terça-feira, 31 de agosto de 2010

As outras Chicas da Silva


As outras Chicas da Silva
por Eduardo França Paiva
A América portuguesa viveu enormes transformações a partir do século 18. Houve intenso processo de urbanização e aumento populacional, principalmente entre escravos e aqueles que tinham adquirido a carta de alforria, chamados de forros. Etnias encontraram-se, conviveram, coexistiram e, também, sustentaram conflitos. Nas cidades, muito mais que nas áreas rurais, a mobilidade física e social foi marcante. Aí, o universo cultural brasileiro consolidou-se baseado na diversidade, no hibridismo e na impermeabilidade dos costumes e das tradições, mesmo que, nesse último caso, mais no discurso que na prática. Homens e mulheres, livres, libertos e escravos construíram esse ambiente e dele usufruíram o quanto puderam e como puderam.
O ouro, de início, fomentou as mudanças, mas não foi ele o único elemento responsável por elas. Já nas primeiras décadas de ocupação das terras das Minas Gerais, gente de variada origem tentou fazer fortuna não apenas minerando, mas plantando roças e criando animais, oferecendo serviços de todo tipo e, sobretudo, praticando algum comércio. Nas vilas e arraiais das Minas tudo isso existiu, e nunca os escravos estiveram excluídos dessas possibilidades. Ruas, vielas, chafarizes e becos hospedaram milhares e milhares de escravos de ganho, de negras de tabuleiro, de coartados – cativos que pagavam sua alforria em parcelas, durante três ou quatro anos – e de forros. Enquanto alguns sobreviviam a duras penas, outros, e não foram poucos, conseguiam ganhar dinheiro, com o qual compravam a liberdade, casas, roupas, ferramentas de trabalho, jóias e também escravos.
As mulheres ocuparam lugar destacado nesse mundo urbano colonial. Quando escravas, várias conheciam, além de autonomia, alguma fortuna. Depois de libertas, muitas outras ascendiam social e economicamente, transformavam-se em importantes comerciantes e proprietárias de escravos, e engrossavam a camada média urbana que habitava a antiga capitania. Mulheres como essas foram responsáveis por grande parte do consumo de tecidos produzidos na Índia especialmente para o Brasil.
Ignácia Ribeira, forra, moradora no arraial do Pompeu em 1777, possuía uma venda de secos e molhados, um escravo, ouro lavrado em barra, um colar de corais e tinha pago uma quantia avultada por sua liberdade: cerca de 300 mil réis. Izabel Pinheira, angolana, morreu viúva, no arraial da Roça Grande, em 1741, possuindo sete escravos que ficaram alforriados e coartados no testamento deixado por ela. Entre as mais afortunadas, estava a crioula Bárbara de Oliveira, natural da Bahia, que se mudara para Sabará, onde morreu em 1766. Ela possuía 22 escravos (mais mulheres que homens – um conjunto de grande porte, incomum até mesmo entre proprietários brancos). Também tinha muitas jóias e roupas guardadas em canastras, como “uma saia de primavera de seda, uma de droguete preto e uma de seda passado de ouro”. Ela possuía, ainda, ouro lavrado e em pó e muitos créditos na praça.
É provável que a origem de sua fortuna estivesse ligada, de alguma forma, à prostituição e, talvez, por isso, ela, em testamento, alforriasse e coartasse quase todas as suas escravas e os filhos delas. Um último exemplo: a crioula Bárbara Gomes de Abreu e Lima, que morreu em Sabará, em 1735. Depois de comprar sua alforria, ela formou uma invejável fortuna e montou uma impressionante rede de relações sociais com alguns dos homens mais ricos e importantes da vila. Bárbara morava em um sobrado imponente, na rua principal, mas possuía outras casas. Tinha muito ouro em pó e lavrado, créditos às dezenas e negócios que não ficaram revelados espalhados por várias regiões de Minas e pela Bahia, de onde viera ainda cativa. De Sabará, ela tudo controlava. Tinha apenas sete escravos, o que não condizia com sua riqueza.
Já entre berloques e balangandãs, sua posição social aparecia mais explicitamente: dezenas de cordões de ouro, vários com corais engranzados, como se dizia na época; além de tecidos de várias partes do mundo. Bárbara era uma das muitas negras que, como Chica da Silva, a amante do contratador João Fernandes, ajudaram a decidir os rumos de Minas. Cada vez mais a nova historiografia demonstra que essas mulheres não eram exceções nem gente alienada. Elas não lutaram contra a escravidão dos irmãos de cor e de raça, mas, ao atuarem no dia-a-dia, ajudaram a constituir uma sociedade diferente.

Eduardo paiva é Professor da Universidade federal de minas gerais e autor de escravidão e universo cultural na colônia, da editora ufmg.

Revista Aventuras na História

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