quarta-feira, 30 de junho de 2010

Como o Diabo Gosta!


Como o Diabo Gosta!
Periódico revela as diabruras de um salão carnavalesco carioca na década de 1930
Murilo Sebe Bon Meihy

O Rei Momo, quem diria, fantasiou-se de demônio para o carnaval de 1931! As provas desse animado infortúnio podem ser consultadas na Biblioteca Nacional. Entre os periódicos da divisão de Obras Raras encontra-se um exemplar do jornal O Baeta: Pasquim Carnavalesco; um folhetim do Clube dos Tenentes do Diabo. Trata-se de uma agremiação carnavalesca fundada em 1855 sob o nome de “Sociedade Euterpe Comercial”, e que mais tarde passou a somar ao nome a designação de “Tenentes do Diabo”. A opção pela troca do nome possui inúmeras justificativas. Uma delas, expressa no exemplar analisado, sugere que uma grande confusão causada pelo incêndio de uma farmácia na rua Direita em 1861 fez o clube renascer: “ ... A Euterpe Commercial suppondo que o fogo se havia declarado em casa de um dos sócios, para lá correu, e, com seu uniforme carnavalesco, auxiliando o Corpo de Bombeiros, portou-se, com maior valentia. Extincto o incêndio, levantaram-se para Ella as labaredas do prestigio. Novos sócios entraram; o enthusiasmo aviventou-se e não longe desse baptismo de fogo, que lhes consagrou o nome, receberam no chrisma de Momo o de Tenentes do Diabo.”

Parece claro que uma reunião de foliões tão ativa e entusiasmada andou “infernizando” a ordem e as autoridades policiais cariocas ao longo de sua existência. Um bom exemplo dessa relação intempestiva é o conhecido envolvimento do Clube dos Tenentes do Diabo na campanha abolicionista que ganhava força na segunda metade do século XIX. Além de emprestar sua sede para reuniões sediciosas de líderes favoráveis ao fim da escravidão, o clube teria destinado o dinheiro recolhido para a confecção de carros alegóricos e fantasias, à compra de cinco cartas de alforrias no carnaval de 1864. Os escravos que tiveram sua liberdade adquirida pelos Tenentes do Diabo passaram a morar na sede do clube, prestando pequenos serviços aos associados.

Ao longo dos anos, mesmo com o fim da escravidão no Brasil, as relações dos foliões com a polícia manteve-se “entre a cruz e a caldeirinha”. No exemplar de O Baeta, um artigo chama a atenção do leitor. Com o título de “Lasciate ogni speranza o’ voi que entrate! Rectificando uma ‘noticia encomendada’”, O Baeta publicou uma nota saída no Correio da Manhã que explicava um escândalo envolvendo o clube e dois investigadores de polícia. Em um de seus bailes pré-carnavalescos, os Tenentes do Diabo receberam a súbita visita dos policiais. Na versão dos guardas, procuravam uma mulher envolvida com cocaína; para os diretores do clube, os investigadores não passavam de “penetras” que tentavam participar do baile.

Nas palavras do artigo: “... os investigadores implicados no caso agiram perversamente, procurando deixar compromettido o grêmio carnavalesco, por uma futilidade, em que não tinham a menor dose de razão. Elles não foram à sociedade em perseguição de mulher alguma. Saltando em frente à sede (...) appareceram ali, subiram as escadas e pretenderam entrar no salão. Foram impedidos de o fazer por um dos diretores, o qual lhes pediu provassem a sua qualidade de policiaes. Isso foi o suficiente para que os investigadores se melindrassem, inventando toda aquella história de cocaína, que não passa de mera fantasia, segundo affirmam.”

Mas, as desventuras do Clube dos Tenentes do Diabo com a ordem pública pareciam dar uma pitada de enxofre ao carnaval carioca. Em outra noticia do mesmo exemplar de O Baeta, o redator narra o desfecho de uma competição nada salutar entre um de seus sócios e um integrante da agremiação Cordão do Bola Preta, pelo estandarte de ouro no quesito “desordem e arruaça”: “No ultimo baile realizado na ‘Caverna’ (nome dado a sede do Clube dos Tenentes do Diabo) desavieram-se por questões de preferências femininas, o conhecido ‘baeta’ Augusto e o ‘bolapretano’ Palmyro. Da discussão passaram às vias de facto e Palmyro, valendo-se de sua mão direita desferiu cantante bofetada em plena face do adversário. (...) Em auxilio de Augusto correu o ‘Domigos Puré’ que, prevalecendo-se de estar Palmyro deitado, pespegou no mesmo, em lugar delicado, antropophaga dentada...”

Na hierarquia militar celestial do carnaval, os Tenentes do Diabo seguem à risca as ordens de seu general.

Revista de História da Biblioteca Nacional

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