segunda-feira, 21 de junho de 2010

O sorriso de voltaire


O sorriso de voltaire
Inimigo mortal da intolerância, o irreverente filósofo francês ressurge numa biografia que mostra como ele foi capaz de usar a opinião pública contra as injustiças da velha França
por Fernando Eichenberg
Nas comemorações do centenário da morte de Voltaire, em 30 de maio de 1878, o poeta, escritor e político Victor Hugo declarou, diante da platéia reunida no Théâtre de la Gaîté, em Paris: “Hoje, há 100 anos, um homem morria. Ele morria imortal”. Essa imortalidade atribuída ao célebre filósofo – e, em vida, perseguida pelo próprio Voltaire – se traduz nos títulos pelos quais até hoje ele é conhecido: pai-fundador da Revolução Francesa, apóstolo da tolerância, crítico do fanatismo religioso e defensor dos oprimidos.

Mas Voltaire não foi apenas isso. “O homem é devorado pela ambição. Seu orgulho e seu temperamento rancoroso podem conduzi-lo aos piores excessos e às piores injustiças. Todas as suas retratações, simulações e adulações aos poderosos não são ditadas por nobres sentimentos”, escreve o historiador francês Pierre Milza na recém-lançada biografia Voltaire. Mas, para o autor, esses defeitos são mínimos perto do combate do filósofo a serviço da razão, da verdade e dos direitos humanos.

Se Voltaire morreu imortal, ele veio ao mundo em toda a sua mortalidade. “Eu nasci morto”, disse ele sobre seus difíceis primeiros dias. Para contrariar os que lhe deram, em 1694, não mais do que uma semana de vida, fez questão de usar toda sua verve e engajamento até a velhice. Conta-se que, aos 3 anos de idade, François-Marie Arouet – que adotaria o famoso pseudônimo apenas em 1718 – sabia recitar de cor o poema anti-religioso “La Moïsade”, que circulava clandestinamente. Certamente trata-se de uma lenda, mas é verdade que o jovem Arouet foi cedo introduzido aos rudimentos da versificação por seu padrinho, o abade Châteauneuf.

No colégio Louis-le-Grand, o mais prestigiado dos estabelecimentos administrados pelos jesuítas franceses, o estudante descobriu a paixão pelo teatro. Graças a seu gosto pela poesia e a sua precoce aptidão em manejar o verbo e a rima, em pouco tempo o ambicioso e dedicado aluno afirmou sua superioridade sobre os demais colegas, representantes das grandes famílias da França. Ali já se revelava sua sede pela distinção, uma obsessão do filho de burgueses em busca de reconhecimento entre os nobres. Ao término de sua vida escolar, em 1711, seu destino já estava decidido: a carreira em letras.

Mas seu gosto pela provocação lhe faria pagar caro. Por causa de versos satíricos contra a família real, o jovem aspirante a poeta amargou 11 meses na prisão da Bastilha. Após a libertação, o jovem autor obteve o perdão real e foi recebido por Philippe d’Orléans, regente responsável por sua detenção. Como prova de sinceridade, o nobre lhe propôs o pagamento de uma pensão alimentar. Na resposta, a língua ferina de Voltaire não se conteve: “Eu agradeço Vossa Alteza por querer se encarregar de minha alimentação, mas eu vos suplico de não se encarregar mais de minha moradia”. Essa atitude irreverente acompanharia o filósofo em todos os seus embates – fossem eles pessoais ou universais.

Em pouco tempo, Voltaire tornou-se um escritor aclamado em toda a Europa. Mas o que os leitores atuais conhecem de sua produção literária? À parte Cândido ou o Otimismo e Zadig ou o Destino (sua famosa resposta ao Discurso sobre a Origem e os Fundamentos de Desigualdade entre os Homens, de seu desafeto Jean­Jacques Rousseau), além de alguns trechos de ensaios históricos e filosóficos, quase nada, responde Pierre Milza. Mas por que uma obra tão vasta tem sido, em sua maior parte, ignorada? Simples: não é o escritor de sucesso do século 18 que interessa aos contemporâneos, mas o defensor dos direitos humanos, o “amigo da humanidade”, o símbolo do Iluminismo. “Para nós, homens e mulheres do século 21, é esse Voltaire que habita nossa memória”, diz Milza.

Um caso universal

Todas as lutas travadas pelo filósofo podem, de certa forma, ser simbolizadas pelo debate em torno do Caso Calas. Em 9 de março de 1762, o comerciante Jean Calas foi condenado em Toulouse a ter os membros partidos, ser estrangulado e queimado na fogueira. O réu fora acusado de matar o filho, encontrado enforcado na casa da família. Na verdade, a morte havia sido causada por suicídio – Calas escondera o fato para evitar o tratamento infame reservado na época aos cadáveres de quem se matava. De nada adiantou, depois, explicar isso à Justiça.

Em um julgamento repleto de falhas, o veredicto já havia sido decidido antecipadamente: Calas, protestante convertido, tinha assassinado o filho porque o jovem era católico (vale lembrar que a França era marcada por uma rígida intolerância religiosa). Um caso perfeito para a indignação de Voltaire, crítico feroz do fanatismo, não importa sob que religião estivesse acobertado. Ao tomar conhecimento dos detalhes do processo, menos de um mês depois da execução de Calas, o filósofo se lançou na maior batalha de sua vida, usando para fins políticos a notoriedade adquirida por meio de sua obra.

Durante três anos, de seu reduto na vila de Ferney (hoje Ferney-Voltaire, no leste da França), ele escreveu centenas de cartas a sua rede de correspondentes influentes – nobres, ministros, embaixadores, escritores, homens de finanças e até membros da Igreja – para mobilizar o máximo de pessoas pela sua causa: a revisão do processo de Jean Calas. Em vez de se dirigir à autoridade máxima como cortesão respeitoso, seguindo o costume da época, Voltaire resolveu agitar a sociedade civil para fazer pressão sobre o poder. Segundo Pierre Milza, esse uso da opinião pública é a grande inovação introduzida por Voltaire no século do Iluminismo. O filósofo surge como o intelectual autônomo, “uma figura que vai marcar durante mais de dois séculos a história política e cultural da Europa”.

Para Voltaire, o Caso Calas trazia um significado universal. Não se tratava apenas de obter a reabilitação de um inocente, mas de questionar as razões que levaram a sua condenação equivocada, baseada no fanatismo e na intolerância. Voltaire não poupava de ataques as grandes religiões e o que ele chamava de “despotismo do espírito”. Ao mesmo tempo, entretanto, dizia-se crente em Deus – no sentido de uma “religião natural” que via um grande “relojoeiro” por trás do Universo.

Voltaire acabou vitorioso no Caso Calas, derrotando os magistrados e o clero: a reabilitação póstuma foi obtida e os juízes que haviam condenado o inocente, afastados. Em 30 de março de 1778, depois de duas décadas em Ferney, o filósofo retornou a Paris, onde foi acolhido em triunfo e ovacionado por onde passava. Foi a apoteose final do combatente público. Voltaire morreu na capital francesa em 30 de maio, no hotel de Villette, sem poder assistir aos primeiros sinais da era revolucionária que se aproximava.

Apesar de não ter visto a queda da Bastilha, que ocorreu pouco mais de 11 anos após sua morte, Voltaire tinha previsto que a França estava prestes a passar por uma grande transformação. Catorze anos antes da Revolução Francesa, ele escrevera: “Tudo o que vejo lança as sementes de uma revolução que ocorrerá de qualquer maneira e da qual não terei o prazer de ser testemunha. Os franceses chegam tarde, mas acabam chegando”. Mas é preciso ter cuidado, alerta Pierre Milza: quando Voltaire fala de “revolução” em suas obras históricas, nunca é para evocar uma transformação brutal e repentina, mas, pelo contrário, para descrever um processo demorado de mutação profunda. Por isso, Milza é cauteloso com os que definem o filósofo como “precursor” da Revolução de 1789: “As mudanças por ele conclamadas não visam a destruir a monarquia, mas sim rejuvenescê-la e reforçá-la ao livrá-la das escórias que paralisam sua ação. Voltaire não é um fervente partidário da República. Seu ideal permanece o de uma monarquia à inglesa”.

Para Milza, o rumo que a Revolução tomou a partir de 1792 (com o período do Terror e a profusão de execuções na guilhotina) teria horrorizado o Voltaire defensor dos direitos humanos. E na França atual, não por acaso, a memória do filósofo tem sido invocada com freqüência, diante de crescentes sinais de intolerância. Um pouco mais do espírito voltairiano talvez não fizesse mesmo mal aos franceses.

Polemista eterno
Voltaire foi alvo de protestos de muçulmanos em 2005
Em 8 de dezembro de 2005, a tranqüilidade do pacífico vilarejo francês de Saint-Genis-Pouilly, na fronteira com a Suíça, foi quebrada por uma tentativa de censura. Associações muçulmanas queriam proibir a peça O Fanatismo ou Maomé, o Profeta. O texto que causou tanta comoção tinha mais de 260 anos de idade: foi escrito em 1741 por Voltaire, ironicamente também autor do Tratado Sobre a Tolerância (um libelo contra a intolerância, o fanatismo e o ódio). Para completar, o episódio ocorreu logo em Saint-Genis-Pouilly, vizinha a Ferney-Voltaire – cidade que foi o lar do filósofo durante 18 anos e mudou de nome em sua homenagem. Na época, Hafid Ouardiri, porta-voz da Mesquita de Genebra, na Suíça, atravessou a fronteira para exigir o cancelamento da leitura teatral do texto por considerar a peça “blasfematória”. Em um comunicado, as associações muçulmanas definiram a peça como “um ataque explícito à paz islâmica”. O prefeito de Saint-Genis-Pouilly, Hubert Bertrand, não cedeu: “Somente o fato de vir nos dizer que não temos o direito de ler este texto é uma agressão. Quer o senhor goste ou não, nós vivemos em uma república. O direito de expressão é importante”, respondeu. A leitura da peça foi realizada na data prevista, mas sob proteção policial. Manifestantes contrários ao evento incendiaram um carro, lixeiras e a entrada de uma escola. Ao tentar impedir os atos de vandalismo, bombeiros foram atacados com pedras. Para o prefeito de Saint-Genis-Pouilly, o fato, mesmo que protagonizado por uma minoria, foi um “alerta”. “A questão não é ser anti-religioso ou antimuçulmano, mas defender a laicidade e o direito de cada um”. Se fosse vivo, Voltaire teria certamente muito o que dizer aos nossos contemporâneos.

A obra
Voltaire, Pierre Milza, Perrin, 2007.

Revista Aventuras na História

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