quinta-feira, 3 de junho de 2010

As outras Inconfidências Mineiras


Muito antes de Tiradentes, vários episódios em Minas mostraram a insatisfação popular com a monarquia, reproduzindo rixas locais
Leandro Pena Catão

Para muitos, a Inconfidência Mineira se resume ao movimento encabeçado por Tiradentes, Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga em 1789. De fato, esta foi a mais conhecida revolta em Minas naquele século conturbado. Mas não a única.

A palavra “inconfidência” significava traição ao rei. Ou seja: um dos crimes mais graves que um súdito poderia cometer. No entanto, seu significado era um pouco oscilante. Podia se referir a uma verdadeira trama subversiva ou ao hábito, que se tornaria costumeiro após a expulsão dos jesuítas, de proferir blasfêmias e impropérios contra o monarca. É que o rei no período, D. José I, viu-se bastante contestado pelos seus súditos mineiros, principalmente depois que o marquês de Pombal comandou a expulsão dos jesuítas, em 1759.

A decisão provocou a eclosão de várias inconfidências em Minas, com abertura de processos e punição dos culpados. Essas inconfidências abririam caminho para uma “dessacralização” da Coroa portuguesa, e favoreceriam a ação dos autores da Inconfidência Mineira de 1789. A primeira das Inconfidências Pombalinas aconteceu em Curvelo (1760-1763), a segunda, em Mariana (1768), depois em Sabará (1775) e novamente em Curvelo (1776).

Ao contrário da Conjuração Mineira de 1789 (na qual indivíduos se associaram secretamente para arquitetar a derrubada do governo), nas inconfidências de Curvelo, Mariana e Sabará não era intenção dos envolvidos romper os laços com a metrópole. Todas surgiram da insatisfação com o enfrentamento entre o marquês de Pombal e a Companhia de Jesus, que culminaria com a expulsão dessa ordem religiosa dos domínios portugueses. A notícia deixou consternada a população mineira. O rei português, D. José I, e seu ministro Pombal foram ferozmente atacados por meio de “papéis sediciosos”, brados, conversações e burburinhos que continham violentos insultos ao rei e ao marquês.

Os jesuítas gozavam de imenso prestígio naquela época. Eram os responsáveis por praticamente todas as instituições de ensino e pelos seminários para a formação de padres na América portuguesa. Para os jesuítas, os monarcas deveriam usar o poder para garantir a paz e resguardar o bem comum. Um dos princípios ensinados por eles era o de que, quando o governo de um rei ganhasse contornos tirânicos, deveria perder sua legitimidade. Nesses casos, era permitido à população se amotinar contra o monarca, e em casos extremos, até atentar contra sua vida.

Segundo a interpretação dos jesuítas e de grande parte da população portuguesa, várias ações do governo de D.José I e, sobretudo, de seu ministro Pombal ganharam cores tirânicas. Desde o terremoto que assolou Lisboa em 1755, Pombal e os jesuítas eram inimigos declarados, e ainda assim o ministro viu seus poderes serem ampliados pelo rei, o que naturalmente desagradou aos inacianos. Não deixa de ser irônico que a ordem religiosa, por tanto tempo o braço direito da monarquia na colônia, espalhasse uma teoria tão subversiva, pelo menos sob a perspectiva de Pombal. Mas foi a crença nesses princípios defendidos e difundidos pela Companhia de Jesus que levou parte da população mineira a atacar o rei, fosse verbalmente ou por meio de “papéis sediciosos”.

A expulsão dos jesuítas não resolveu os problemas da Coroa. Manifestações de descontentamento começaram a se espalhar em Vila Rica, Sabará e no arraial de Santo Antônio do Curvelo, nos sertões da capitania. O rei era chamado por vários de seus súditos de pateta, demente, comparado a Nero e Diocleciano (considerados os dois maiores perseguidores dos cristãos na Antiguidade).

Mas quem eram os autores dessas inconfidências? Segundo apurações da Coroa, os responsáveis eram ex-jesuítas “encobertos” sob outras identidades (nem todos os padres foram presos na ocasião da expulsão), ex-alunos, partidários, ou, simplesmente, admiradores da Companhia de Jesus que não aceitavam as determinações do ministro Pombal. Ao longo de toda a década de 1760, padres jesuítas “encobertos” foram encontrados pelas autoridades da capitania circulando pelos sertões e mesmo nas principais vilas. Pombal, por sua vez, procurou combater a Companhia de Jesus com as armas de que dispunha. Patrocinou e difundiu um vasto material antijesuítico não só em seus domínios, mas em toda a Europa. Estabeleceu uma política repressora, prendendo aqui e ali alguns “encobertos” e seus comparsas.

A primeira inconfidência ocorreu em Curvelo, na comarca do Rio das Velhas, coração da capitania, no início da década de 1760. Veio na forma de “papéis sediciosos”, supostamente cópias de um “Breve papal” (carta de caráter oficial escrita pelo papa e dirigida à comunidade cristã) altamente ofensivo ao rei português. O “Breve papal” seria uma resposta “às tiranias” que vinham se repetindo em Portugal nos últimos tempos, como o suplício e a condenação à morte de vários nobres incriminados pela tentativa de regicídio contra D. José I, em 1758, e a expulsão dos jesuítas do Império português.

Os “papéis” com ofensas ao rei começaram a circular em fins de 1759. Foram abertas três devassas (apuração minuciosa de ato criminoso mediante pesquisa e inquirição de testemunhas) entre 1760 e 1763. As duas primeiras foram presididas pelo padre Carlos José de Lima, vigário da freguesia. Detentor de riqueza e influência naqueles sertões, ele era, como outros padres da região, grande proprietário de terras. A terceira devassa foi aberta na ocasião em que visitava Curvelo o representante do arcebispado da Bahia, Lopo Gomes Corte Real. O resultado dos três processos foi a incriminação de dois inimigos do vigário de Curvelo: o franciscano Antão de Jesus Maria e Lourenço Feliz de Jesus Cristo. A Inconfidência revelou uma complexa rede de intrigas que colocava em lados opostos os “homens bons” dos sertões adjacentes ao arraial: grandes proprietários de terras e de escravos, detentores de poder e influência locais. As desavenças entre os poderosos eram motivadas, no fim das contas, pela disputa por hegemonia política e econômica naquela região da capitania.

Em 1776, Curvelo seria palco de outra inconfidência. Mas dessa vez o acusado foi o padre Carlos José de Lima, aquele mesmo antigo juiz da devassa que apurara os crimes contra o rei. A acusação partiu dos paroquianos. Apesar de serem eventos distintos, as duas inconfidências estavam relacionadas. Era de conhecimento público, em toda a vizinhança de Curvelo, que, desde a primeira inconfidência, o padre Lima falava mal do rei. Denunciado por seus inimigos, foi preso. E não só ele: as testemunhas que ouviram as “sacrílegas palavras” do vigário e não as denunciaram foram igualmente condenadas pelo crime de inconfidência. Inclusive os arquitetos da denúncia. A rigidez adotada pelos agentes da Coroa é explicada pelo fato de a segunda inconfidência de Curvelo ter sido antecedida por outras duas. Os ataques ao rei espalhavam-se perigosamente.

Em Mariana, o vigário capitular e então governador por procuração do bispado local, Ignácio Corrêa de Sá, foi preso em 1769 sob a alegação de blasfemar contra o rei. Os autores da denúncia foram os cônegos do bispado de Mariana. O pretexto para a prisão foi de que a procuração que lhe dava a condição de governador perdera a validade. Segundo os camaristas da vila de Sabará, com o episódio ele causou “revolução horrorosa nas Minas, na Cidade de Mariana assim como em todo o Bispado”. João Caetano Soares Barreto, provedor da Real Fazenda e juiz da devassa, comentou os motivos políticos por trás da “má-fé para com esta denúncia, por ver que os Cônegos podendo há muito denunciar o Capitular, só o fizeram na ocasião das disputas sobre as jurisdições”. Contudo, concluiu que, “apesar do ódio que há muito tempo têm os Cônegos ao Vigário Capitular, e que em satisfação do mesmo ódio é que fulminaram semelhante denúncia”, o denunciado havia de fato proferido as blasfêmias contra D. José I. Embora as inconfidências tivessem como pano de fundo as críticas a Pombal e a D. José I, o estopim para as denúncias eram sempre querelas de âmbito local. Acusado pelo crime de inconfidência, Ignácio Corrêa de Sá negou a acusação, mas a devassa concluiu pela sua culpa. Ficou preso até 1777.

O crime mais grave de inconfidência do período pombalino ocorreu em 1775. Os protagonistas foram as duas principais autoridades da comarca de Sabará: o ouvidor José de Góes Ribeiro Lara de Morais e o vigário geral José Corrêa da Silva. Além do crime de inconfidência, foram acusados por descaminho de ouro e diamantes, manipulação de cargos públicos e “perturbação do sossego dos povos”.

O padre José Corrêa da Silva era acusado de manter em Sabará “um colégio jesuítico” em sua residência, chamado pelo povo de Colégio São Roque, e que funcionava como uma espécie de sociedade literária. Portador de uma imensa biblioteca com vários títulos de autores jesuíticos (então censurados), Corrêa da Silva era o líder intelectual do grupo, e foi acusado várias vezes de atacar verbalmente o rei e o marquês de Pombal.

Também José de Góes Ribeiro Lara havia proferido inúmeras blasfêmias contra os dois. O ouvidor responsabilizava o marquês pelo infortúnio de um amigo seu que havia sido exilado pouco antes pelo rei, acusado de trair Pombal. Tratava-se José de Seabra da Silva, secretário de Estado dos Negócios do Reino. José de Góes passou a blasfemar contra o rei pela “injustiça” cometida contra seu amigo, alegando que o marquês de Pombal odiava José de Seabra por ele ter dito ao rei que “o Senhor Marquês já estava pateta e incapaz de governar”. A inconfidência de Sabará extrapolou os limites políticos da comarca repercutindo em toda a capitania, e por pouco não se desdobrou numa revolta de grandes proporções.

Mais do que um protesto contra a expulsão dos jesuítas, as inconfidências do período pombalino revelam a cisão entre os poderosos locais. Inclusive no caso de Sabará, denunciado ao governador por um ex-membro do bando liderado pelo ouvidor, que, a partir de certo momento, se tornou inimigo. Não é possível interpretar os movimentos de contestação política da segunda metade do século XVIII sem levar em consideração a lógica interna das colônias e os cenários políticos. As revoltas expõem o alto preço pago pela Coroa por suas medidas impopulares, como a expulsão dos jesuítas, e o desgaste sofrido pela imagem do rei na América portuguesa. A desafeição ao trono tomaria outros contornos anos mais tarde, com a eclosão da famosa Inconfidência Mineira de 1789. Os poderosos das Minas, dessa vez mais organizados, levantavam suas vozes contra a Coroa, só que agora com a intenção de romper os laços políticos com Portugal.

Leandro Pena Catão é professor do Mestrado e do curso de História da Fundação Educacional de Divinópolis/UEMG e autor da tese “Sacrílegas Palavras”: Inconfidência e presença jesuítica nas Minas Gerais durante o período pombalino” (UFMG, 2005).

Saiba Mais - Livros:

CATÃO, Leandro Pena. Inconfidências, jesuítas e redes clientelares nas Minas Gerais. In: VILLALTA, Luiz Carlos; RESENDE, Maria Efigênia Lage de. História de Minas Gerais: As Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

SOUZA, Laura de Mello e. Norma e Conflito: Aspectos da História de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.

VASCONCELOS, Diogo de. História Média de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.

VILLALTA, Luiz Carlos. As origens intelectuais e políticas da Inconfidência Mineira. In: VILLALTA, Luiz Carlos; RESENDE, Maria Efigênia Lage de. História de Minas Gerais: As Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

Revista de História da Biblioteca Nacional

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