quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Os camponeses no início da Revolução



Os camponeses no início da Revolução
Historiador
Hernâni Resende


“Não é possível fazermos uma ideia justa da grande revolução que acaba de abalar a França, se a encararmos de maneira isolada, separadamente da história dos povos que nos rodeiam e dos séculos que nos precederam.Para ajuizarmos da sua natureza e percebermos as suas verdadeiras causas, cumpre compreender o lugar que ocupamos num sistema mais vasto:só entenderemos claramente o ponto a que chegámos e as causas gerais que aqui nos conduziram, levando em conta o movimento geral que impeliu os governos europeus, desde a criação da feudalidade até os nossos dias, a mudarem sucessivamente de forma”.

“[…] entre [a] multidão de causas cuja influência combinada produz os eventos políticos, algumas há que estão tão ligadas à natureza das coisas, cuja acção regular e constante domina tão superiormente a influência exercida pelas causas acidentais que, num determinado período, elas conseguem quase necessariamente produzir os seus efeitos. São elas que quase sempre mudam as faces das nações; […são] elas [que] preparam as grandes épocas da história ao passo que as causas secundárias, às quais quase sempre se atribui o advento dessas épocas, se limitam tão-só a determinar-lhes os contornos”.

“Não é a vontade dos homens que faz as leis, pois que a vontade nada pode ou quase nada, no respeitante à forma dos governos. É a natureza das coisas - o período [social] a que o povo chegou, a terra que ele habita, as suas riquezas, as suas necessidades, os seus hábitos, mentalidades - que determina a forma do poder.

“Desde que as artes [as técnicas de produção, a indústria] e o comércio conseguem penetrar no povo e criam um novo meio de riqueza ao serviço da classe laboriosa, começa a preparar-se uma revolução nas leis políticas: Uma nova distribuição da riqueza prepara uma nova distribuição do poder. Da mesma maneira que a posse das terras elevou a aristocracia, assim a propriedade industrial eleva o poder do povo” [isto é, da “classe laboriosa”, da burguesia].

Com as artes que nos enriquecem e aumentam o número dos homens, ao multiplicarem os meios de subsistência, nascem esses pensamentos sublimes que fazem incidir a luz do raciocínio sobre todos os objectos da crendice […]. O progresso da indústria e da riqueza mobiliária, que libertou o povo e rebaixou os grandes [Nobreza e Clero], que constituiu os Estados com formas mais regulares, tinha igualmente de quebrar os laços da superstição e de minar o poder que os ministros do culto católico [suportes ideológicos da monarquia absoluta e da feudalidade] haviam conquistado para si.

Barnave, Introduction à la Révolution française [1791-92].

Cumpre recordar sucintamente alguns aspectos da transição da feudalidade para o capitalismo na agricultura francesa de setecentos (tratados no penúltimo número desta revista), antes de abordarmos o tema que nos ocupará hoje: Os Camponeses no início da Revolução. Seremos obrigados a recorrer uma vez mais a esquemas e reduções que não se coadunam com a complexidade dos processos históricos concretos que - só de 1924 até 1996 - deram origem a milhares de páginas de investigação sobre temas tão variados como os Camponeses do Norte durante a Revolução Francesa (de G. Lefebvre) ou os Camponeses em Revolução (de A. Adô). De facto, no contexto histórico do séc. XVIII, a questão agrária ocupa um lugar de primeiro plano.

Regressemos então à transição da feudalidade para o capitalismo na agricultura francesa do séc. XVIII. Como vimos, essa transição fez-se segundo vias diferentes. Duas levaram à expropriação das terras hereditárias e dos baldios dos camponeses, por iniciativa dos senhores: mas enquanto uma delas conduziu nas zonas mais férteis, à constituição de grandes propriedades aristocráticas arrendadas a lavradores com capitais, a outra levou à formação do sistema de parceria em vigor nas propriedades aristocratas situadas em regiões menos desenvolvidas economicamente. Uma terceira via, a que Marx chamou no Capital a via “camponesa”, proporcionou a formação de uma agricultura de cariz pequeno-burguês, praticada por camponeses médios e remediados nas terras hereditárias que eles haviam logrado conservar. No entanto, apesar dos progressos feitos pela difusão do capitalismo, a estrutura jurídica, social e económica da feudalidade permanecia intacta, formando com os elementos do novo regime uma economia compósita, de transição, que a partir de um certo estádio de desenvolvimento impediu o pleno desabrochar do capitalismo agrário.

No interior da intrincada situação criada, as relações entre as classes e os grupos sociais eram de extrema complexidade e conflituosidade: os pequenos e médios camponeses (lavradores) esforçavam-se por conservar as terras hereditárias e os baldios, enquanto os meeiros e jornaleiros aspiravam regressar à condição de pequenos proprietários, como mostrou o desenrolar da Revolução. Entretanto todos eles, unanimemente, desejavam libertar as suas explorações dos direitos feudais que as oneravam. Os ideais igualitários (de inspiração pequeno-burguesa) traduziam as aspirações desta parte maioritária do campesinato. Pelo contrário, a aristocracia terratenente, tanto nas regiões de meeiros como nas de rendeiros capitalistas, bem como a burguesia proprietária e os próprios rendeiros com capitais, não estavam dispostos a renunciar à concentração de terras conseguida graças à expropriação. A maioria da aristocracia e do alto clero não se encontrava também disposta a renunciar aos direitos feudais, de que tiravam réditos suplementares, e que, por vezes, eram mesmo a sua principal fonte de receita.

Se quiséssemos utilizar aqui, para rematar esta reduzida exposição, a perspicaz linguagem revolucionária de Barnave em 1791, diríamos que este processo de transição para o capitalismo agrário era parte integrante, orgânica, da “natureza das coisas” cujas causas “regulares e constantes” prepararam “a necessidade” histórica de pôr cobro à feudalidade e de fazer “uma nova distribuição do poder” que favorecesse “a classe laboriosa” em detrimento dos “grandes”. O ponto estava, todavia, em saber quem eram os representantes, na agricultura, dessa “classe laboriosa” que deveria substituir os “grandes”. Para a burguesia rural abastada, em aliança com a aristocracia liberal proprietária de explorações capitalistas, essa “classe” já estava, naturalmente, encontrada de antemão… Só ela conseguiria conduzir a nação pela senda do progresso técnico, económico e social (segundo a tese fisiocrática evocada no último artigo). Para a pequena burguesia rural, bem como para os jornaleiros, “a classe laboriosa” era formada por eles próprios. Assim, nas vésperas da Revolução, duas interrogações estavam na ordem do dia: como extinguir a feudalidade? Em proveito de quem se iria processar o ulterior desenvolvimento do capitalismo? As respostas não tardariam.

***

A crise que despoletou a Revolução Francesa foi explicada pela primeira vez com rigor científico em 1944, por E. Labrousse que para isso recorreu a um “conjunturalismo estrutural” inspirado no pensamento de Marx. Para o advento da Revolução teriam, assim, concorrido: um progresso económico de longa duração que atravessou o séc. XVIII e se ficou a dever à formação do capitalismo no interior da agricultura “feudal” (processo intuído por Barnave com perspicácia, como vimos). “Um tempo médio caracterizado pela depressão de 1774-1778” (correspondente ao ministério fisiocrático de Turgot e a um poderoso levantamento camponês - a “Guerra das farinhas” - que por momentos deu a ilusão a Mably de poder vir a ser o começo da revolução que ele sabia inevitável, como escreveu em 1778 numa das suas obras inéditas). “Um tempo curto” constituído pela “crise provocada pela carestia de 1789”, crise que pôs em evidência as contradições de uma sociedade incapaz de continuar a progredir dentro dos limites de uma economia de transição, a um tempo feudal e capitalista (P. Vilar, A. Soboul). De salientar ainda que as restantes componentes conjunturais da crise que abalou o “Antigo Regime” em 1788-89 - as “causas secundárias” de acordo com Barnave - têm igualmente, as suas raízes nos desequilíbrios da estrutura social e económica compósita da sociedade francesa. Assim, as dificuldades financeiras decorrentes da ajuda prestada pela monarquia francesa aos insurgentes das colónias inglesas da América do Norte (1776-1782) eram insanáveis se se mantivesse a isenção de impostos da Nobreza e do Clero. A crise industrial ligada ao tratado de 1786 com a Inglaterra, devia-se em boa medida aos atrasos técnicos de certos sectores têxteis afectados pelas dificuldades existentes na formação de um verdadeiro mercado nacional livre e unificado. Finalmente a crise política de 1788 mostrou que as ordens privilegiadas bem como a monarquia não podiam continuar a governar o país de acordo com os valores “feudais” de que eram depositárias… A reunião dos Estados Gerais (Cortes), em 1789, após um interregno de 175 anos, era a um tempo a confissão do fracasso do Antigo Regime e o despontar da esperança nas classes e grupos sociais que constituíam o Terceiro Estado (o Povo).

No entanto, apesar dos camponeses já se agitarem em finais de 1788, afectados pela crise económica que se agravou subitamente, o facto é que nos primeiros meses da Revolução (isto é, de Maio a 14 de Julho de 1789), a questão agrária não foi considerada prioritária pelos representantes revolucionários do Terceiro Estado nos Estados Gerais. O intrincado processo jurídico que se iniciou a 6 de Maio, logo após a primeira sessão dos Estados Gerais (transformados revolucionariamente em Assembleia Constituinte a 20 de Junho), retirou alguma actualidade às contraposições atrás evocadas. Os deputados do Terceiro Estado tiveram, primeiro que tudo, de enfrentar a oposição da maioria da Nobreza e do alto Clero (apoiada na força militar de Luís XVI) a qualquer medida que pusesse em causa, no plano jurídico, os aspectos políticos fundamentais do Antigo Regime. Todavia, os deputados do Terceiro Estado e depois da Assembleia, representantes na sua maioria dos interesses da grande burguesia (como Mirabeau e Lameth) ou da aristocracia liberal (como La Fayette), estavam bem preparados, enquanto adeptos da fisiocracia e da livre concorrência, para enfrentar a problemática agrária. Por seu lado, o pessoal revolucionário que agia fora da Assembleia Constituinte tinha acesso a teorias de outro tipo, tais como o igualitarismo de um Mably (desenvolvido em 1768 em polémica contra a fisiocracia), a democracia política e social de um Rousseau, as utopias comunitárias de um Morelly… Grande parte da literatura revolucionária ulterior a 1788 emanava precisamente desse pessoal político exterior à Assembleia. As soluções sociais, económicas, políticas então encontradas surpreendem ainda hoje pela diversidade, audácia e realismo. Diga-se que é também a partir desta época que os contornos “metafísicos” da filosofia das Luzes começam aqui e ali a esbater-se, como no caso da dinâmica concepção historiográfica de Barnave, espontaneamente materialista, ou mais tarde, no caso da filosofia zoológica transformista de um Lamarck. Mas voltemos a 1789.

Ao entrarem para a Revolução, os camponeses também não se encontravam desprovidos de pontos de referência (de “guias”) para a acção: os “cadernos de queixas”, redigidos nas aldeias dois meses antes da reunião dos Estados Gerais, são a esse respeito formais: o repúdio dos direitos “feudais” (inerentes ao “domínio eminente” e à pessoa do senhor) é unânime entre os camponeses. É com muita frequência que se encontram reivindicações exigindo a conversão em rendas fixas, pagas em dinheiro, de todos os direitos feudais até aí pagos em produtos (como o “champart”, o dízimo enfeudado); também se encontra a mesma exigência em relação à prestação de corveias que se pretendem transformar num tributo fixo, em dinheiro. As queixas contra as exacções dos senhores que exigem indevidamente o pagamento de direitos há muito esquecidos ou caídos em desuso (fenómeno, conhecido por “reacção senhorial”), não têm conta. Quanto aos direitos “pessoais”, tais como o de caça, exige-se a sua abolição, sobretudo nas regiões de grande cultura perto de Versalhes; aí os animais de caça (grossa e pequena) são apontados, com razão, como causa adicional da miséria provocada pelas más colheitas e pela especulação dos senhores, rendeiros e comerciantes. No entanto, as reivindicações de liquidar a totalidade dos direitos feudais sem qualquer indemnização ainda são pouco frequentes. Mas, ao mesmo tempo, nos “cadernos” já se fazem-se sentir as clivagens económicas e sociais que dividem o mundo rural: nas regiões de grandes explorações “capitalistas”, uma das queixas mais frequentes é a que opõe os lavradores remediados aos grandes rendeiros endinheirados, acusando-os de açambarcarem a maioria das quintas. Nestes casos pretende-se fixar um limite de hectares que não possa ser ultrapassado pelo senhor na constituição de herdades para arrendar. Nestas regiões já é possível encontrar reivindicações de teor “moderno”; elas emanam de jornaleiros e braçantes que querem resolver o problema da carestia recorrendo, não ao tabelamento dos preços (velha medida ligada ao Antigo Regime), mas à subida dos salários… Finalmente, nos “cadernos” há ainda reivindicações de conteúdo igualitário que exprimem a “fome de terra” dos pequenos camponeses independentes, dos meeiros, dos jornaleiros; estes grupos sociais exigem a devolução dos baldios ilegalmente expropriados pelos senhores, bem como a conservação dos direitos comunitários dos camponeses. Aqui e ali surge já a ideia de expropriar as terras das ordens religiosas e aproveitar os edifício devolutos para escolas (“cadernos” de Denonville e de Mauchamp na Ile-de-France, por exemplo). Através desta documentação rural riquíssima, aqui apenas aflorada ao de leve, tem-se uma noção clara das reivindicações e das mentalidades camponesas nas vésperas da Revolução. O campesinato era depositário de uma longa experiência de luta que muito rapidamente se transformará em reivindicações de novo tipo, como veremos.

Entretanto a Revolução na Assembleia Constituinte avançava. Perante as audácias jurídico-revolucionárias de que os representantes do Povo deram provas em Maio e Junho, o rei Luís XVI decidiu em Julho dissolver a Assembleia e pôr fim à revolução em marcha. Para a execução deste plano contra-revolucionário reuniu um exército de 20.000 homens nos arredores de Versalhes e de Paris. Se até aí, a população urbana se tinha mantido numa atitude vigilante e expectante, como já se escreveu; e se a acção revolucionária da Assembleia Constituinte se desenrolara sem ligação directa com as movimentações camponesas iniciadas no fim de 1788, daqui em diante a “revolução popular” vai entrar em acção e posicionar com toda a força, o problema das alianças políticas na revolução. Ao conluio contra-revolucionário em preparação, o povo de Paris chamou com toda a propriedade a conspiração aristocrática: Ele viu as ligações existentes entre a conspiração aristocrática, a feudalidade e a disette (a fome endémica), culpando os senhores pela especulação desenfreada que se estava a fazer com os cereais (A. Soboul). Com o levantamento revolucionário de Paris, e com a tomada a 14 de Julho da Bastilha - a fortaleza que simbolizava o poder absoluto da monarquia - o povo salvou a Assembleia Constituinte e a Revolução. O rei recuou nos seus intentos, mandou retirar a tropa e aceitou temporariamente a derrota. Os membros da família real começaram então a emigrar, a fim de preparar a contra-revolução no estrangeiro. A burguesia aproveitou a situação e apoderou-se da administração da capital. Entre o dia 15 e o 19 uma série de movimentos populares urbanos reforçaram o poder da burguesia na administração local. É a chamada revolução municipal. Esse povo revolucionário de Paris e das outras cidades - como mostraram as investigações de A. Soboul - era constituído por pequenos patrões artesãos, por aprendizes, por patrões de manufacturas com alguma dimensão, por trabalhadores da construção civil e das manufacturas, por pequenos retalhistas e ainda por uma numerosa criadagem. Este pessoal revolucionário heteróclito, tendencialmente igualitário, não formava ainda uma classe no sentido moderno do termo. Na história ficou conhecido pelo nome de sans-culottes (sans-culotterie). Entre eles, o mundo do trabalho “continuava marcado no seu conjunto pela mentalidade da pequena burguesia” (A. Soboul).

Qual foi nestas circunstâncias, a posição dos camponeses?

A difusão em grande escala das notícias neste século não estava ainda organizada. Dos eventos do mês de Julho e em particular da “revolução popular” começada em Paris no dia 12 foram chegando rumores às aldeias, em muitas das quais já se lutava, motu proprio, pelo tabelamento dos preços devido à carestia. A. Soboul descreve a situação vivida então nas aldeias nos seguintes termos: “As notícias que iam chegando desde o princípio de Julho de Paris e de Versalhes, deformadas, desmedidamente aumentadas, tomavam uma repercussão nova à medida que passavam de aldeia para aldeia”. Em poucos dias, e a partir de alguns focos principais situados perto de cidades de província, cria-se um movimento revolucionário que acaba por abranger, directa ou indirectamente, milhões de camponeses por quase toda a França. Na história, esse movimento grandioso ficou conhecido pelo “Grande Medo”. A sua natureza foi magistralmente estudada por G. Lefebvre em 1932. Tendo começado como uma jacquerie, em que traços de mentalidades “arcaicas” (como o medo de míticos “bandidos”) já ombreavam com comportamentos “modernos” (como a luta pelo tabelamento), este movimento mudou rapidamente de essência. Depressa desenganados quanto à existência de “bandidos forasteiros”, mais esclarecidos quanto ao que de facto se passara em Paris, Versalhes e noutras cidades, os camponeses viram nos nobres com os seus direitos feudais, não só os obreiros da crise económica que os atingia, mas ainda os responsáveis pelo atraso das mudanças que acalentavam desde a redacção dos seus “cadernos de queixas” e a convocação dos Estados Gerais.

Que pretendiam, em suma, os camponeses com esta jacquerie? Simplesmente isto: o fim imediato da totalidade da feudalidade na agricultura, com o seu rosário de vexames, misérias e fomes (a disette grassava desde fins de 1788, e a memória da “Guerra das farinhas” não estava longe). O método utilizado para conseguir os seus intentos foi expeditivo: a destruição dos arquivos senhoriais em que se conservavam os títulos primitivos dos “direitos feudais”. Sem títulos não haveria direitos. As centenas de palácios assaltados e de arquivos queimados durante o final do mês mostram a determinação dos camponeses. O golpe dado à aristocracia foi de proporções tais que ela não tentou sequer defender-se nas suas terras. Note-se, no entanto que durante a “guerra aos castelos”, as mortes dos senhores e as pilhagens dos seus palácios foram em muito pequeno número. Não era vingança que os camponeses desejavam, mas mudança: um mundo deles e para eles. A partir desta insurreição, eles deixam espontaneamente de pagar os direitos feudais e os impostos que recaíam maioritariamente sobre os seus ombros.

Todavia, juntamente com o seu carácter marcadamente anti-feudal, a “guerra aos castelos”, era também a expressão da “luta dos camponeses pela libertação, sem indemnização, das suas terras hereditárias (“tenures”, “censifs”)” e pela transformação destas “em propriedade camponesa livre” (A. Adô). No caso dessa “libertação” sem resgate vir a ser reconhecida oficialmente pela Assembleia Constituinte, isso significaria um passo importante no fortalecimento da “via camponesa” para o capitalismo, visto que uma considerável quantidade de terras passaria para a posse plena dos camponeses (tanto nas regiões de pequena cultura como nas regiões em que ainda restavam terras hereditárias). Por trás da extinção da feudalidade perfilava-se já a problemática das vias de ulterior desenvolvimento do capitalismo agrário em França. A questão não era, pois, pacífica. Quanto à nobreza que continuava ligada economicamente à feudalidade - e cujas propriedades se situavam nas regiões de pequena cultura ou de meeiros - a abolição sem resgate dos direitos feudais era altamente lesiva. Todavia, perante as dimensões de uma catástrofe eminente, a acção da nobreza no seu todo, foi prudente e hábil, acabando por conseguir o apoio da grande burguesia que dominava a Assembleia Constituinte, e à qual as reivindicações camponesas pareciam um atentado à propriedade em geral (e portanto à sua).

A estratégia da nobreza foi ceder em tudo que não era essencial, apaziguar o ímpeto revolucionário dos camponeses e bater-se em seguida pelo que era fundamental, isto é, os direitos feudais reais: quer conservando, quer exigindo um alto preço pelo seu resgate. Não entraremos nos pormenores tácticos desta guerra. Na noite de 4 de Agosto de 1789, quando a “guerra aos castelos” continuava, a nobreza e o alto clero por iniciativa própria propuseram na Assembleia Constituinte a abolição dos seus privilégios fiscais, das servidões pessoais que ainda atingiam um milhão de camponeses, numa população de vinte milhões, e o resgate dos direitos feudais reais, sem todavia se pronunciarem sobre as modalidades desse resgate. Quando mais tarde o fizeram, exigiram uma soma exorbitante: o equivalente a 20 ou 25 anos do total dos direitos feudais inerentes à propriedade a resgatar, não sendo previsto nenhum tipo de empréstimo bancário especial aos camponeses que quisessem efectuar aquela pesadíssima operação. Esta disposição tornou-se lei em 11 de Agosto. Assim, um camponês médio (lavrador) para ser proprietário da sua terra hereditária tinha, no fim de uma vida de trabalho, de se descapitalizar totalmente, enquanto um pequeno camponês não podia sequer aspirar a tal. Das outras categorias camponesas não valia a pena falar. Data daqui, por assim dizer, a política de compromisso da grande burguesia constituinte com a nobreza e a monarquia, suas recentes (e parcialmente derrotadas) opositoras. A grande burguesia tentava, assim, criar um regime liberal monárquico, conservador, em que a grande burguesia e a aristocracia dominassem a vida política da nação, a exemplo da Inglaterra. Só que em 1789 Luís XVI não era o futuro rei inglês Guilherme III em 1688, nem a maior parte da aristocracia francesa em 1789 era a aristocracia “burguesa” que ajudou a fazer na Inglaterra a revolução de 1640-1660.

Entretanto, a legislação agrária da Assembleia Constituinte até ao fim da sua existência em 1791, foi sempre inspirada nesta política de compromisso, e por isso sempre desfavorável aos camponeses. Assim, depois da nacionalização das terras do Clero, a legislação adoptada para a sua venda favorecia sobretudo os detentores de grandes capitais, deixando de fora a enorme maioria da maça camponesa. A esta orientação geral, o campesinato respondia energicamente com a recusa de pagar qualquer direito feudal e, mesmo, no fim de 1789 com uma nova jacquerie que se estendeu sobretudo às regiões que não haviam sido tocadas pela primeira. Os meios utilizados foram os mesmos: destruição pelo fogo dos arquivos dos palácio e castelos senhoriais, destruição de todos os símbolos do poder dos senhores nas aldeias e igreja. Os objectivos da insurreição mantinham-se: a abolição total sem resgate dos direitos feudais reais e a plena posse das terras hereditárias. Até ao termo da Assembleia Constituinte em Setembro de 1791, os camponeses recorreram a mais duas jacqueries contra os direitos feudais (A. Adô) que contribuíram para demonstrar a utopia em que assentava a política de compromisso da burguesia constituinte, já de si abalada pela felonia do rei (fuga de Paris em 19 de Abril) e a impossibilidade de a prosseguir.

Mas foi só em 1793 durante a Convenção jacobina que a burguesia revolucionária robespierrista, apoiada nos sans-culottes, deu voz ao essencial das reivindicações camponesas, cujas insurreições se prosseguiam. Assim, a legislação do verão de 1793 abolia finalmente sem resgate todos os direitos feudais, fazendo das terras hereditárias propriedades plenas, e estabelecia que a venda dos bens nacionais provindos da expropriação dos nobres contra-revolucionários que haviam emigrado, fosse feita em pequenos lotes acessíveis aos camponeses com poucas posses. Uma considerável porção das terras da nobreza passava deste modo para a posse dos camponeses, sobretudo dos seus estratos médios e mais elevados. A “via camponesa” para o capitalismo ganhava deste modo um novo alento e faria da França durante longos decénios um país em que a pequena exploração camponesa ombreava com a grande exploração capitalista que lograra manter-se ou reconstituir-se a pouco e pouco, embora por acção da burguesia rural e citadina e não da nobreza. Mas isto é já uma outra história que não cabe nestas rápidas páginas.

Terminemos:

Se a Revolução Francesa promoveu a Liberdade como valor fundamental do Novo Regime (burguês), foi na liberdade da luta e do confronto abertos que os revolucionários lhe determinaram os contornos políticos, sociais e económicos. Os camponeses com a sua diversidade social e económica foram neste processo uma peça essencial. Finalmente, não é indiferente para o futuro de um país - dizendo-o aqui propositadamente de modo esquemático - se a passagem para o capitalismo na agricultura se faz sob a égide de uma Aristocracia emburguesada e conservadora, ou com o contributo decisivo de uma pequena burguesia rural.

«O Militante» - N.º 256 - Janeiro/Fevereiro de 2002

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