abre-se, certamente, uma gama extremamente diversificada de situações em termos de rendimentos, de consideração e interesses, mas tais situações são essencialmente comparáveis, sob o regime do assalariamento. Por que não fazer dele uma referência mínima intransgredível, em termos de remuneração e estatuto, para todas as situações de emprego novas que nos oferece e oferecerá cada vez mais a sociedade pós-industrial?

4. Administrar uma redistribuição dos recursos raros que provêm do trabalho socialmente útil, porque até hoje não apareceu alternativa confiável e socialmente aceitável e suportável em substituição à sociedade salarial.

O trabalho permanecendo — certamente por longo tempo — o meio de integração social dominante, no sentido de Durkheim, isto é, permitindo uma solidariedade na interdependência; a opção mais rigorosa seria que todos os "societários" conservassem o laço estreito com o trabalho socialmente útil e com as prerrogativas a ele associadas: porque o trabalho permanece sendo o fundamento principal da cidadania, em sua dimensão econômica e social, indissociável de seus fundamentos políticos. O trabalho salariado estatutário arrancou o indivíduo às sujeições e as tutelas, assegurando a conjunção das esferas privadas e pública um sistema de interdependência que formou as relações sociais em que vivemos e as quais a maioria dos cidadãos parece apegar-se, mesmo se elas não bastam para responder a suas aspirações mais profundas.

A "sociedade salarial" é:

não consenso, mais sim regulação dos conflitos;

não igualdade das condições, mas sim comparabilidade das diferenças;

não justiça social, mas sim controle e redução da arbitrariedade dos ricos e poderosos;

não governo de todos, mas sim representação de todos os interesses e debate entre eles no cenário público.

Em todo o caso, os que querem atuar pela igualdade, justiça social e governo de todos sabem que as condições de sua ação coletiva ficarão bem comprometidas se essa herança se perder. Como conservá-la sem combater pela redução do tempo de trabalho numa outra organização do trabalho a serviço do trabalhador?

Castel conclui sua obra assinalando que a ascensão do assalariamento desde a indignidade até a dignidade se combina com a ascensão do individualismo como fenômeno antropológico global. Ele opõe ao individualismo negativo, que é obtido por subtração dos laços coletivos, provocada pela atual ruína do trabalho e que, portanto, se declina em termos de perda, a defesa de um individualismo positivo, fundamentado num contrato de obrigações mútuas entre indivíduos conscientes de sua interdependência. As políticas sociais podem optar entre a "servidão paroquial" (K.Polanyi) moderna das estratégias de inserção ou a reformulação da articulação entre o indivíduo e a coletividade, através da elaboração (que não se fará sem grandes conflitos) de um novo estatuto social integrador. O que exige um retorno da vontade política de uma ação do Estado indispensável como redutor das incertezas nestes tempos de flutuação, um Estado estrategista acompanhando as transformações e as tensões, mas também um Estado protetor, pois não há coesão social sem proteção social.

Alguns criticaram R. Castel por essa reabilitação do Estado, opondo-lhe a primazia do movimento social e da auto-organização. A crítica nos parece inútil, uma vez que os dois processos estão intimamente ligados. Que o Estado não bata em retirada em proveito do mercado e do apadrinhamento caridoso e mantenha sua missão protetora, adaptando-a; as energias solidárias dos cidadãos não deixarão de se por em movimento.

Ao fim desta pequena resenha da literatura em voga das ciências sociais sobre a evolução do trabalho — e, entre as obras, fomos levados às vezes a fazer escolhas arbitrárias — pareceu-nos finalmente impossível analisar o trabalho separadamente do capital e de sua evolução.

Rene Revol é um renomado escritor francês, especialista no estudo sobre o trabalho na contemporaneidade.

Traduzido do francês por Vito Letízia.

Revista Olho da História

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