segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Marx, o profeta da revolução


Marx, o profeta da revolução
Karl Marx não chegou a presenciar a vitória de nenhuma revolução comunista, mas sua crítica ferrenha do capitalismo trouxe para muitos rebeldes uma certeza: a mudança era inevitável
por Reinaldo José Lopes
Se Karl Heinrich Mordechai Marx, nascido em maio de 1818, tivesse vindo ao mundo uma geração antes, provavelmente teria escapado de muita dor de cabeça. Tal como uma longa linhagem de seus ancestrais judeus, que viviam na cidadezinha alemã de Trier desde o século 17, é bem possível que ele também se tornasse rabino. Passaria seus sábados em uma sinagoga e exerceria algum outro ofício, como o de alfaiate ou marceneiro. Mas não foi nada disso o que aconteceu.

Ao crescer numa época em que o mundo estava mudando a uma velocidade alucinante, ele próprio acabou se tornando um arauto da transformação. Em vez de rabino, virou filósofo, economista e agitador político, criando praticamente sozinho a idéia de que o capitalismo carregava dentro de si as sementes da autodestruição. Perseguido e muitas vezes ignorado, chegou ao fim da vida com seu prestígio em ascensão – um prestígio que logo se transformaria em absoluta idolatria entre quase todos os partidos de esquerda do mundo.

Jovem revolucionário

Um certo Napoleão Bonaparte provavelmente foi o responsável por transformar o destino de parte da família Marx. No começo do século 19, o imperador francês conquistou uma série de territórios da Alemanha – entre eles Trier –, levando para essas regiões a nova ordem da Revolução Francesa. Até então, os judeus alemães eram cidadãos de segunda categoria, sofrendo restrições para exercer uma série de profissões. As leis napoleônicas finalmente colocavam-nos em pé de igualdade com os cristãos. Um dos mais empolgados com a mudança era o jovem advogado judeu Herschel Marx Levy.

Herschel tinha estudado na França e já não via futuro na cultura tradicional judaica. Abraçou com entusiasmo as idéias racionalistas do Iluminismo. E, por conta disso, enfrentou um dilema quando a sorte de Napoleão virou. A partir de 1815, o imperador francês começou a perder os territórios conquistados na Alemanha. Os novos senhores de Trier, prussianos, não permitiam que judeus exercessem a advocacia. Depois de alguma hesitação, Herschel acabou se convertendo ao protestantismo e mudando seu nome para Heinrich Marx. Seu primeiro filho homem, Karl, seria batizado junto com os irmãos em uma igreja luterana.

Decidido a ver o filho seguindo sua mesma trajetória profissional, Heinrich prepara-o para estudar Direito. O jovem Karl aprende francês, latim, grego e hebraico. E deixa registrado em um de seus primeiros textos – Reflexões de um jovem sobre a escolha de uma vocação – o primeiro indício de seu ânimo revolucionário: os jovens deveriam colocar em primeiro lugar “o dever, o sacrifício de si mesmos, o bem-estar da humanidade, a preocupação com nossa própria perfeição”.

Ateu desempregado

Os devaneios altruístas de Marx foram interrompidos temporariamente quando, aos 17 anos, partiu para a Universidade de Bonn. Não é exagero afirmar que ele passou os anos seguintes fazendo de tudo na faculdade, menos estudando Direito. Com sua cabeleira negra e pele morena (que logo iriam lhe render o apelido de “Mouro”), Marx fumava feito uma chaminé, enchia a cara, gastava mais do que podia e brigava bastante. Em compensação, lia sem parar, mergulhando na filosofia e literatura alemãs e descobrindo tudo o que podia sobre as inovações tecnológicas da Revolução Industrial. Preocupado com as confusões do filho, Heinrich transfere-o para um ambiente supostamente mais calmo e provinciano, a Universidade Frederico-Guilherme, em Berlim – o que acabou não adiantando nada.

A essa altura, o estudante fanfarrão já namorava Jenny von Westphalen, filha de um barão. Jenny viraria esposa, mãe de seus sete filhos. E iria se habituar a dividir o marido com sua outra paixão: a filosofia. Na época, os pensadores alemães eram fortemente influenciados pelas idéias de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Ele acreditava que a história humana seguia um padrão definido de evolução, de forma que a sociedade podia alcançar uma condição cada vez mais perfeita ao longo do tempo. Quem garantia essa evolução, segundo Hegel, era a razão humana, que refletiria a própria razão de Deus. Marx aceitava a idéia de que havia uma progressão clara na história humana, mas negava que isso tivesse algo a ver com a vontade divina. Tornou-se, assim, um militante do ateísmo, como outros tantos estudantes e professores alemães. Defendia que o mundo material é que determinava a evolução do pensamento humano, e não o contrário. Mais tarde, diria que tinha consertado o pensamento de Hegel simplesmente virando-o de ponta-cabeça.

Em 1841, Marx defende sua tese de doutorado. Enquanto não consegue o sonhado cargo de professor universitário, trabalha no jornal Gazeta Renana, que emprega um time inteiro de intelectuais radicais. Em pouco tempo, o rapaz – então com apenas 24 anos – chega ao cargo de redator-chefe. Mas seus artigos sobre a liberdade de imprensa, em favor do movimento comunista e contra a monarquia absoluta levam o rei da Prússia, Frederico Guilherme IV, a exigir sua demissão. Marx demite-se. Em seguida, casa-se com Jenny. E os dois partem para Paris.

Apátrida em Londres

Marx não sabia, mas sua partida voluntária para a França acabaria por transformá-lo em um homem sem pátria. A publicação que fundou em Paris, os Anais Franco-Alemães, logo faliu. Perseguido pelo ativismo político, em pouco tempo ele já estaria se mudando para a Bélgica. Antes disso, no entanto, um encontro decisivo aconteceu. Ainda na capital francesa, Marx torna-se amigo de outro expatriado alemão, Friedrich Engels. Herdeiro de um fabricante de tecidos, Engels tinha visitado as fábricas de Manchester, na Inglaterra, e produzido um relatório sobre as condições lamentáveis de vida dos operários britânicos. A dupla de amigos discute longamente os resultados da pesquisa, que acabariam convencendo Marx de que o capitalismo industrial era insustentável. Acreditando que os operários eram a chave para a transformação da sociedade, os dois passam a se considerar comunistas.

Não demoraria para que as teses da dupla se convertessem em ação. Em Bruxelas, Marx e Engels unem-se a outros radicais, de diferentes países, para fundar a Liga dos Comunistas. Em 1848, a pedido da Liga, eles redigem a declaração de princípios conhecida como Manifesto Comunista. Em seu famoso apelo – “Trabalhadores do mundo todo, uni-vos!” –, o manifesto é um chamado à revolução mundial. Ela ocorreria por partes: primeiro, uma sociedade capitalista, de economia pujante, garantiria condições para o fortalecimento da classe operária; depois, por meio do voto ou da revolução, os operários tomariam o poder e instalariam a chamada “ditadura do proletariado”; por último, viria a sociedade sem classes, em que toda a propriedade seria comum, cada indivíduo teria liberdade para exercer qualquer tipo de ofício e suas necessidades seriam asseguradas pela comunidade.

O potencial revolucionário do documento era tamanho que o governo belga decide expulsar Marx do país. Após um período de idas e vindas entre Alemanha e França, ele finalmente se estabelece em Londres, onde ficaria o resto da vida. Os primeiros anos na capital britânica foram os piores da vida do pensador. Quase sempre com os bolsos vazios, Marx e Jenny dependem da generosidade de Engels, que conta com a fortuna da família. Morando em um apartamento de três cômodos na Dean Street, apelidada de “Rua da Morte”, o casal perde quatro de seus sete filhos ainda pequenos.

Erro de cálculo

Apesar da vida precária, Marx continua trabalhando muito, embora quase nunca consiga concluir seus manuscritos. A situação só melhora quando ele recebe uma proposta para ser correspondente em Londres do jornal americano New York Daily Tribune, o maior da época. Marx passa a receber bons pagamentos por artigo publicado – muitos deles, excelentes análises internacionais. Ele consegue levar sua família para morar em uma casa bem melhor. E retoma o ativismo político, ajudando a fundar, em 1864, a Associação Internacional dos Trabalhadores – ou Primeira Internacional, como ficou mais conhecida.

À medida que envelhece, o profeta da revolução vai ficando ressentido. Problemas de saúde cada vez mais delicados indicam que a morte se aproxima, sem que suas previsões tenham se confirmado. Marx ainda acredita que a revolução começará por uma potência industrial, como a Alemanha ou a Inglaterra. Mas morre, em 1883, sem tê-la testemunhado. Trinta e quatro anos mais tarde, a profecia finalmente iria se concretizar. Mas em um lugar bem diferente daquele que Marx imaginava. Um lugar atrasado e de economia agrária, onde o proletariado ainda dava seus primeiros passos: a Rússia.

Importância capital

Enquanto lutava para não matar a própria família de fome e manter seu ativismo político, Marx passou quase toda a estada em Londres, até 1867, elaborando sua obra máxima: O Capital (foto). O livro revela como ele digeriu o trabalho de todos os economistas mais importantes de sua época numa tentativa de expor as engrenagens do capitalismo. A análise é fria e, às vezes, abstrata demais. A idéia do livro é explicar, não incitar à revolução – isso, o Manifesto Comunista já tinha feito.

O conceito mais importante do livro talvez seja o de mais-valia. A idéia é que os operários de uma fábrica, por exemplo, estão na verdade vendendo sua própria força de trabalho ao empregador, sendo pagos basicamente pelo tempo que passam dentro da indústria. Eles seriam, então, remunerados apenas para manter sua própria subsistência básica (comendo e dormindo), de maneira que sua força de trabalho continue disponível. Só que os trabalhadores produzem bem mais do que o valor de que precisam para continuar vivos e trabalhando. A mais-valia é justamente essa diferença: a produção do trabalhador menos o custo para mantê-lo na ativa. E é com ela que o dono de uma fábrica ou de qualquer outro meio de produção constrói sua riqueza.

Saiba mais
Karl Marx, ou o Espírito do Mundo, Jacques Attali, Record, 2007

O autor faz um retrato de Marx que mistura análise psicológica com o quadro político e social vivido pelo pensador no século 19.

O Manifesto Comunista de Marx e Engels, David Boyle (org.), Jorge Zahar, 2006

Edição comentada do texto em que Marx apresenta sua visão sobre o desenvolvimento do capitalismo com o máximo de clareza.

Revista Aventuras na História

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