sábado, 21 de agosto de 2010

Enciclopédia Francesa: A Internet do século 18


Enciclopédia Francesa: A Internet do século 18
Proibida pelo rei e pelo papa, a Encyclopédie levou 21 anos para ser concluída. Seu objetivo era reunir todo o conhecimento humano, mas acabou divulgando uma nova maneira de pensar
por Érica Montenegro
Em uma tarde de novembro de 1752, o rei Luís XV recebeu em audiência um homem desesperado. Jean-François Boyer, jesuíta, bispo de Mirepoix, advertia o rei, com gestos teatrais e lágrimas, de um grande risco que corria o império francês. A terrível ameaça vinha de um grupo de escritores que fomentava idéias de incredulidade, irreligiosidade e rebeldia na população. Os autores, capitaneados pelo filósofo Denis Diderot, já haviam publicado dois tomos de sua coleção de livros, alcançado boas vendagens e se tornado o principal assunto dos salões literários e das páginas de cultura dos jornais.

A ambiciosa idéia de organizar todo conhecimento existente em uma coleção de livros é bem anterior à Encyclopédie. No século 5 a.C., o rei Assurbanípal, da Mesopotâmia, havia ordenado aos sábios de sua corte que escrevessem um livro-síntese sobre tudo o que se conhecia até então. O resultado foram várias tábuas de madeira gravadas em escrita cuneiforme. A palavra enciclopédia vem do grego enkiklios paidéia e significa “cadeia do conhecimento”. O primeiro trabalho que reivindica essa característica em seu título é a Encyclopedia Septem Tomis Distincta de Johann Heinrich Alsted, de 1630, mais de 100 anos antes da mais famosa de todas, a versão francesa, a Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers (algo como “Enciclopédia ou dicionário sistemático das ciências, artes e profissões”).

Mas, se o formato não era exatamente uma novidade, o que fez a Encyclopédie de Diderot e seu parceiro, Jean le Rond D’Alembert, se tornar uma referência? Simples: ela permitiu que as idéias discutidas nos altos salões da intelectualidade chegassem ao povo.

Os enciclopedistas conduziram seus leitores a uma nova maneira de pensar, na qual a investigação e o método eram propostos como a única forma de chegar ao verdadeiro conhecimento. Aos olhos contemporâneos pode parecer pouco, mas naquele tempo os escolásticos eram os donos da verdade e, para eles, todas as respostas começavam e terminavam em uma única palavra: Deus. Na corte do rei Luís XV, dúvidas sobre a existência divina custavam a cabeça de um cidadão. Imagine escrevê-las, imprimi-las e distribuí-las para milhares de pessoas!

Para entender por que os enciclopedistas tiveram sucesso nessa aventura, é preciso levar em conta o período em que a Encyclopédie chegou às estantes: entre 1751 e 1772. Nessa época, a burguesia já era peça importante para o funcionamento da sociedade, a educação estava sendo ampliada às massas e a vida urbana (com sua agitação e possibilidades) começava a ser o modo de vida predominante na velha Europa. Diante desse cenário, o povo estava sedento por informação, que era vista como um instrumento para melhorar de vida. Só entre 1674 e 1750 foram publicados 30 livros com pretensões enciclopédicas, um número muito maior do que nos 200 anos anteriores. Esses compêndios deixavam em casa, ao alcance das mãos e dos olhos de qualquer um, parte dos conhecimentos que, até então, estavam encerrados nas bibliotecas públicas. Guardadas as devidas proporções, as enciclopédias eram para os homens e mulheres daquele período algo parecido com o que a internet é para a gente hoje.

Censura

O rei Luís XV era mais chegado à caça de animais e de mulheres jovens que às questões de Estado. Mas, diante da advertência feita por aquele bispo desesperado, o monarca decidiu tomar providências. Em fevereiro de 1753, proibiu a comercialização dos dois primeiros volumes da Encyclopédie e nomeou um grupo de homens da Igreja para revisar os que ainda estavam para ser publicados. A decisão foi diplomática: agradou a Igreja sem abortar o projeto. Por trás disso havia uma voz feminina.

A amante preferida de Luís XV, madame Pompadour, era amiga dos enciclopedistas e tinha paixão pelas artes e pelas letras. “Sedutora e inteligente, madame Pompadour era uma firme defensora das idéias progressistas na corte”, escreve Philipp Blom, em Encyclopédie – El Triunfo de la Razón en Tiempos Irracionales (sem edição em português). Entre um encontro amoroso e outro, Pompadour convenceu o soberano de que não era bom impedir um projeto intelectual que dava prestígio à França no estrangeiro. Pela extensão do trabalho (no fim das contas, a Encyclopédie compreenderia 27 volumes, 72 mil artigos e 16500 páginas), fica claro que os censores não conferiram letra por letra o que estava sendo publicado. Ou se deixaram enganar pelos malabarismos verbais executados pelos autores. Em entradas como “Autoridade política e direito natural”, os enciclopedistas mostravam o tipo de mudanças que esperavam.

“Nenhum homem recebeu da natureza o direito de mandar nos demais. A liberdade é um presente dos céus, e qualquer indivíduo da nossa espécie tem o direito de desfrutar dela da mesma maneira que desfruta da razão”, dizia Diderot em seu artigo sobre “Autoridade política”. Com essa linguagem um pouco tortuosa, que fala em céu para evitar a ira da Igreja sem deixar de mencionar o poder da razão, o filósofo se manifestava contra o absolutismo, modelo político daquele período.

Outra artimanha dos editores foi o uso de referências cruzadas. Como toda enciclopédia, a de Diderot e D’Alembert trazia ao fim dos textos sugestões de outros artigos que ampliavam a compreensão sobre o tema em questão. O jogo de referências permitia aos leitores mais atentos decifrar o que pensavam os cabeças do grupo sobre um determinado assunto. Por exemplo, o artigo “Liberdade de pensamento” levava a “Intolerância”. O artigo “Ofício” lembrava os cargos do Estado que eram vendidos pelo rei aos nobres e, no fim, encaminhava o leitor para os textos sobre “Moral”, “Moralidade” e “Ética”.

Sem dúvida, uma das virtudes do grupo foi defender uma nova ordem social em que as classes produtivas estivessem à frente. Fizeram isso nas entrelinhas, acrescentando relatos sobre diversos processos de manufatura e centenas de ilustrações sobre os instrumentos de trabalho dos artesãos. Também elevaram as Artes e as Ciências a um novo patamar, realçando o poder humano de criar e descobrir. Sendo assim, tinham uma boa desculpa para os censores: a Encyclopédie não era um livro de idéias, mas uma obra informativa.

Não se sabe ao certo quantos intelectuais trabalharam para escrever a coleção. Em uma das listas de apresentação dos primeiros livros estão citados 143 nomes, e, entre eles, os principais cientistas, médicos, matemáticos, filósofos e livres pensadores daquele tempo. Mas, pela extensão e duração do trabalho (21 anos!), muitos colaboradores foram sendo trocados ao longo do tempo. Para organizar o trabalho, Diderot e D’Alembert dividiram as áreas do conhecimento que seriam abordadas e, então, convidaram os especialistas para sugerirem em ordem alfabética os artigos que deveriam ser incluídos.

A ousadia permanente desses homens, que se tratavam uns aos outros como iluministas, por muito pouco não os levou à Bastilha, a temida fortaleza-prisão de Paris. Depois daquela primeira crise provocada pelo bispo, viria outra, ainda pior. Em 1759, com sete volumes publicados e 4 mil leitores já tendo pago pelos próximos, os livros foram definitivamente proibidos pelo rei. O papa se somou ao coro dos descontentes: atacou a Encyclopédie e a incluiu no índex de livros proibidos, ameaçando os católicos que a lessem com a excomunhão. A censura, por conta de uma grave crise política, havia recrudescido no país e os enciclopedistas temiam por sua liberdade e por sua integridade física.

No entanto, é justamente nesse momento que se sente o quanto a Europa havia mudado desde os primeiros pesados volumes. Ainda que tivesse contra si o rei, o papa e parte da intelectualidade francesa, a Encyclopédie já dava emprego direto a mil pessoas. Além dos escritores e dos livreiros, desenhistas, impressores e encadernadores dependiam dela para sobreviver. As estimativas são de que um em cada dez parisienses se beneficiava do livro economicamente. “A Encyclopédie tinha dentro de si o gérmen do século seguinte, da Revolução Industrial e da caída do regime aristocrático. Com milhares de empregos em jogo e centenas de libras postas na balança, os fatores econômicos ganharam a partida”, afirma Philipp Blom.

Enfim, o “Z”

Com o sucesso, os financiadores do projeto decidiram que o grupo deveria continuar trabalhando, ainda que quase às escondidas. As autoridades sabiam o que estava ocorrendo – espiões da polícia continuamente rondavam o escritório de Diderot, mas, como os livros não haviam sido publicados, não podiam fazer nada.

Os livreiros, satisfeitos com os ganhos que obtinham, esperavam uma ocasião mais favorável para voltar a imprimir e distribuir o resto da coleção. Ela chegou em 1766, quando Antoine de Sartine assumiu o cargo estatal de diretor de Comércio do Livro. Simpatizante do Iluminismo, Sartine combinou que os livros poderiam ser impressos fora de Paris. Em janeiro de 1766, os jornais anunciavam que o resto da Encyclopédie fora impresso na Suíça e que estava à venda. Parte da publicidade era falsa. Os livros foram fabricados em Paris mesmo, a portas fechadas, com os impressores cumprindo dupla jornada. Mas já não importava, o exaustivo trabalho havia terminado. A partir de 1766, os volumes restantes foram colocados à disposição do público. O último, com os artigos entre “Vénérien” e “Zzuéne”, foi entregue em 1772.

A Revolução Francesa, com seu lema de liberdade, igualdade e fraternidade, estourou 17 anos depois. A princípio, os iluministas identificaram no movimento as idéias progressistas que tanto haviam se esforçado para levar adiante. Mas o caráter violento que a Revolução ganhou com o tempo os mortificou. Partidários do cultivo das virtudes do espírito, os iluministas jamais poderiam perdoar qualquer tipo de totalitarismo.

A obra
Encyclopédie – El Triunfo de la Razón en Tiempos Irracionales, Philipp Blom, Anagrama, Colección Argumentos, 2004. 460 páginas.

Revista Aventuras na História

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