sexta-feira, 30 de julho de 2010

ENTENDENDO O FOLCLORE


ENTENDENDO O FOLCLORE
Maria Laura Cavalcanti*
março/2002


A palavra Folclore provém do neologismo inglês folk-lore (saber do povo) cunhado por Williem John Thoms, em 1846, para denominar um campo de estudos até então identificado como "antigüidades populares" ou "literatura popular".
Nesse sentido amplo de "saber do povo", a idéia de folclore designa muito simplesmente as formas de conhecimento expressas nas criações culturais dos diversos grupos de uma sociedade. Difícil dizer onde começa e onde termina o folclore, e muita tinta já correu na busca de definir os limites de uma idéia tão extensa. É o frevo, o chorinho, o xote, o baião, a embolada, mas será também o samba, o funk, o rock? É o natal, a páscoa, o Divino, o Boi-Bumbá, mas será também o desfile das escolas de samba? É o artesanato em barro, madeira, trançado, mas será também a arte de Louco ou de Geraldo Teles de Oliveira?
Pensamos e pesquisamos um bocado sobre o assunto. Chegamos à conclusão de que mais importante do que saber concretamente o que é ou não folclore é entender que folclore é, antes de qualquer coisa, um campo de estudos. Isso quer dizer que a noção de folclore não está dada na realidade das coisas. Ela é construída historicamente, e portanto a compreensão do que é ou não folclore varia ao longo do tempo. Para se ter uma idéia, aqui no Brasil, no começo do século, os estudos de folclore incidiam basicamente sobre a literatura oral, depois veio o interesse pela música, e mais tarde ainda, lá para meados do século, o campo se amplia com a abordagem dos folguedos populares. Para entender o folclore é preciso conhecer um pouco de sua história.

I
Os estudos de folclore são parte de uma corrente de pensamento mundial, cuja origem remonta à Europa da segunda metade do século XIX. Ao mesmo tempo em que procuravam inovar, esses estudos são herdeiros de duas tradições intelectuais que se ocupavam anteriormente da pesquisa do popular: os Antiquários e o Romantismo.
Os Antiquários são os autores dos primeiros escritos que, nos séculos XVII e XVIII, retratam os costumes populares. Colecionam e classificam objetos e informações por diletantismo, e acreditam que o popular é essencialmente bom.
O Romantismo, poderosa corrente de idéias artísticas e literárias, emerge no séc. XIX em associação com os movimentos nacionalistas europeus. Em oposição ao Iluminismo, caracterizado pelo elitismo, pela rejeição à tradição e pela ênfase na razão, o Romantismo valoriza a diferença e a particularidade, consagrando o povo como objeto de interesse intelectual. O povo, para os intelectuais românticos, é puro, simples, enraizado nas tradições e no solo de sua região. O indivíduo está dissolvido na comunidade.
A trajetória dos estudos de folclore no Brasil mantém relações com os debates do contexto intelectual europeu. Essas duas tradições são incorporadas pelos estudiosos brasileiros que procuram também conferir cientificidade a seus trabalhos. Entre os pioneiros desses estudos no país, estão autores como Silvio Romero (1851-1914), Amadeu Amaral (1875-1929) e Mário de Andrade (1893-1945). Sílvio Romero é célebre pelas coletas empreendidas na área da literatura
oral e pelo desejo, de origem positivista, de uma visão mais científica e racional da vida popular. Amadeu Amaral enfatiza a necessidade de uma coleta cuidadosa das tradições populares, e empenha-se pelo desenvolvimento de uma atuação política em prol do folclore, visto como depositário da essência do "ser nacional".
Mário de Andrade procura conhecer e compreender o folclore em estreito diálogo com as ciências humanas e sociais então nascentes no pais. Para ele, o folclore, expressão da nossa brasilidade, ocupa um lugar decisivo na formulação de um ideal de cultura nacional.

II
A década de 1950 transforma o patamar em que se encontravam até então esses estudos. Ela marca o início de uma ampla movimentação em torno do folclore reunindo a sua volta nomes como Cecília Meireles, Câmara Cascudo, Gilberto Freire, Artur Ramos, Manuel Diégues Júnior.
Institucionalmente, essa movimentação é articulada pela Comissão Nacional do Folclore, do Ministério do Exterior, e vinculada à UNESCO (organismo da Organização das Nações Unidas). A Comissão é liderada por Renato Almeida, diplomata e estudioso da música popular. No contexto do pós-guerra, a preocupação com o folclore enquadra-se na atuação em prol da paz mundial. O
folclore é visto como fator de compreensão entre os povos, incentivando o respeito das diferenças e permitindo a construção de identidades diferenciadas entre nações que partilham de um mesmo contexto internacional. O Brasil de então orgulhava-se de ser o primeiro país a atender à recomendação internacional no sentido da criação de uma comissão para tratar do assunto.
O conjunto das iniciativas desenvolvidas era designado pelo nome de Movimento Folclórico. A Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB), criada em 1958 no então Ministério da Educação e Cultura, é o apogeu dessa movimentação.
A Campanha é um organismo nacional destinado a "defender o patrimônio folclórico do Brasil e a proteger as artes populares". Ela traz uma proposta de atuação urgente: no folclore se encontram os elementos culturais autênticos da nação, porém o avanço da industrialização e a modernização da sociedade representam uma séria ameaça. Por essa razão, a cultura folk deve ser intensamente divulgada e preservada.
A Campanha participa dos debates intelectuais do país em intercâmbio com as ciências sociais que se institucionalizam no mesmo período. Fomenta pesquisas sobre o folclore em diferentes regiões, bem como sua documentação e difusão através da constituição de acervos sonoros, museológicos e bibliográficos. Data dessa época o embrião do que viria a ser mais tarde o Museu de Folclore Edison Carneiro e a Biblioteca Amadeu Amaral, do atual Centro Nacional de Folclore
Cultura Popular.

III
De lá para cá, os processos de modernização da sociedade se aprofundaram, a televisão entrou decisivamente no cotidiano nacional, e ao contrário do que supunha a Campanha em seus primórdios, o folclore não acabou. O país transformou-se econômica e politicamente. Mudaram também os ideais de conhecimento.
Como já diziam alguns folcloristas, o folclore nasce e cresce também nas cidades: é dinâmico, transforma-se o tempo todo, incorporando novos elementos. O campo dos estudos de folclore transforma-se também acompanhando a evolução do conhecimento no conjunto das ciências humanas e sociais. A noção de cultura não é mais entendida como um conjunto de comportamentos concretos mas sim como significados permanentemente atribuídos. Uma peça de cerâmica é mais do que o material de que é feita, e a técnica com que é trabalhada. Uma festa é mais do que a sua data, suas danças, seus trajes e suas comidas típicas. Elas são o veículo de uma visão de mundo, de um conjunto particular e dinâmico de relações humanas e sociais. Não há também fronteiras rígidas entre a cultura popular e a cultura erudita: elas comunicam-se permanentemente. O compositor erudito Heitor Villa Lobos reelaborou musicalmente cantigas de ninar tradicionais. Muito freqüentemente, o enredo do desfile carnavalesco de uma escola de samba elabora numa outra linguagem temas eruditos. Na condição de fato cultural, o folclore passa a ser compreendido dentro do contexto de relações em que se situa.
Essa abordagem contextualizadora, que faz do objeto um veículo de relações humanas, é a proposta do Museu de Folclore Edison Carneiro, cuja exposição permanente, inaugurada em 1994, se pretende uma pequena mostra do que está vivo e se transformando no dia-a-dia.


*A antropóloga Maria Laura Cavalcanti, Profª Drª do Depto. de Ciências Sociais/IFCS/UFRJ, ex-pesquisadora do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, participa atualmente da Associação de Amigos do Museu de Folclore Edison Carneiro.

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