quarta-feira, 23 de junho de 2010

Colonialismo ficção e drama: duas vertentes da “civilização” do séc. XIX

Paulo J. Campos, Érica Velez, e Ana Crispin

I
Não raro, a literatura ficcional é fértil vestígio para o trabalho histórico. Até hoje em dia bastante publicada, a famosa saga de Tarzan se mostra como bom indicador dessa tendência. Um ponto-chave é a relação de resistência do homem criado na selva ao “receber a civilização” do Ocidente. Mas tal herói foi concebido num contexto bem específico. A própria origem do nome dado pelos macacos, Tarzan, que significa “pele branca”, o denuncia.
É clara a relação do colonialismo com esta ficção. O branco perdido na selva é um Lorde inglês. O relacionamento de Tarzan é com uma aristocrata, dando possibilidade da manutenção de uma linhagem branca e “pura”. O personagem, mesmo após estar perdido na selva, torna-se o “rei da selva”. Por fim, os próprios vínculos que este homem tece é com macacos. Nas continuações do romance, a invisibilidade dos africanos é notável.

II
Dois pontos são fundamentais na ilustração colocada: hierarquia racial e colonialismo.
No início do século XIX ainda há a predominância da perspectiva una da humanidade, moldada seguindo o otimismo dos iluministas. Até aí, consideravam-se vários grupos diferentes como “povos”, não como raças distintas em origem ou formação (1993:47).
Em contrapartida a essa tendência, o mesmo século XIX começa a testemunhar novos padrões apontando para diferenças raciais. Passa-se a classificar aspectos morais, psicológicos e intelectuais, buscando suas causalidades nas características físicas. A identidade racial ocupará papel de destaque (2000b:1061).
Cabe ressaltar o papel da biologia para essas propostas. Mesmo que o próprio C. Darwin tenha mantido suas idéias voltadas para os animais, as várias interpretações de sua obra fugiam desse padrão. Conceitos como “evolução” e “seleção do mais forte” passaram a ser utilizados para compreender o comportamento humano – sendo uma excelente justificativa para a “supremacia” dos povos da Europa (1993:56).

Tal aspecto abre margem para uma outra vertente deste período: o colonialismo.

Quando se pensa em colonialismo, deve-se entender que este foi adotado em vários contextos históricos. Contudo, o termo se faz útil para os fins do séc. XIX, dado que aí o colonialismo passa a se valer de conteúdos mais complexos do que em qualquer época (2000a:182).

É nessa conjuntura que se delineia mais claramente o conflito das potências européias por áreas de influência. A busca do lucro se volta para a política nacional, apoiada por investimentos e aparelhos administrativos.

A prática tem objetivos definidos, posto o contexto da 2ª Revolução Industrial: comércio de excedentes, fomento da produção de matérias-primas agrícolas e exploração de recursos minerais (2000a:183). Um importante político da época, em sua argumentação em prol da colonização, afirma:

“ A política colonial é filha da política industrial. Para os Estados ricos, onde os capitais abundam e se acumulam rapidamente, a exportação é um fator essencial da prosperidade” (1985:276).

Não obstante, convêm apontar não somente a vertente econômica do fenômeno. A prática do colonialismo apostava, por vezes, em aspectos político-estratégicos e militares para sua sustentação. Da mesma forma, o colonialismo se entranhava nas idéias dos povos europeus. Não distinguindo classes sociais, a mentalidade do “levar a civilização ao inferior”, por vezes não tem o mero valor da retórica.

Contudo, não se observa por parte das nações promotoras do colonialismo a extensão de suas instituições e leis aos territórios anexados. Uma das explicações para tal fenômeno é que, com exceções ao Canadá e Austrália, os povos dominados eram considerados inferiores racialmente (2003:158). Nesse sentido, um famoso historiador propõe o “darwinismo social” e a biologia racista como pertencentes não só à ciência do séc. XIX, mas também à política (1996:372). Como se percebe, há uma contribuição mútua entre as teorias raciais e o colonialismo. Um justifica o outro.

III
Uma outra história, esta não ficcional, se faz elucidativa ao contexto abordado.

Em 1904, um explorador procurava pigmeus para exibir numa exposição localizada em St. Louis, EUA. A procura o levou ao Congo Belga, onde conheceu um pigmeu de nome Ota Benga. Ota não só aceitou ir para tal exposição, como convenceu outros conterrâneos a representar os “autênticos nativos africanos”.

Após breve retorno à África, Ota Benga volta aos Estados Unidos, desta vez a Nova Iorque. Lá chegando, foi por conta própria ao Zoológico do Bronx em busca de trabalho. A partir daí, a sorte do pigmeu está lamentavelmente traçada. Em 1906, este fará parte das atrações do local. Situado entre “macaco mais evoluído” e “ancestral de homem”, Ota Benga passa a ser exibido como um animal. Para provar a veracidade do, já visto, “darwinismo social”, divide jaula com um orangotango. O diretor do zoológico, Dr. W. T. Hornaday, considerava que Ota Benga era uma “espécie primitiva que evidenciava a teoria da evolução”. Acreditando na proximidade das características humanas e animais, Hornaday declara:

“Ele aparentemente não tem diferença entre uma besta selvagem e uma criancinha negra”.

Após grande polêmica e resistências por parte de religiosos e grupos negros, o pigmeu foi retirado de “exposição”. O homem de 32 anos estaria agora encaminhado a um orfanato para crianças negras. A profunda depressão foi conseqüência inevitável. Em 1916, é encontrado morto. Uma bala no peito e o revolver em sua mão evidenciaram o suicídio (BRADFORD 1992).

IV
À guisa de conclusão, tem-se uma realidade completamente às avessas da ficção. Se Tarzan tem problemas para incorporar o “processo civilizatório”, a crueza da realidade impõe para Ota Benga o grotesco em nome da ciência e “civilização”.

As temáticas aqui expostas procuram conduzir para outras considerações reflexivas, dado que: na maioria das sociedades ocidentais, o racismo é problema latente; grande parte do nosso imaginário tende a “racializar”, bem ou mal, várias etnias e, por fim, as análises de alguns contextos históricos, como este, não têm o alcance crítico que deveriam. Tal trabalho teve como fronte atacar um dos determinismos mais evidentes no período proposto: o biológico-racial. Se fomos bem sucedidos na proposta, cabe ao leitor selar.

Bibliografia:

BRADFORD, Phillips V. e BLUME, Harvey. 1992. Ota Benga: The Pygmy in the Zoo. St. Martin's Press.
BURROUGHS, Edgar Rice. 1956. Tarzan: O Rei das Selvas. Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional. (há várias outras edições e continuações).
CHATELET, F.(Org).1985. História das Idéias Políticas. Rio de Janeiro: JZE.
DE DECCA, Edgar. 2003a. Colonialismo como a Glória do Império IN: REIS FILHO, D. A., FERREIRA, J. e ZENHA, C (org). O século XX: O tempo das certezas Da formação do Capitalismo a Primeira Grande Guerra. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira. 2ºed. v.1.
FERRO, Marc. 2004. O Livro Negro do Colonialismo. Rio de janeiro: Ediouro.
GENTILI, Anna Maria. 2000a. Colonialismo IN: BOBBIO, N., MATTEUCCI, N. PASQUINO, G. Dicionário de Política. Brasília: EdUNB, São Paulo: Imprensa Oficial. 5ºed. (pp.181-6)
HOBSBAWM, Eric. 1996. Era do Capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
MATTEUCCI, Nicola. 2000b. Racismo IN: BOBBIO, N., MATTEUCCI, N. PASQUINO, G. op. cit. (p.1060-1062)
SCHWARCZ, Lilia M. 1993. Espetáculo das Raças: Cientistas Instituições e questão racial no Brasil.1870-1930. São Paulo: Cia das Letras.

Sítios na Internet:
http://www.rae.org/otabenga.html
http://emporium.turnpike.net/C/cs/hsota.htm

Filmografia:
Breaker Morant. Direção de Bruce Beresford, 1979, OST, 107min.
Mogli o menino lobo (Jungle Book) 1967, EUA, 78 min.
O homem que queria ser rei (The man who would be king). Direção de Jonh Huston, 1975, EUA, 129 min.
Queimada! (Queimada!). Direção de Gillo Pontecorvo. 1970, Itália/França, 115 min.
Tarzan. Direção de Chris Buck e Kevin Lima, 1999, EUA, 80 min.

Cronologia:
1796 - Inglaterra conquista o Ceilão.
1953 - O conde Gobineau publica “Essai sur l´inegalité dês races humaines“– crítica racial à miscigenação.
1854-69 - Abertura do Canal de Suez.
1859 - Charles Darwin publica A origem das Espécies.
1863 - Taine passa a se valer da idéia de raça para apontar causalidades na história. Primeiros passos do “darwinismo social”.
1870-1914 - Era do capitalismo “Imperialista”.
1883 - Francis Galton introduz o termo “eugenia”.
1885 - Conferência de Berlim. Partilha da África entre as potências européias.
1906 - Um pigmeu Ota Benga é exposto como animal no Zoológico do Bronx.
1914 - Edgar Rice Burroughs publica “Tarzan”.
1916 - Ota Benga se suicida num abrigo para crianças negras.

Núcleo de Estudos Contemporâneos - UFF

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