quarta-feira, 23 de junho de 2010

Da revolução ao lar, do lar à revolução

Camila Moraes Monteiro
Mariana Imbelloni Braga Albuquerque

A mulher nasce e vive igual ao homem em direitos. As distinções sociais não podem ser fundadas a não ser no bem comum.
Declaração dos direitos da mulher e da cidadã – Olympe de Gouges
1791


Embora, sem dúvida, esteja pouco a pouco a passar o tempo em que as mulheres imaginavam dever imitar os homens em todos os domínios em que pretendiam dar provas do seu valor (...)- estamos muito longe ainda de encarar com respeito tudo que é específico da mulher.
A humanidade da mulher – Lous Andreas-Salomé

1899

A Revolução Francesa, ocorrida no final do século XVIII, viu saírem às ruas e lutarem por seus direitos, em meio à população das cidades, as até então “reclusas” mulheres. Uma vez lutando em conjunto com os homens pela Revolução, nela procuraram participar, sendo ativas em suas decisões, tomando parte em suas conquistas. Passado o período de maior convulsão, porém, foram novamente afastadas do espaço político. Mesmo no fim do século XIX, sua posição na sociedade ainda não estava bem definida, oscilando entre afirmar a igualdade e a desigualdade perante ao homem. Como entender esse aparente retrocesso? Teria ficado a mulher depois da revolução restrita ao ambiente doméstico? As transformações nos direitos da mulher só podem ser compreendidas como uma lenta evolução, marcada por avanços e retornos. Sem grandes marcos, porém em constante movimento.
A gradual abertura à participação feminina inicia-se na França revolucionária: as multidões não hierarquizadas são propícias à atuação da mulher. Dessa forma, estarão as mulheres presentes na queda da Bastilha em julho de 1789; a marcha sobre Versalhes, no mesmo ano, é iniciada por um conjunto de agitadoras, sendo as “bota-fogo” dos pequenos e grandes motins do período. A fase de defesa da Revolução contra os ataques externos (Guerras Revolucionárias sob o governo da Convenção) tornou ainda mais disseminada a responsabilidade pela manutenção das mudanças.

“A liberdade guiando o povo” - Eugène Delacroix
Não só a mulher como agitador,a à frente do levante, mas como próprio símbolo dos ideais revolucionários


A elas também cabia o mesmo empenho que o do homem, seja na economia de racionamento imposta às cidades, seja no papel ativo nos conflitos. Disfarçadas de homens algumas iam aos campos de batalha lutar junto de seus maridos, pais ou irmãos; uma ousadia que contestava a ideologia iluminista de fragilidade física e intelectual feminina Mas sua participação não fica restrita aos momentos de convulsão. Exatamente por participar deles, a mulher começa a buscar direitos que lhe eram negados. Mesmo não podendo votar, participam ativamente das assembléias políticas, até em número, por vezes, superior aos dos homens. E não eram meras espectadoras, reagiam aos debates com aplausos e gritos de reprovação ou concordância, influenciando o curso da assembléia. Por sua atuação “barulhenta” e por, durante a sessão, dedicarem-se a trabalhos manuais, como o tricô, ficaram conhecidas como tricouteses. A participação feminina era feita principalmente entre grupos de mulheres, a vizinha era a companheira de revolução, não o marido. Reuniam-se, assim, em organizações próprias, visto que não tinham acesso aos grupos revolucionários masculinos. Ficavam restritas, pois, à clubes e sociedades, nos quais discutiam as leis e os problemas políticos locais.



Charlotte Courday e Olympe de Gouges
Exemplos de participação ativa e representativa de mulheres na Revolução. Charlotte foi a assassina do líder revolucionário Marat. Já Olympe se empenhou em diversas lutas a favor dos direitos das mulheres, criando, inclusive, a “Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã” como resposta à excludente “Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão.”


Outra marcante conquista feminina dos tempos revolucionários foi a das liberdades civis; mesmo que não igualitária, a mulher adquiriu uma certa cidadania. A possibilidade do divórcio e o estabelecimento do casamento civil, por exemplo, colocam a mulher em posição simétrica ao homem, pelo menos nesse campo. Criam, também, uma argumentação política de que aquela que pode escolher seu marido e dele se separar poderia, na mesma lógica, opinar na escolha do governante. A despeito disso e do ativo papel nas ruas, para a Convenção ficou estabelecido, na voz do deputado Amar, que “Não é possível que as mulheres exerçam direitos políticos.”. Dessa forma, no desenrolar da revolução, a mulher é requisitada para as ações diretas, mas excluída das discussões posteriores. Com o fim da Convenção e das Guerras Revolucionárias, ou seja, com o fim da fase radical e ascensão do Diretório e de Napoleão, as mulheres serão reconduzidas às posições pré-1789. A sociedade retoma sua ordem e, consequentemente, seus direitos sobre a parcela feminina, mesmo os clubes e sociedades são proibidos.

Desde quando é habitual ver a mulher abandonar os piedosos cuidados do seu lar, o berço dos seus filhos, para vir para a praça pública arengar nas tribunas?
Chaumette, a favor da proibição da reunião de mulheres em clubes e sociedades, final de 1793



A execução de Olympe de Gouges
A própria que havia dito“ A mulher tem o direito de subir ao cadafalso; deve ter igualmente o direito de subir à tribuna”
Olympe subiu ao cadafalso sem ter tido o direito de subir à tribuna.


Assim, as que se podem considerar primeiras conquistas femininas, foram marcantemente limitadas. Embora não cessassem de reivindicar, com bastante barulho, aliás, seu direito de participação política e de igualdade de direitos civis, o alcance das modificações foi muito restrito. O estatuto civil concedido à mulher era ainda muito inferior ao masculino, seu direito a voto nem era cogitado. A própria restrição ao direito de se reunir em clubes, aliada à de voz nas tribunas, demonstram como a opinião feminina era desconsiderada.
Mas apesar das inumeras restrições à atuação das mulheres e do retorno à situação anterior , a Revolução Francesa foi o primeiro momento em que se discutiu tal questão. Mesmo que não houvesse ainda conquistas definitivas, o papel da mulher foi colocado em pauta, e seria tema constante de discussão no século seguinte. O início do século XIX foi marcado pela negação de qualquer concessão oficial à participação feminina, tanto para a dama burguesa quanto para a mulher do povo. Enquanto as damas ficavam cada vez mais restritas ao espaço privado das casas e dos salões, a mulher do povo circula nas ruas, lava a roupa, vende. Mesmo quando começa a ser requisitada como operária, não possui participação política reconhecida. Os próprios dirigentes das centrais sindicais, na maioria das vezes, vetava a participação feminina. Eram mesmo acusadas pelos companheiros de fábrica de influenciarem na exploração dado o baixo salário que recebiam.
Porém, tal ausência de direitos não leva à passividade. A atuação das mulheres nos levantes permanece na primeira metade desse século. Eram também elas que incitavam os demais a participarem dos motins que ocorriam nas cidades, seja por um aumento no preço do pão, por um conflito com a guarda ou algum distúrbio urbano. Há, contudo, uma mudança na função feminina nas agitações, ao invés de iniciarem, passam a ser coadjuvantes. Mesmo que desconsiderada do ponto de vista político e jurídico, mesmo que as lutas pontuais das quais participava não tivessem vitórias duradouras, a mulher seguia inserida nas revindicações da sociedade.
Essa participação esporádica na vida política mostra que depois da Revolução a mulher não mais acatou a condição excludente que lhe era imposta. A cada abertura na hierarquia social, para as mais diversas manifestações, ela se inseria, mesmo que fosse afastada a cada ordem reestabelecida. Nessas idas e vindas do lar para a revolução, da revolução para o lar, a mulher vai conquistando um papel crescente na sociedade, na sua forma de pensar, na sua imaginação. As reivindicações femininas ganham mais vozes, apesar ainda das muitas contestações. A lenta transformação do papel da mulher segue seu curso, sem grandes marcos, sem muitas vitórias imediatas, mas, uma vez inaugurada, em constante luta. Somente o século XX veria os resultados legais dos embates iniciados no XVIII, mas isso não significa que o período intermediário tenha sido de marasmo, pelo contrário. Mesmo que não vitoriosas, as lutas do século XIX possibilitariam as conquistas posteriores.

Cronologia
1789 – Julho: Queda da Bastilha: participação ativa das mulheres nesse e em outros movimentos.
Agosto: Publicação da “Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão”
1791 – Em resposta, Olympe de Gouges publica uma “Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã”, ampliando para os dois sexos as propostas da anterior.
1792 – 1794 – Guerra Revolucionária
1795- 1799 – Ascensão do governo do Diretório: Estabilidade Revolucionária, retomada da ordem social.
1799 – Início do governo Napoleônico no Consulado.

Bibliografia
GOUDINEAU, Dominique. “Filhas da liberdade e cidadãs revolucionárias” IN: História das Mulheres no Ocidente. (Michele Perrot e George Duby, org.), Vol. 4. Porto. Edições Afrontamento, 1991
HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. 19ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2005
PERROT, Michelle. Mulheres. IN: Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1988.
SLEDZIEWSKI, Élisabeth G. “Revolução Francesa: A viragem.” IN: História das Mulheres no Ocidente. (Michele Perrot e George Duby, org.), Vol. 4. Porto. Edições Afrontamento, 1991


Núcleo de Estudos Contemporâneos - UFF

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