sábado, 10 de julho de 2010

Os bondes da história


Os bondes da história

Com a palavra, o historiador
por Carlos Guilherme Mota


A Guerra Fria colocou os países da América Latina numa mesma moldura política e econômica, na qual Cuba era a única exceção. Somos filhos da Guerra Fria. Os regimes militares eram pautados pelo Pentágono, em Washington, com seus dirigentes e quadros formados em academias militares norte-americanas, muitos oficiais tendo sido treinados em métodos antiguerrilhas no Panamá. Do ponto de vista dos costumes e das mentalidades, dominava o American way of life; na economia a Escola de Chicago (com os Chicago boys); e nas ciências sociais os brazilianists, e especialistas no Peru, na Argentina, os mexicanists e assim por diante. Curioso notar esse efeito da Revolução Cubana de 1959: a América Latina, até então um “quintal dos EUA”, passou a ser região digna de preocupações político-militares dos governos norte-americanos. E preocupações econômicas, pois começaram a entrar pesadamente capitais de outros países, como os da Alemanha (Volkswagen etc.). Paradoxal foi o fato de muitos brazilianists liberais terem vindo para cá, estudado o Brasil e sua sociedade paupérrima, posicionando-se depois mais à esquerda, como Peter Eisenberg, Warren Dean, Richard Graham, Michael Hall, Joseph Love. Pois as realidades pesquisadas eram piores do que haviam estudado nos Estados Unidos. De “quintal” passamos a “atrasado”, depois a “subdesenvolvido”, depois a “periférico”, depois “potência emergente” no período da ditadura civil-militar, depois a país em fase de “redemocratização” etc. Mas a condição periférica nunca foi superada, até hoje. E o Brasil continua muito atrasado.

Na Argentina, o processo todo foi marcado por ditadura, aliás, crescente, passando por 1968: processo que se abre com o governo militar dos generais Ongania (1966), Levingston e Lanusse (este em 1973), depois a eleição do peronista Campora. Perón assume em 1973 e de 1974 a 1976, período em que sua mulher Isabelita assumiu, logo após sua morte. Aí teve início o período mais duro da história argentina, com mortes, desaparecimento e toda a conhecida barbárie. Lá, sempre houve reação às ditaduras, e 1968 foi mero episódio nessa história trágica.

No México, o Partido Revolucionário Institucional (PRI), renovador no início, tornou-se o partido que sufocou as liberdades civis, culminando com o trágico episódio de massacre de estudantes em 1968. No Peru, a guerrilha marca todo o ano de 1968, com importantes líderes inspirados no modelo cubano; mas a formação de militares nacionalistas e bem preparados conduziria ao governo do general Alvarado, com certos traços de reformismo de esquerda e com lideranças como a de Carlos Delgado (Darcy Ribeiro, exilado, colaborou com esses militares reformistas).

Repressão às idéias na cultura e resistência

A universidade e a produção cultural sofreram muito nesse período, em toda a América Latina. Foi um período, entretanto, no qual se descobriu a verdadeira dimensão do conservadorismo e atraso da região. Mas surgiu uma cultura de resistência, com variados matizes. De Eduardo Galeano, com as Veias abertas da América Latina, a Ferreira Gullar, ao “Teatro do Oprimido”, com a revista Civilização Brasileira e tantas outras publicações e manifestações no cinema, no teatro e na universidade. Houve resistência forte. Em verdade, uma redefinição de paradigmas, uma profunda mudança de mentalidade estava em curso, e “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso, sinaliza essa viragem. Mas não apenas Caetano, como as produções dos tropicalistas, a politização dos bossanovistas, a ampliação dos movimentos e partidos de esquerda dão o significado dessa nova época. Os professores cassados radicalizaram sua percepção de mundo, como Cardoso, que se tornou liberal-socializante e Florestan Fernandes, que radicalizou, indo às raízes da problemática latino-americana e brasileira: descobriu o modelo autocrático-burguês, que ainda está em vigência no Brasil de Lula. Ocorreu uma mudança de costumes, quebra das hierarquias rançosas nas universidades como em quase todas as esferas da vida social, inclusive da imprensa. O Brasil viveu um novo descobrimento, tão profundo como aquele posterior à Revolução de 1930 e ao Estado Novo, em que surgiram novos modos de pensar e viver, de namorar, de existir. A repressão fez despertar muitas lideranças, inclusive na Igreja da Reforma e da Contra-Reforma, indicando a existência de um país e de uma cultura nada “cordiais”, sem democracia racial e outros mitos culturais e políticos. Desapareceram os partidos tradicionais, afirmaram-se as empreiteiras, que souberam cooptar militares mal-formados e ingênuos. Levariam muito tempo para acordar…

Ruptura das forças conservadoras

Houve uma profunda mudança de mentalidade. Uma verdadeira revolução no plano dos valores, que ajudou a pôr abaixo a hipocrisia burguesa, que, aliás, está voltando com toda força. Não se deve esquecer que, antes de 1964, houve intensas tentativas de reformas de base, quando se discutiu a reforma agrária, a reforma urbana, a reforma universitária e outras. O capitalismo ainda cultivava, apesar de Brasília e de lideranças como a de Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e de outros estadistas e outras iniciativas, um capitalismo senzaleiro. As Ligas Camponesas, uma reação ao coronelismo primitivo, puseram a burguesia e os grandes latifundiários em polvorosa. A mudança de mentalidade ocorreu também no âmbito da família, com a pílula anticoncepcional, com discussões mais abertas sobre a questão da sexualidade, com a crise das profissões liberais, com a expansão da psicanálise, com a revolução educacional da metodologia de Paulo Freire (muito discutido e proibido, embora atual). O que se assistiu em 1964 e depois com o AI-5, em 1968, foi o rompimento das forças conservadoras da sociedade brasileira, que fizeram o que sempre fizeram: a contra-revolução preventiva, odiosa, anti-moderna, reacionária, falsamente moralista. Veja hoje o debate sobre as células-tronco ou sobre os índios. Cinco séculos depois, ainda não sabem as lideranças brancas o que fazer com os indígenas…

Lista de cassações e ideais de 1968

O episódio da Faculdade de Filosofia da USP foi mais do que um episódio: foi um acontecimento. Marcou o limite do pensamento radical de classe média, de que falava o professor Antonio Candido. Era uma escola progressista, de caráter interdisciplinar, onde nasceram quadros intelectuais de enorme expressão. E isso no coração de São Paulo, no cerne da USP; as outras Faculdades tradicionais não suportaram essa escola progressista (embora nem tanto, se olharmos com os olhos de hoje). Tanto é que a lista de cassações não veio de Brasília, mas de um trio de professores das três escolas tradicionais; a de Medicina, a de Direito e a Politécnica. O Livro Negro da USP detalha essa história triste. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras foi partilhada, aviltada, e com o reitor Helio Lourenço cassado, ela foi cortada, transferida para o campus do Butantã.

O fato é que nossa Faculdade propunha temas fortes, dentro de uma linha revisionista, contra a tradição e com aberturas teóricas e temas fortes: racismo, natureza do capitalismo, análise das heranças coloniais em nossas instituições, o lugar da mulher, do negro, do índio, do imperialismo. Era demais para o pensamento conservador. Mesmo amputada, continuou a produzir, e bem, com vigor, embora sem aquela flama dos anos 1960.

Em 1968 discutíamos temas universais, e não apenas locais. Havia uma preocupação com a questão nacional, com a Federação, com a dominação externa (sobretudo norte-americana), com a dependência (conceito elaborado naquela década), com o autoritarismo, com a descolonização, com a censura e com a renovação das religiões, com a urbanização etc. Note-se que se vivia em um contexto histórico e religioso posterior à renovação do papa João 23, com reflexos em outros ramos do cristianismo e do pensamento social. Do ponto de vista externo, a Guerra do Vietnã indicava qual o lado correto da História, e a luta armada aparecia como uma das poucas saídas para o combate à violência do sistema capitalista de então, tal como era concebido. Na periferia, sobretudo, tratava-se do capitalismo selvagem, que, aliás, está vitorioso em nosso país.

Os ideais de 1968 permanecem vivos enquanto houver tamanha opressão da classe burguesa tacanha (nem calçadas ela constrói, preferindo as da França ou de Miami) e do coronelato que agora usa gravatas Hermès compradas nos duty free (por vezes com dinheiro público). É o “pudêr” dos severinos, ainda. Do DEM (exceto três ou quatro exceções) e dos partidos de direita nem falo, pois não têm compromisso com o futuro do país. São a anti-nação. Veja só: Maluf é candidato à prefeitura de São Paulo! Como não evocarmos os valores éticos de 1968, que adquirem atualidade com esses jurássicos?

Novas forças sociais e Herdeiros de 1968

A esquerda mudou de paradigmas. Se os partidos tradicionais se esvaíram, outras forças sociais adquiriram expressão crescente. Veja a questão ambiental, ou a das células-tronco, ou do aborto e seus notáveis e bravos defensores. Há um novo direito em construção, com jovens advogados, promotores, juízes, jornalistas, professores em todos os graus, médicos, urbanistas. Um Fernando Gabeira, expressão de 1968, enfrentou o pior coronelismo na Câmara dos Deputados, enquanto ex-membros do velho MDB ou do PCB ficaram quietos ou até condenaram o iracundo deputado. Gente como Marina Silva, Chico Alencar e tanto outros permanecem fiéis a princípios e até renovados, indicando os caminhos novos para o país. País tão desorientado, em que a universidade está tardando demais em reassumir seu papel, como propunham Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Florestan, Paulo Freire e muitos outros mestres, nossos ídolos de 1968.

Os legítimos herdeiros de 1968 são todos aqueles que ainda cultivam a inconformidade com a situação de miséria física, econômica, social e mental do Brasil de hoje. O protesto deve continuar, sobretudo quando índices oficiais mostram que o abismo social entre ricos e pobres não se alterou desde o século 18 aos dias atuais. Que esperar, sem protesto veemente e permanente? Frei Caneca perguntava, às vésperas de seu fuzilamento: “Para quando se guardam os jovens deste país, que não se manifestam?” As lideranças de uma nova sociedade civil começam a despontar, bem diversa daquela do fim da Segunda Guerra e dos tempos do JK, e mesmo dos tempos da República de São Bernardo. O petismo parece ter perdido o ponto, a conexão com o lulismo, o que é grave; e o tucanato aguou, está virando geléia geral. O PMDB, com seu fisiologismo, lembra o centrão da República do Diretório (1795-1799) da Revolução Francesa, onde todos os compromissos espúrios e conciliações eram permitidos, massacrando movimentos populares e dos jacobinos de classe média, coonestando o que tem de pior na tradição política brasileira. E o PSOL ainda é uma promessa.

Por uma nova Assembléia Nacional Constituinte

Apesar de tudo, o Brasil melhorou nos últimos dois mandatos. Não muito, como deveria, pois o presidente Cardoso não foi tão fundo, não radicalizou nem fez o uso do poder que detinha para as reformas estruturais. E poderia fazê-lo, pois leu livros sobre Roosevelt e De Gaulle (já não digo obras de socialistas, que também leu, no famoso Grupo do Capital). E o presidente Lula faz o melhor que pôde, mas não parece ter lido Os donos do poder, de Raymundo Faoro, ao menos os últimos capítulos, apesar de ter convidado o jurista para vice em sua chapa eleitoral e de celebrá-lo em várias ocasiões… Aliás, a questão não é só ler, mas ler e aplicar, pois nossos problemas são enormes.

Em 1970 éramos 90 milhões de habitantes, população que dobrou em 25 anos. Providenciar habitação, comida, saúde e educação de qualidade para tanta gente é tarefa para grandes estadistas. Apesar de tudo, há uma generosidade na maior parte dessa população sofrida, que tem uma sabedoria que não se confunde com o noticiário da violência generalizada, sobretudo nas anticidades de São Paulo e Rio; trata-se de um tipo de resistência e, nesse sentido, pode ser que o Brasil venha a dar certo, embora a longuíssimo prazo. Mas… se houver desde já radicalização das forças vivas do país.

Ou seja, um novo novo sindicalismo, um acordar da imprensa que está praticamente amordaçada, uma revitalização da universidade e até das Forças Armadas. Pois a Questão Nacional está de volta à agenda do país: a nacionalidade está se afundando na cultura do marketing e na sociedade do espetáculo. Estamos andando de costas, na tradição curupira.

Penso que está chegando a hora de uma Assembléia Nacional Constituinte para valer, para tocarmos as reformas que estão paradas ou no meio do caminho, reformas de meia-confecção. Não de um Congresso Constituinte aguado, cheio de compromissos com tudo e com nada. Mas sim de uma Assembléia Constituinte de verdade, histórica. Socializante para valer, antes que percamos mais uma vez o bonde da História.

Carlos Guilherme Mota é historiador, professor da USP, da Universidade Mackenzie, e da Escola de Direito FGV-SP. É autor de História do Brasil, com Adriana Lopez (Ed. Senac), Ideologia da cultura brasileira (Ed. 34) e Idéia de revolução no Brasil e outras idéias (Ed. Globo)

Revista CULT

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