quinta-feira, 8 de julho de 2010

Em busca do Eldorado africano

No século XIX, os relatos sobre Timbuktu, cidade repleta de riquezas às portas do deserto do Saara, fascinaram os europeus. A procura pela vila perdida abriu caminho para a conquista do interior do continente
por Françoise Labalette

Biblioteca Nacional da França, Paris / (C) The Art Archive / Other Images

A cidade retratada no caderno de viagem de Caillié

No início do século XIX, o interior da África ainda era um universo desconhecido para os europeus. Instalados havia séculos no litoral, eles não tinham se aventurado por aquelas terras, e as informações que tinham daquela parte do continente se resumiam aos relatos dos gregos antigos e dos viajantes árabes que exploraram a região a partir da Idade Média.

Entre esses relatos destacava-se a Descrição da África, obra de um viajante muçulmano chamado Hasan al-Wazzan (1488-1548). Nascido na Espanha e radicado no Marrocos, ele ficou conhecido como Leão, o Africano. Em seu texto, Hasan descreve a visita que fez a Timbuktu, principal entreposto das caravanas comerciais que cruzavam o deserto do Saara no século XVI. O relato, que fala de uma cidade maravilhosa, próspera, misteriosa e atraente, fascinou os europeus.

A única pista para esse eldorado africano era o curso do rio Níger, mas o seu traçado ainda era um enigma para os europeus nas primeiras décadas do século XIX. Não é à toa que a busca pelas fontes do Níger mobilizava exploradores desde 1795, quando a sociedade científica inglesa African Association financiou uma expedição liderada pelo médico escocês Mungo Park.


Reprodução

O francês René Caillié, que encontrou em 1828 a cidade lendária

Partindo da Gâmbia, em julho de 1796, Park chegou ao Níger na altura da cidade de Ségou, no atual Mali, constatou que o rio corria para o leste. Em uma segunda expedição, organizada em 1805, ele percebeu que o curso do rio, depois de se dirigir ao norte, fazia uma curva e rumava para o golfo da Guiné. Mungo Park e seus companheiros, porém, morreram naquele mesmo ano nas corredeiras de Boussa, na atual Nigéria. O mistério da foz do Níger só seria desvendado em 1830, quando os irmãos Richard e John Lander finalmente chegaram ao delta do rio.

Enquanto isso, os franceses preparavam sua própria expedição pela região. No dia 3 de dezembro de 1824, a Sociedade de Geografia do país lançou o “Estímulo a uma viagem a Timbuktu e ao interior da África”, oferecendo um prêmio ao primeiro viajante que chegasse à cidade do deserto. A convocação atraiu a atenção de um jovem chamado René Caillié, então com 25 anos. Fascinado pelas aventuras de Robinson Crusoé, Caillié já havia viajado duas vezes para a África e vivido por oito meses entre os mouros braknas no norte do Senegal, onde aprendera árabe e entrara em contato com os costumes muçulmanos.

Munido dessa bagagem cultural, René Caillié aceitou o desafio de partir em busca de Timbuktu. Começou sua viagem pelo norte da atual República da Guiné, onde desembarcou em março de 1827. Em 19 de abril, iniciou a marcha rumo ao interior acompanhando o curso do rio Nunez a partir da vila de Kakondy, próxima à cidade de Boké. Levava trezentos francos em ouro e prata, remédios, pólvora, papel, fumo, vidrilhos, âmbar, coral, lenços de seda, tesouras, facas, espelhos, cravo-da-índia, três peças de tecido de algodão azul e um guarda-chuva para se proteger do sol. E ia acompanhado de um pequeno grupo de africanos da etnia dos mandingos.


Biblioteca Nacional da França, Paris

Além da paisagem, o viajante retratou a população local, como essa mulher e seu filho em Timbuktu

Não levava consigo nenhum instrumento de astronomia nem relógio, apenas duas bússolas. Apresentava-se como muçulmano para não arriscar ser expulso ou mesmo assassinado como europeu infiel. Vestia o coussabe, uma blusa sem mangas de pano azul, e sandálias. Adotou o nome de Abdala, “escravo de deus”, e se fazia passar por pobre para não despertar a cobiça dos locais.

Embrenhou-se na floresta tropical de Fouta-Djalon, ainda na atual Guiné. Em terras mandingas, conheceu a fome, contraiu febres, e machucou seriamente os pés. Ao chegar a Tiemé, no extremo norte da atual Costa do Marfim, foi obrigado a parar, pois adoeceu de escorbuto. Durante cinco meses, de agosto de 1827 a janeiro de 1828, uma “boa negra velha”, segundo suas palavras, tratou dele, o que lhe possibilitou seguir viagem. Em março, chegou a Djenné, grande cidade localizada no atual Mali, com um florescente comércio. A partir de então, continuou seu périplo pelo rio Níger.

Finalmente, no dia 20 de abril de 1828, entrou em Timbuktu. Ao avistar a cidade, ficou simultaneamente feliz e decepcionado. Estava contente por ter atingido seu objetivo, mas terrivelmente frustrado por se ver diante de um local muito menos fastuoso, populoso e próspero do que aquele descrito pelos viajantes medievais. De lá saiu em 4 de maio de 1828, ansioso em anunciar na França que chegara à misteriosa cidade. Seu retorno pelo Saara foi uma provação terrível. Caillié se uniu a uma caravana formada por 600 dromedários e caminhou por 1.200 quilômetros ao longo do deserto.


Biblioteca Naiconal da França, Paris

No caderno de Caillié, a mesquita da cidade é representada com um detalhado plano de sua localização.

No dia 9 de maio, chegou ao lugar onde morrera o major inglês Gordon Laing, primeiro europeu a entrar em Timbuktu, em 1826. A “longa marcha” de René Caillié terminou em Tanger em agosto de 1828. No dia 27 de setembro, finalmente embarcou para a França. “O vencedor de Timbuktu”, o primeiro homem a abrir caminho pelo Saara, desembarcou em Toulon em 8 de outubro de 1828 e foi internado em quarentena no lazareto de Saint-Mandrier. Lá escreveu duas cartas a membros da Sociedade de Geografia, uma a Edmé François Jomard e outra a Georges Cuvier.

O explorador teve de dar provas de suas descobertas e responder às perguntas dos membros da Sociedade. Convencidos, estes decidiram, no dia 27 de novembro, que ele merecia o prêmio pelo descobrimento mais importante do ano em geografia. No dia 5 de dezembro de 1830, diante de toda a Paris erudita, o ministro da Marinha da França entregou a René Caillié o prêmio de cerca de 9 mil francos e a Legião de Honra.

Apesar da glória, o resto da vida do explorador não foi fácil. A deposição de Carlos X e a ascensão de Luís Felipe ao trono da França, em 1830, mudaram a situação política do país, e Caillié precisou lutar para obter a prometida pensão anual de 7 mil francos. Atormentado pela doença e pelo desânimo, deixou Paris e voltou para sua terra natal, onde foi prefeito de um pequeno município. O desejo de retornar à África, no entanto, o dominava. Ele tentou conseguir patrocínio para uma nova expedição, mas não teve sucesso. Debilitado, morreu no dia 17 de maio de 1838, após cinco dias de febre e agonia.


(C)Oversnap / Istockphoto

A grande mesquita de Djenné, cidade que impressionou o explorador francês pela prosperidade de seu comércio

René Caillié entrou para a história por duas proezas: foi o primeiro europeu a chegar a Timbuktu e voltar vivo para casa, e o primeiro a atravessar o deserto do Saara. Para o antropólogo francês Marcel Griaule, ele foi um exemplo de explorador pacífico. No entanto, contra sua vontade, os detalhes oferecidos por Caillié contribuíram para a conquista militar do oeste da África.

Ao se instalarem na Argélia, em 1830, os franceses começaram a organizar expedições pelo Saara a partir do extremo sul da nova colônia. A partir de 1854, essa expansão passou a ser acompanhada por operações armadas lideradas pelo general Louis Faidherbe, incumbido de estabelecer o domínio francês na região do Níger. Os territórios conquistados foram agrupados, em 1904, em uma grande colônia batizada de África Ocidental Francesa, que incluía os atuais Senegal, Mauritânia, Mali, Guiné, Costa do Marfim, Burkina Fasso, Benin e Níger.

Em 1893, a bandeira francesa tremulava em Timbuktu, mas a cidade já não era nem sombra do que fora no passado. Reduzida a mera guarnição, caiu no esquecimento, assim como o nome de René Caillié. Ele que suportou tanto sofrimento para provar a magia de Timbuktu foi, paradoxalmente, o primeiro a desfazer sua mitologia.

O CADERNO DE VIAGEM DE RENÉ CAILLIÉ
O manuscrito original do seu diário, parcialmente conservado, é a prova tangível da aventura vivida por René Caillié. Essas páginas amareladas, encardidas, manchadas de suor, às vezes rasgadas ou amassadas, com linhas espremidas escritas a lápis e repassadas a tinta, apresentam um roteiro, mais que um relato metódico. Além das notas de Caillié, o caderno reúne desenhos feitos in loco pelo autor, que incluem alguns raros esboços de localização, particularmente de Djenné e do lago Débo, e uma cena etnográfica única representando uma mulher e o filho em Timbuktu.

A versão definitiva do manuscrito foi redigida no ano de 1829, em colaboração com Jomard. Seu título é Diário de uma viagem a Timbuktu e a Djenné, na África Central, precedido de observações colhidas entre os mouros braknas, os nalus e outros povos, durante os anos de 1824, 1825, 1826, 1827, 1828, com uma carta itinerária e observações geográficas do sr. Jomard, membro do Instituto.

Publicada em 1830, a obra começa com uma introdução de 20 páginas e a primeira parte do relato (capítulos I a IV) trata da estada de Caillié entre os mouros braknas. A segunda parte, que tem como ponto de partida 19 de abril de 1827, traz a descrição da expedição desde a costa oeste até Tânger. O mapa publicado junto com as notas foi desenhado e comentado por Jomard.

Ao longo das páginas, é possível identificar uma preocupação antropológica do autor, evidenciada pelas observações minuciosas dos povos encontrados: fulas, mandingos, bambaras, tuaregues e mouros. Caillié manifestava respeito tanto pelo Islã quanto pelo animismo, e pesquisou de maneira metódica os costumes, crenças e práticas dessas populações.

Em seu diário, o explorador francês trata do comércio e da economia locais, mostra quais eram os circuitos de circulação das moedas europeias e dos cauris (conchas que serviam de moeda de troca na região), e analisa a organização sociopolítica dos povos da região, além de fazer um grande levantamento da flora africana.

Françoise Labalette é jornalista e historiadora

Revista História Viva

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