Mestre em compor personagens femininas, José de Alencar escandalizou os moralistas da época com suas heroínas sensuais e independentes
Valdeci Rezende Borges
O romancista e dramaturgo José de Alencar (1829-1877), que até hoje desfruta de boa popularidade, foi visto como imoral em sua época e em parte do século XX, irritando conservadores e moralistas pelas cenas, inclusive de erotismo, que produziu, especialmente em perfis de mulheres, como Lucíola, Diva e Senhora.
Logo em seu romance de estréia, Cinco Minutos (1856), e em A Viuvinha, de 1860, ele trata dos costumes urbanos e já esboça os traços femininos predominantes de sua obra com um propósito educativo. Para alguns críticos, esses livros possuem um lirismo suave. Mas para outros, como frei Pedro Sinzig (1876-1952), em seu “guia para as consciências”, Através dos romances (1915), manual de leitura de ficção, o primeiro é “bastante exaltado”, com “descrições de paixões um tanto vivas e voluptuosas”, e o segundo tem “algumas descrições muito ousadas”. Portanto, desaconselhava tais leituras.
Em Cinco minutos, Alencar oferece ao público leitor a história de Carlota, uma mulher misteriosa e singular. Incógnita, com o rosto escondido por um véu, seduziu num ônibus, à noite, um moço que não a conhecia, mantendo com ele um “contato voluptuoso”, com apertos e beijos, nas mãos e nos ombros. Fascinado com tais delícias sensuais, transgressoras das convenções sociais impostas à mulher, ele descobriu que a dama audaz tinha uma moléstia fatal, sem esperanças de salvação, o que a levava a agir de maneira desusada. Vencida a doença, tiveram uma vida conjugal feliz, incomum nos casamentos da época.Valdeci Rezende Borges
O romancista e dramaturgo José de Alencar (1829-1877), que até hoje desfruta de boa popularidade, foi visto como imoral em sua época e em parte do século XX, irritando conservadores e moralistas pelas cenas, inclusive de erotismo, que produziu, especialmente em perfis de mulheres, como Lucíola, Diva e Senhora.
Logo em seu romance de estréia, Cinco Minutos (1856), e em A Viuvinha, de 1860, ele trata dos costumes urbanos e já esboça os traços femininos predominantes de sua obra com um propósito educativo. Para alguns críticos, esses livros possuem um lirismo suave. Mas para outros, como frei Pedro Sinzig (1876-1952), em seu “guia para as consciências”, Através dos romances (1915), manual de leitura de ficção, o primeiro é “bastante exaltado”, com “descrições de paixões um tanto vivas e voluptuosas”, e o segundo tem “algumas descrições muito ousadas”. Portanto, desaconselhava tais leituras.
Já em A Viuvinha, a personagem Carolina é a imagem de uma mulher romântica, virgem e inocente, que fora criada nos ideais católicos. Com a força do amor ela regenera Jorge, um homem que tinha os ideais corrompidos, e que, ao ser reabilitado, transformou-se em ideal masculino.
Como dramaturgo, Alencar viu-se envolvido, em 1858, num escândalo provocado por sua proposta de “reproduzir a sociedade” da época, com seus desvios morais, por meio do retrato realista de uma mulher prostituída. Em As Asas de um Anjo, Carolina, uma moça pobre, foge de casa seduzida pelo luxo, esboçando “a vida da Madalena moderna”, filha daquela sociedade. Considerada imoral, a peça foi motivo de excitação e retirada de cartaz pela polícia. O autor se defendeu na imprensa da “acusação injusta”, pois sua intenção era produzir obras que educassem a sociedade e fizessem uma senhora rir sem corar. Para Joaquim Nabuco (1849-1910), a personagem não conhecia “o sentimento de honra” e a peça era “uma nódoa” na literatura brasileira, cabendo ao domínio da polícia pelas “cenas de um sensualismo torpe”.
Em 1862, indignado com as censuras, Alencar reagiu a elas em Lucíola, onde prossegue sua reflexão sobre a prostituição abordando o problema da mulher como um objeto comprado no mercado do desejo. Nesse perfil da cortesã, insistiu na questão da regeneração e do arrependimento da mulher perdida, denunciando a corrupção dos costumes sociais. O livro oferece duas imagens femininas opostas presentes na mesma pessoa. Trata-se da personagem Maria da Glória, que com a desagregação da família tornou-se Lúcia, “o Lúcifer social”, uma cortesã elegante, amante e viciosa, mulher espetacular que mostra uma face do mercado do prazer, animando o mundo boêmio, como nos quadros vivos da cena de strip-tease.
Gradualmente ela nega sua condição de cortesã, assumindo uma identidade nova, com base em valores morais e princípios religiosos, mas não teve seu erro esquecido ou perdoado pela sociedade. Mesmo purificada, Lucíola morreu como punição e castigo para alcançar a elevação do espírito e a redenção. Para D. Pedro II, o livro era “licenciosamente realista”. O conselheiro Lafayette Pereira (1834-1917), jurista, jornalista e político, viu o caráter da heroína como um “monstro moral”. Sinzig vetou a obra, avaliada como inconveniente porque imoral, por descrever cenas lúbricas e brutais. Para José de Alencar, “esses perfis de mulher, como diz o termo, não são tipos; mas, ao contrário, exceções, ou idiossincrasias morais, que se tornam curiosas justamente pela originalidade e aberração do viver comum. É assim que se deve entender Lúcia, Emília e Aurélia”.
Em Diva (1864), Alencar nos relata a história de Emília, seu segundo grande perfil feminino, um misto de angélico e satânico, mas exageradamente pudica, com índole caprichosa e orgulho indomável. Ousada, altiva e inteligente, abre caminho para a constituição da imagem de uma mulher moderna. Mila transgredia muitas regras morais e valores da elite ao se afastar do comum e das convenções, vistas como tirânicas e corruptoras dos indivíduos.
Por ter sido muito severa no início da infância, sua criação lhe causou sérios problemas, fazendo dela uma menina fragilizada, que compartilhava o pensamento comum. No confronto com o mundo social, porém, Emília questiona e abandona as regras impostas pela opinião pública, rompendo as barreiras do ideal feminino da época e tornando-se mais livre, ativa e igual em relação ao homem, como em sua oposição ao casamento sem amor e ao amor como jogo, dado em função de interesses econômicos, políticos e sensuais.
Mila agia de modo incomum para uma moça educada, tornando-se incompreensível para seu pretendente: era “a virgem que o severo pudor velava”, mas tinha a intenção de casar-se com quem escolhesse por amor, valorizando a amizade e a confiança na relação, não aceitando a submissão só da mulher, como era usual na época, e discutia todas essas questões com o rapaz, resistindo às suas imposições. Livrando-se das convenções morais, marcava encontros incomuns, a sós com ele, em meio à natureza, como na Floresta da Tijuca e de noite, ao luar.
Insubmissa, Emília se tornou uma nova mulher, que resistia às ameaças de tomarem sua independência e dignidade. Ao render-se ao amor, transformou-se, prometendo moldar-se, findando a existência de “senhora”, mas conservando seu caráter distinto. No entanto, a incerteza do lugar aonde o casal chegaria fica evidente no final, que não os tornava “um” só, mas os colocava lado a lado. Ela exercia sobre o rapaz seu domínio e este, após concluir que não devia “amar essa mulher”, pois “seria uma infâmia”, confessou sua impotência: “eu ainda a amava!... [...] Ela é minha mulher”.
“Vênus moderna”, Mila era uma mulher misteriosa que precisava ser decifrada. Sua inteligência diabólica, suas atitudes e idéias criticavam a sociedade. Mesmo que, no instante final, estivesse disposta a deixar de lado a condição de “senhora”, tornando-se “escrava” ao virar esposa, sua imagem forte e seu “caráter original” já estavam difusos nas mentes dos leitores. Se Rousseau (1712-1778), com seu romance Júlia ou a Nova Heloísa, contribuiu para a construção da imagem da mulher moderna, Alencar, em diálogo com ele, também o fez. Para Nabuco, “essa virgem” era “uma cortesã”, “uma loureira”. Para Singiz, Emília “é uma rapariga bastante malcriada, cujas maneiras não devem ser imitadas”, tendo o livro “inconveniências que tornam a leitura, para jovens, ao menos perigosa”.
Em Senhora, de 1875, considerado seu principal romance urbano, o terceiro perfil de mulher traçado por José de Alencar revela o orgulho e a força moral da personagem Aurélia, que corrige Fernando, um homem corrompido pela sociedade elegante e fútil, e que sacrificava sua família em nome dos gozos mundanos. Um dia, ele se negara a casar-se com ela, pois era uma menina pobre que não dispunha de riquezas para levar consigo um dote de casamento, em bens ou dinheiro. Mas quando Aurélia enriqueceu após ter recebido uma herança, com capricho e orgulho, conhecendo o mercado matrimonial, por intermédio de outra pessoa ela propôs-lhe um casamento de conveniência, com dote vultoso. Ao aceitar o contrato, ele abriu espaço para humilhações e desprezo, até que resgatou a dignidade.
Mulher inteligente, num tempo em que a inteligência era vista como um atributo masculino, Aurélia tinha pensamento analítico e princípios religiosos, e desprezava a sociedade corrompida, que combatia em nome dos “sentimentos nobres”. Era ligada aos valores morais, mas abandonava algumas convenções, como o exigido “recato feminino”. Despojada, com um comportamento visto como um dos “efeitos da emancipação das mulheres”, uma “inversão” que os costumes vinham sofrendo, ela rompia com os modelos femininos tradicionais, lutando pela “desafronta de seu amor ludibriado”, puro e inocente, e indo contra o “homem que a traficava”, em vez de aceitá-lo, como as outras mulheres.
Tal ação regenerou Fernando, que se apegou às coisas simples, tornando-se trabalhador, disciplinado e esposo dedicado. A mudança de caráter inverteu seu comportamento como marido: “o homem de coração e de honra se formara aos toques da mão de Aurélia”. Audaz, educadora, ela questionava a prática do dote de casamento que entrava em processo de desaparecimento, oferecendo às mulheres a possibilidade de serem amadas por si e sugerindo que os homens não tinham dignidade ao se venderem por dinheiro. Portanto, Sinzig, conservador, considerou o livro “extremamente exaltado”, com “amores de esposos separados”, que “não pode impressionar bem”, pois fascinava.
Havia imoralidade nesses perfis de mulheres? Para os conservadores, sim, pois transgrediam os costumes tidos como ideais e anunciavam novos tempos. Mas a eles, Alencar, progressista, respondia: “Deixe que raivem os moralistas”, talvez na esperança de que as exceções se tornassem comuns e normais.
Valdeci Rezende Borges é professor de História da Universidade Federal de Goiás e autor da tese “Histórias românticas na corte imperial: o romance urbano de José de Alencar – Rio de Janeiro, 1840-1870” (PUC/SP, 2004).
Saiba Mais - Bibliografia:
DE MARCO, Valéria. O império da cortesã: Lucíola, um perfil de Alencar. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
NETO, Lira. O inimigo do Rei: uma biografia de José de Alencar. São Paulo: Globo, 2006.
PINTO, Maria Cecília Queiroz de Moraes. Alencar e a França: perfis. São Paulo: Annablume, 1999.
PONTIERI, Regina Lúcia. A voragem do olhar. São Paulo: Perspectiva, 1988.
Revista de História da Biblioteca Nacional
muito interessante o seu post, como sempre pertinente, uma excelente fonte de pesquisa para o meu blog;
ResponderExcluirGostei do texto e tenho interesse em ler a tese do professor. Teria como informar um meio de adquiri-la?!
ResponderExcluirGostaria de receber as apostilas de história e Geografia no e-mail xandirocha@hotmail.com. grato.
ResponderExcluir