segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Das transformações da dominação masculina


Das transformações da dominação masculina*

Danilo Climaco
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. daniloclimaco@yahoo.com.br


Hoje é amplamente aceito pelos estudos feministas o fato de os homens mudarem – da mesma maneira que o fazem as mulheres. No entanto, como bem mostrará Welzer-Lang na primeira parte de Les hommes aussi changent..., isto não foi sempre uma evidência, mas sim o resultado de décadas de discussões. Agora bem, toda classe de mudança digna de seu nome deve ser, em si, imprevisível. As reticências que fecham o título do livro apontam que as mudanças dos homens não são mais do que pontos de partida, cabendo às/aos cientistas sociais compreendê-las. No entanto, dado o vazio de pesquisas neste sentido, o livro toma como seu objetivo "repassar a dominação masculina" e "oferecer ferramentas teóricas para pensar a questão do homem e do masculino dentro da perspectiva das relações sociais de sexo" (13).

Ao redor deste objetivo, o livro desenvolve-se em quatro partes. A primeira é consagrada à criação do campo de estudos das relações sociais de sexo na França; a segunda à estruturação dos estudos sobre masculinidades; e as terceira e quarta compõem-se de resenhas sobre algumas das pesquisas mais relevantes do próprio Welzer-Lang.

O fato de a primeira parte referir-se à constituição do campo das relações sociais de sexo deve-se à necessidade, expressa por Welzer-Lang de deixar claro a dívida dos estudos das masculinidades para com o feminismo. Assim, após mencionar brevemente a importância de Simone de Beauvoir haver mostrado a impossibilidade de se definir o ser mulher e os trabalhos franceses influenciados pela teoria parsonniana, Welzer-Lang detém-se sobre as cientistas sociais francesas da década de 1970, especialmente Nicole-Claude Mathieu, Christine Delphy e Colette Guillaumin. Naquela década teria ocorrido uma série de mudanças nos estudos feministas: a ênfase parsonniana nas relações familiares é desmantelada e o sistema de relações sociais de sexo passa a ser compreendido como algo disseminado socialmente, que se mantém através de uma lógica de dominação que extrapola o familiar. No mesmo período, enfatiza-se a dinamicidade histórica e social das relações sociais de sexo e é neste contexto que, contra toda uma série de pesquisas que enfatizava a multiplicidade de resistências das mulheres contra uma opressão homogênea por parte dos homens, Mathieu expõe, em um artigo fundamental para os estudos das masculinidades, a necessidade de se compreender teoricamente a variabilidade própria também aos homens.

A década de oitenta solidificará essas tendências, refinando teorias e conceitos e ampliando progressivamente os âmbitos do social passíveis de serem compreendidos a partir da perspectiva das relações sociais de sexo. No entanto, os caminhos abertos por Mathieu para se estudar as masculinidades não foram trilhados dentro dos estudos acadêmicos feministas, ainda que sim por alguns daqueles que, não sem humor, Welzer-Lang denomina como "grands sociologues" franceses e, de forma não estritamente acadêmica, por homens pró-feministas. Damos entrada à segunda parte do livro.

Entre as décadas de 1970 e 1980, expõe Welzer-Lang, os homens pró-feministas franceses publicaram reflexões de caráter pessoal que abarcavam temas relacionados à identidade masculina, à sexualidade ou à paternidade. Apenas nos anos noventa haverá algumas poucas publicações científicas – nos círculos universitários feministas – que abarquem o dinamismo do masculino, "abrindo pistas para completar as análises em termos de relações sociais de sexo" (83).

Fora do círculo feminista, no entanto, três cientistas sociais renomados desenvolvem trabalhos contendo reflexões importantes para os estudos sobre as masculinidades: Maurice Godelier, Pierre Bourdieu e François de Singly. Eles não apenas contribuíram teoricamente ao campo de estudos aberto pelo feminismo, mas também institucionalmente: as relações sociais de sexo transcendem as fronteiras feministas, transformando-se em tema de relevância paras as ciências sociais.

O primeiro autor, Godelier, maior nome da antropologia econômica francesa, realizou ao longo de mais de uma década trabalhos de campo entre os Baruya de Nova Guiné e, em 1982, lança La production des grands hommes, livro que coloca como principal contradição social Baruya a dominação masculina e que descreve o processo de produção dos homens dessa sociedade. Este ocorre na "casa dos homens" que, vedada às mulheres, transforma-se em um espaço violentíssimo onde os mais jovens e fracos são associados ao feminino e, por isso, violentados de múltiplas maneiras pelos mais fortes. Os homens e o masculino constroem a si mesmos e constroem também as mulheres e o feminino, em um espaço mono-sexual, onde o feminino, encarnado nos mais jovens, submete-se ao masculino por meio da violência. Posteriormente, essa concepção é passada tal qual às relações entre homens e mulheres, sem que estas tenham conhecimento de determinados pactos realizados pelos homens. O que torna fundamental esta obra para Welzer-Lang é a possibilidade aberta pelo próprio Godelier de transpor a "casa dos homens" para espaços mono-sexuais de homens franceses, tais como bares ou clubes esportivos. Também na França, o masculino e os homens e o feminino e as mulheres aparecem como construídos por relações de violência entre homens.

A dominação masculina, de Bourdieu, para Welzer-Lang, supõe dois acontecimentos políticos de importância. O primeiro, a ausência de referência a grandes teóricas feministas que haviam configurado o campo que permitiu Bourdieu escrever seu livro. Ao distanciar-se das referências feministas, Bourdieu adota um tom professoral, ditando os caminhos a serem percorridos pelo feminismo e pela sociedade como um todo para que se alcance o fim da dominação masculina, e o faz sem demonstrar nenhuma consciência da contradição entre seu discurso e seu posicionamento como autor. O segundo acontecimento liga-se à força do nome próprio Bourdieu no meio acadêmico francês, o que permitiu uma visibilidade das relações sociais de sexo até então inaudita.

Teoricamente, no entanto, A dominação masculina evoca controvérsias. Em uma crítica que lembra aquela de feministas como Judith Butler à obra de Jacques Lacan, Welzer-Lang expõe como Bourdieu fica preso a uma "fixidez" simbólica e psicologizante, onde o feminino e o masculino são categorias dadas antes de qualquer interação social, o que impede uma compreensão da dominação masculina como fruto de práticas sociais (violentas) concretas e cotidianas e que as mudanças nestas práticas implicam mudanças no âmbito simbólico.

O último autor, Singly, principal nome da sociologia da família francesa, foi um dos poucos a se debruçar sistematicamente sobre situações concretas das relações entre homens e mulheres e suas transformações. Em sua vasta obra se encontram temas tão diversos como o individualismo, o amor e a memória conjugal. Sua contribuição mais destacada seria a interpretação das mudanças masculinas a partir da concepção de Simmel sobre a assimilação do neutro pelo masculino. Desse ponto de vista, a perda de valor em âmbitos estritamente masculinos, como o da força física, não teria provocado uma perda de intensidade na dominação masculina, mas um deslocamento para outros domínios de competições entre homens, os quais, em princípio neutros, tornam-se locais de resistência da masculinidade, tal como pode ser o mercado de trabalho.

Em termos gerais, Welzer-Lang acredita que os grands sociologues foram interpelados pelas teóricas feministas, mas diferentemente delas, não tiveram que construir uma área de estudos e não puderam sequer perceber o quanto teoricamente seus trabalhos devem ao feminismo. Haveria aqui um importante fator geracional. Ao contrário dos homens pró-feministas, que se encontraram nos anos setenta com o feminismo no plano pessoal e político, antes de eventualmente se formarem cientistas, os grands sociologues apenas se depararam com o feminismo no campo teórico, e isso os levou a preservar um traço androcêntrico fundamental – a assimilação do humano ao masculino e a conseqüente obliteração do feminino. Segundo Welzer-Lang, a conseqüência simples disso é a dificuldade dos homens compreenderem as mulheres e as situações sociais das quais elas participam. Assim, ele promulga uma ruptura epistemológica com o androcentrismo, que deve ocorrer no plano pessoal e científico e implica uma maior compreensão das mulheres, assim como uma explicitação dos segredos da "casa dos homens", fundamentais para a manutenção da dominação.

Um pequeno parêntese se impõe agora. Há um capítulo desta segunda parte dedicado aos homens pró-feministas e ao queer. O que chama a atenção é o fato de Welzer-Lang se aproximar do queer como se fosse um objeto de estudos e não uma área de interlocução possível. O que se evidencia aqui é o cerco disciplinar que Welzer-Lang articula em torno de seu próprio trabalho e que já deveria ter chamado a atenção do leitor quando, ao tematizar a história da formação dos estudos das relações sociais de sexo, não menciona autoras francesas feministas de maior repercussão: Luce Irigaray, Julie Kristeva e Hélène Cixous, que certamente produziram interessantes reflexões sobre as masculinidades. O domínio no qual se move Welzer-Lang, embora indubitavelmente enriquecedor, é científico, onde estudos literários, psicanalíticos ou filosóficos carecem de lugar.

A terceira parte do livro traz duas pesquisas de Welzer-Lang sobre "os homens em casa". A primeira incide sobre as representações da violência entre homens e mulheres e a segunda, de caráter etnográfico, sobre a convivência de homens e mulheres dentro do lar. A primeira trouxe como principal conclusão um duplo padrão de representação da violência. Os homens têm maior consciência da violência que exercem sobre as mulheres do que elas têm da que deles recebem.

A segunda pesquisa traz também um duplo padrão representacional, onde as mulheres compreendem o trabalho doméstico de maneira integral e preventiva: a casa como um todo deve estar organizada. Os homens, através de uma lógica curativa e específica, iniciam o trabalho doméstico no momento em que ocorre uma desordem em um lugar concreto da casa. Em ambos os casos, a dupla representação favorece os homens, que exercem violência com maior facilidade, dada a maior dificuldade das mulheres em reconhecê-la, e que se beneficiam da lógica de ordem preventiva das mulheres que, ao evitar a desordem, sequer provocam nos homens o sentido da necessidade de trabalhar em casa. Neste último ponto, no entanto, Welzer-Lang percebe uma modificação de padrão, ao menos um diálogo maior entre homens e mulheres que esboça relações mais eqüitativas.

A última parte do livro, sobre sexualidade masculina, é composta por oito capítulos, cada um dos quais contendo a análise de uma pesquisa levada a cabo por Welzer-Lang: violência e sexualidade, modificações nas formas de prostituição, clubes de swing, novas formas de oferta de trabalho sexual, homofobia, abusos e interditos em prisão, bissexualidade masculina e virilidade e virilismo (sobre jovens em bairros africanos marginais de Toulouse).

Essas temáticas parecem identificar uma multiplicidade das formas de sexualidade por parte dos homens, no entanto, muito raramente parecem indicar uma forma mais eqüitativa de relações com as mulheres. A pesquisa sobre o swing é a que melhor representa os aspectos desenvolvidos nesta parte.

O swing define-se como prática sexual na qual participam um casal e uma ou mais pessoas. Inicialmente, poderíamos pensar que se trata de uma relação de caráter igualitário, onde os desejos não-monogâmicos das mulheres são reconhecidos como tão legítimos quanto os dos homens e onde há um propósito de realizá-los de maneira simétrica. No entanto, malgrado a existência de casais que procuram levar a cabo essa simetria, a maioria não o faz: com freqüência, os homens, através de diferentes tipos de chantagens, conseguem que suas companheiras acatem o swing. Nos clubes de swing, o ambiente é construído em torno do imaginário pornográfico, as mulheres são trocadas pelos homens, sendo que eles procuram envolvimentos apenas sexuais, enquanto as mulheres gostariam também de trocas afetivas, há estupros velados, inclusive coletivos, penetrações enganosas sem camisinhas, dentre uma longa série de violências.

As novas formas de sexualidade continuam sendo pautadas por uma lógica construída entre homens e a conclusão do livro mostra que o mesmo ocorre na ordem social como um todo. Sem cair em uma ordem simbólica fixa, Welzer-Lang reconhece que as práticas sociais da "casa dos homens" continuam a organizar a ordem social mais ampla, mediante uma série de estratégias, das quais a assimilação do masculino ao neutro, descrita por Singly, parece ser a mais eficaz: "O homem permanece em uma posição de poder. A dominação é mais soft, mas perdura" (340). No entanto, há também mudanças sociais que, provocadas por mulheres e mais recentemente por homens pró-feministas, criam espaços livres de opressão. Como esses espaços intervêm na dominação masculina e como esta lhes responde, é algo que não pode ser previsto por nenhuma projeção teórica, mas que deve ser analisado em suas formas sempre inéditas pelas e pelos cientistas sociais.

* Resenha de do livro de Daniel Welzer-Lang, Les hommes aussi changent... Paris, Payot, 2004.

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