sexta-feira, 21 de maio de 2010

Teorias políticas medievais e a construção do conceito de unidade


Teorias políticas medievais e a construção do conceito de unidade

Fátima Regina Fernandes

Doutora em História Medieval pela Universidade do Porto - Portugal. Professora Associada do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História - UFPR - 80060-150 - Curitiba - Paraná - Brasil. Pesquisadora do CNPq. Membro do NEMED-UFPR. E-mail: lxa90@hotmail.com


O eixo desta discussão é o conceito de transferências culturais entendidas considerando não apenas a idéia de mobilidade das pessoas e das idéias, mas também os mecanismos de aculturação, rejeições e recepções parciais de elementos culturais e ideológicos produzidos dentro de um determinado sistema de valores e aproveitados por outros. A idéia-chave, nesta proposta parece-me ser a de cruzamentos de influências, daí entendermos este conceito à luz das reflexões de Georges Duby que nos diz:

Eu me pergunto, portanto se não seria operatório tentar pôr em prática antes o conceito de "formação cultural" com a condição de relacionar essa palavra com o de formação social (...) A noção de formação (ela também emprestada aos geólogos) me parece dar conta melhor da complicação das estruturas culturais, da permanência de formas residuais, de todas as ressurgências e da mobilidade incessante dos fenômenos de aculturação. ( DUBY, 1989: 129)

A relativização da idéia de empréstimos culturais como importação demanda o conhecimento das bases originais de produção cultural local a fim de escaparmos da armadilha de pré-conceber um centro de onde emanam os modelos culturais e outro (s) que o recebem. Daí que Le Goff defenda, em relação às realidades medievais, o seu cepticismo quanto à aplicabilidade dos conceitos de empréstimos institucionais ou culturais, visto que, "Para os modelos estrangeiros se implantarem devem encontrar terreno preparado e adaptado ás condições originais". ( LE GOFF, 1980: 359)

Essa idéia que subjaz igualmente na obra de Fernand Braudel, O modelo italiano, cuja perspectiva e mesmo preocupação do autor passa pela relativização da idéia de exportação cultural de um modelo e recepção do mesmo em todo o Ocidente. Sendo assim, adotamos como válido o eixo proposto por este evento, aplicável às realidades medievais, entendido na forma acima exposta de formação cultural e toda a dinâmica de interação, transformação e adaptação que está implícita a este conceito.

Tendo definido as bases conceituais deste ensaio, devemos partir para seu objeto específico de análise. A construção das bases teóricas de afirmação da supremacia régia tem em nosso recorte medieval várias fontes de alimentação. Para além da bagagem de reflexões e teorias consagradas pelos pensadores da Patrística que constituía base comum de formação dos pensadores medievais, percebemos que os clérigos, até o século XI monopolizadores do saber e do ensino começaram no século XII a sofrer a concorrência de outros núcleos formadores de cultura e de ideologia, as Universidades. Estas institucionalizam espaços de estudo até então mais restritos. Entretanto, os mosteiros, as escolas urbanas, as catedralícias teriam ainda seu papel, mas os espaços da Academia sistematizavam a rotina e forneciam método à produção do conhecimento. Autorizadas pelo Papado e patrocinadas pelas autoridades temporais, as Universidades deixariam logo de ser apenas freqüentadas pelos clérigos e passariam a ser o núcleo fomentador de teorias e bases argumentativas de institucionalização e ideologização da figura régia. A retomada dos estudos de Direito Romano no século XII da iniciativa da Universidade de Bolonha, arrastaria a um movimento de revisão do Corpus Iuris Civilis de Justiniano, cuja obra secundava, no entanto, seu projeto de Renovatio Imperii no Ocidente. Tais estudos forneciam uma base argumentativa laica e seriam o gérmen do "novo" Ius civile e do Ius canonicum. A grande crítica, já no século XII, de Bernardo de Claraval, à jurisdicionalização das funções pontifícias no Tratado sobre a Consideração dedicado a Eugênio III é disto um sintoma. Um fenômeno sem retorno possível, apesar das críticas pertinentes de Bernardo dentro de uma lógica cisterciense, se analisarmos o perfil e as preocupações dos papas que sucederam Eugênio, especialmente Inocêncio III e Inocêncio IV no século XIII. A dialética do conservadorismo na proposta e no discurso cisterciense e a modernidade e o otimismo que impregna o contexto econômico onde esta proposta se aplica é decisiva na compreensão dos fatores de produção cultural medieval.

É nesta dinâmica que devemos entender a construção das representações ideológicas régias, visto que a compreensão das ideologias passa pela História do Poder. Muitos seriam os componentes das várias culturas e dos vários estratos de cada uma destas culturas no Ocidente medieval, mas ao estudarmos a base de construção dos modelos de poder régio, ou até mesmo o pontifício, devemos ter consciência de que o papel do patrocínio é decisivo a esta compreensão. Estamos lidando com uma cultura dominante, de elites intelectuais, um debate para iniciados nestes argumentos que promoviam uma filtragem e composição a partir do que fortalecesse a causa de seu patrocinador, mas que também refletia obrigatoriamente dados, heranças originais dos núcleos onde seriam aplicados sob risco de tornarem-se anacrônicos ou desajustados. Além disto, deve-se ter presente que os dados culturais compõem-se ainda de combinações e interferências diversas que diferenciam a base cultural não apenas em níveis ou estratos, mas que confere identidade e propriedade a uma determinada ideologia. Reflexões que justificam a adoção neste trabalho do conceito de formação cultural.

A Universidade, na segunda metade do no século XIII divulga duas obras de Aristóteles, A Política e Ética a Nicômaco através de traduções para o latim e estudos promovidos em Paris por onde passariam as principais cabeças pensantes, destacando-se neste panorama vários frades das Ordens Mendicantes que tornar-se-íam teorizadores eminentes de Papas, Reis e Imperadores. A Filosofia política nestas duas obras amplamente difundidas no meio universitário da plenitude do pensamento medieval permite a compreensão de sua recepção expressiva, isto sem negar também a permanência de várias correntes de pensamento neo-platônico, no entanto, a novidade era constituída pelos teorizadores que elaboravam as bases da supremacia do poder dos reis, e neles, o pensamento aristotélico-tomista seria adicionado às outras teorias reconhecidas.

A demanda por uma leitura dos textos destas obras do Estagirita devia-se a seu objeto, a discussão acerca de regimes políticos, do conceito e função da lei e, por decorrência, do papel da autoridade e seus agentes. No Ocidente medieval as unidades políticas mais fortes são os reinos e muitos dos intelectuais que aí vivem estão envolvidos na elaboração de teorias legitimadoras da supremacia régia frente às suas sociedades políticas e a outros poderes paralelos que aí também co-existem. O conceito de utilitas publica resgatado do mundo clássico e aplicado à sociedade, a figura régia, superior e unificadora da mesma, justificada ideologicamente sob muitas formas e símbolos é reforçada, tanto quanto o reconhecimento da monarquia como melhor regime político, bem como com a importância da lei civil, acima de qualquer outra, para regular as relações sociais.

Observamos que estas influências foram mais sentidas em alguns tipos específicos de elaborações, a primeira delas, as legislações e mesmo os primeiros ensaios de sistematização legislativa. Á utilitas publica clássica preservaria o conceito de bem comum na Idade Média, relacionando a figura régia à sua dimensão funcional de árbitro das dissensões, garante da paz e estabilidade dentro de seu reino e mesmo no conjunto maior da Cristandade; conceito assente no seu potencial de unidade e universalidade. Devemos considerar ainda um sentido complementar da utilização destes conceitos que deveriam definir e ao mesmo tempo inspirar estes reis. Este esforço dos pensadores medievais de resgate do elemento público na tradição clássica diretamente associado à figura e à função do rei legitimava o conceito de poder régio no âmbito social. Afinal, o rei medieval era um rei contratual com uma dimensão feudal ou ascendente de poder como nos diz Ullmann (ULLMANN, 1983, 1985). Os letrados responsáveis nas Cortes régias por dissolver estes princípios na legislação promulgada por esses reis conhecem estas teorias circulantes no meio universitário e reproduzem-nas em seus espaços de atuação, adequando-as às especificidades de suas realidades, tornando-as naturais ao conectá-las com elementos predominantes na tradição e cultura dos povos que a elas deviam reconhecer e submeter-se.

Outro tipo de obra bastante difundido e adequado à aplicação destas teorias foram os tratados doutrinais, em geral, conhecidos por Espelhos de Príncipes que propunham modelos teóricos de conduta ética cristã aos reis (em formação), definindo-os com prerrogativas amplas e inquestionáveis no âmbito da potestas, mas afastando-os sutilmente de pretensões exageradas em relação à auctoritas e à Plenitudo Potestatis dos Papas.

A Corte de Luís IX de França constitui um espaço de produção e especialmente de difusão destes modelos a partir de importantes elaboradores de sua teoria política, os Mendicantes Vicente de Beauvais, Guibert de Tournai e Guilherme de Peyraut que escreveram os seus Specula em meados do século XIII. Nessas suas obras ajuntam às funções régias ligadas à lei e justiça um ideal "evangélico" de governo, dando um cariz mais fortemente cristão ao rei, responsável por corrigir as injustiças promovidas contra os pobres e o clero, enfim, apresentado como um defensor da respublica christiana.

Dentre os agentes produtores deste tipo de obras destacamos ainda Tomás de Aquino que elabora o De Regimine Principum (1265-7), obra que serviria de modelo básico dos Espelhos de Príncipes medievais posteriores, especialmente após a adição de uma segunda parte ao tratado promovida pelo também dominicano Ptolomeu de Luca nos inícios do século XIV (PALÁCIOS MARTIN, 1995: 473). Neste tratado o homem é entendido em sua natureza social e o rei é aquele que governa uma comunidade humana e que fugindo da potencial tentação de tornar-se um tirano deve buscar o bem comum, resgatando a finalidade da sociedade política aristotélica. Assim, à defesa da dualidade das ordens natural e espiritual de influência platônica e da proposta de hierarquia entre as mesmas, o Aquinate acrescenta o naturalismo político de Aristóteles na justificação temporal da figura régia.

Egídio Romano, discípulo de Tomás de Aquino que sustentaria as propostas da Bula Unam Sanctam de Bonifácio VIII declararia, em obra homônima à de seu mestre redigida entre 1277-9 que em virtude, o monarca deveria estar mais próximo de Deus do que qualquer um de seus vassalos e, portanto, que em seu reino o rex quase semideus (MIEHTKE, 1993:95), desde que cumprisse o ideal previsto de monarca cristão proposto em sua obra. Um tratado dedicado ao delfim que se tornaria Filipe IV, o Belo de quem era preceptor.

Essas obras produzidas no seio da monarquia francesa chegaram à Península Ibérica num sentido de recepção cultural, adicionando ao substrato das teorias nelas contidas, reconhecidas tradições de variadas influências autóctones. Afonso X de Castela faz uso destas idéias predominantes na Corte de seu primo francês, acrescentando um tom mais jurídico ao perfil régio e dissolvendo a dimensão evangélica do rei presente nas obras do Grupo de São Luís. As Partidas e os vários tratados doutrinais afonsinos acentuam a finalidade monárquica na garantia da paz e estabilidade e na busca do bem comum. Da mesma forma que seu outro primo Afonso III, criado na Corte de Luís IX, casado com a Condessa de Bolonha, ao assumir o trono português em 1245 empreenderia uma obra de sistematização legislativa e jurídica em bases mais próximas à das tendências castelhanas (FERNANDES, 2000:173-9). Ao que tudo indica os ambientes de recepção ibérica das teorias doutrinais monárquicas francesas atribuiriam significâncias de especificidade aos perfis e modelos definidos e aplicados no além-Pirinéus.

João Quidort de Paris, dominicano e teólogo pela Universidade de Paris, seguidor das idéias tomistas escrevendo sob patrocínio de Filipe IV, o Belo, num contexto de início do rompimento deste com o Papa Bonifácio VIII, usufruindo, portanto de um posicionamento político francês de oposição ao Papado, teoriza sobre as mesmas bases argumentativas de Egídio Romano. No entanto, em sua obra, o modelo de monarca francês perdera o tom quase missionário definido no século anterior, sendo substituído por um perfil que mantém uma dimensão de responsabilidade na proteção de seu clero sem, no entanto, o acento das tonalidades evangélicas do tempo de Luís IX (SOUZA e BARBOSA, 1997 : 173-9).

Estas tendências regionais sofreriam uma inflexão no século XIV, fenômeno resultante do potencial de fracionamento contido na proposta de tutela monárquica francesa sobre o Papado. O Exílio de Avinhão, e o Cisma do Ocidente seriam sintomas de um esgotamento da proposta pontifical e da força e potencial teórico e político das monarquias. A tendência crescente de regionalização do clero manifesta, por exemplo, num pré-galicanismo e suas decorrências, assim como o movimento Conciliarista reforçavam ainda mais este sentido da evolução das relações entre os poderes para uma posição de subalternidade dos espiritualia. A Cristandade latina seria dominada pelas propostas régias cuja dimensão de universalidade se restringiria à dimensão dos reinos, bem mais limitada que as anteriores propostas pontifícias e imperiais.

Os reis da Península Ibérica fizeram largo uso dos autores mencionados e a obra homônima de Egídio Romano foi traduzida para o castelhano em várias ocasiões, sendo objeto de glosa e completando trabalhos da mesma natureza produzidos em Castela e Portugal. Um bom exemplo disso é a obra Castigos y Documentos de Sancho IV que incorporou neste século XIV quarenta capítulos da obra de Egídio Romano com a finalidade de aprofundar e atualizar os temas aí ali tratados. A versão mais difundida desse tratado de Egídio foi obra do franciscano Juan de Castrojeriz que, ao glosar o De Regimine Principum em 1344 hispanizou seus exemplos para tornar a obra mais adequada à formação dos Infantes ibéricos, especialmente, do futuro Pedro I de Castela, a quem a mesma é dedicada. O resultado deste trabalho ultrapassaria a proposta original de Egídio e afirmaria a superioridade do rei, até mesmo sobre a lei, conferindo-lhe uma tonalidade ibérica, mas revelando também um sentido que iam adquirindo estes tratados doutrinais que definiam a esfera de poder dos reis no século XIV em por todos os reinos ocidentais (PALÁCIOS MARTIN, 1995: 477-8)

Devemos observar sempre estes autores no conjunto de suas obras para compreendermos os objetivos do patrocínio maior a que servem. Álvaro Pais ou Pelayo é disto um bom exemplo; nomeadoBispo de Silves, Portugal, em 1334, escrevera já em 1330 um tratado em Avinhão, De Stactu et Planctu Ecclesiae onde defendeu a causa pontifícia, combatendo as teses que Marsílio de Pádua sustentava contra a mesma. Já em 1344 redigiu o Speculum Regum dedicado epatrocinado por Afonso XI de Castela. Nesta obra de forte influência egidiana, Pais afirmaria que o monarca é o principal sujeito da História, acentuando sua grande responsabilidade mais que seu poder. Uma obra que seria, na verdade, uma resposta provocatória ao rei Afonso IV de Portugal, às pretensões deste rei em tutelar o clero de seu reino, numa tendência daquele período (SOUZA,1990:197-220; BARBOSA, 1972; COSTA, 2001:338-44). Assim, em seu conjunto, a obra de Pais vai numa linha de resistência à crescente afirmação do poder régio como Egídio Romano, no entanto, as obras dos autores de Espelhos de Príncipes seriam todas muito difundidas e aplicadas em benefício das mesmas propostas régias. Instrumentos ideológicos bem elaborados como estes não seriam desperdiçados, antes atualizados, glosados, promovendo uma leitura dos princípios clássicos e contemporâneos vigentes nas Universidades, dentre os intelectuais medievais.

Enquanto isso os pensadores italianos, Dante e Marsílio de Pádua, impulsionados pela realidade de pulverização dos poderes, própria das Repúblicas italianas, defendiam teorias laicizantes de poder político, cujo modelo ideal de universalidade recaía mais uma vez no Império (TOLEDO e CAMPAROTTO, 2003:267-76). A lei evocada da comunidade cívica geraria a Concordia Ordinum garantida por um Legislador Supremo, entidade originariamente coletiva e anônima, mas que acaba na Segunda Parte da obra de Marsílio o Defensor Minor de 1342 sendo identificada com o Imperador. A relativização do conceito de homo renatus cristão e adesão a uma dimensão comunitária e natural do homem cívico resgata conceitos clássicos aplicados à realidade da Baixa Idade Média (ULLMANN, 2003 e FERNANDES, 2008:185-98).

Estes movimentos contemporâneos entre si permitem-nos compreender as várias tendências de pensamento político na transição para a modernidade. Ao mesmo tempo em que as teses marsilianas e dantescas apontam para a valorização do poder cívico e laico, os teorizadores Mendicantes no reino da França e na Península Ibérica cristalizariam os ideais de rei e de monarquia, todos modelos válidos no contexto deste século XIV.

Os reis valeram-se ainda de outros tipos de estratégias e veículos de difusão da supremacia monárquica e uma das mais recorrentes foram as Crônicas Régias. O relato de um passado comum atrelado às figuras idealizadas dos reis permitiria aos mais simples vassalos a inclusão numa dimensão histórica do reino. A identidade do reino construir-se-ia, assim, a partir da elaboração de um passado comum, assim como da fixação de signos e símbolos, como os estandartes e flâmulas e as armas do reino, o grito de guerra, elementos criados por e para o reino e que gerariam a identidade de um reino a partir da figura do rei.

Vimos assim, neste breve ensaio, vários usos de uma mesma base teórica com destinos diferentes, resultando em projetos de poder válidos e difundidos no mesmo contexto da Europa Ocidental, refletindo a complexidade e a diversidade de correntes de pensamento político medievais a partir da segunda metade do século XIII.

Os Espelhos de Príncipes medievais em suas fórmulas mais antigas, ou talvez possamos chamar originais, definem um perfil de contenção ética cristã dos reis na defesa subliminar dos ideais de universalidade assentes na supremacia pontifícia. No entanto, estes mesmos materiais doutrinais depois de glosados e atualizados seriam utilizados pelos reis como instrumentos de cristalização de uma imagem modelar régia. Este modelo cristalizado, institucionalizado, serviria como matriz identitária do reino atingindo imediaticamente a sua sociedade política e mesmo seus mais simples súditos. Todos partícipes de algo maior, o reino, à luz da imagem do rei.

De fato, as propostas originais de Aquino e Egídio propõem a formatação ética e cristã das prerrogativas régias dentro de limites que não ameaçassem a Plenitudo Potestatis pontifícia. O herdeiro do trono a quem estas obras seriam sempre dedicadas é disto um sintoma importante. Apontam para o caráter necessariamente formativo do monarca ideal, não era uma condição inata ou instintiva da pessoa do futuro rei. A ele cabia educar-se, limitar-se, ter uma vigilância e controle constante sobre suas ações visando o domínio de suas paixões pessoais. Tendo alcançado o perfil ideal, aí sim ele poderia estar mesmo acima da lei, poderia até corrigi-la. Assim, reforçamos que estas obras buscavam formatar, definir o monarca ideal contribuindo, mesmo que involuntariamente para a institucionalização da figura régia; fortalecendo-a em si mesma, dentro de suas atribuições previstas.

O debate acerca da lei, outro objeto constante dos tratados doutrinais medievais devido à recorrente tendência de controle teórico dos desvios de autoridade que descaíssem numa tirania. A lei, extraída da aspiração do coletivo representada pela sociedade política não poderia oprimir os usos e costumes locais sob pena de contestação da própria fonte de autoridade que a emitia. Esta base consuetudinária da legislação medieval, considerada na formulação das leis previa limites à centralização legislativa e administrativa do rei. Mas, a lei ao buscar a uniformização dos costumes propunha igualmente a institucionalização dos poderes que a aplicavam; era também um instrumento sutil e competente de contenção de potenciais arbitrariedades de uma vontade individual.

Observamos assim, que tanto nos Specula como nos tratados de Dante Allighieri e Marsílio de Pádua o esforço argumentativo visa adefender a busca da unidade dentro de uma proposta de universalidade, no entanto, alertam para a necessária elaboração de instrumentos que evitem a concentração excessiva de poder num só indivíduo sob risco de se cair numa tirania. O constante recurso a Aristóteles e seus dois tratados da Política e Ética a Nicômaco especialmente a partir dos século XIII fazem sentido no momento em que este debate tornara-se urgente e atual. Assim, as leis, seriam instrumento de afirmação régia, sendo o rei o agente que valorava e reconhecia a validade das mesmas, agente emissor de princípios válidos legislativos, ainda que invariavelmente aplicados na sua totalidade. Mas as leis seriam também, numa reflexão maior proposta por estes tratados doutrinais, um instrumento de institucionalização deste poder régio, tornando o rei mais limitado em potenciais tendências de concentração excessiva de poder em sua pessoa, tornando sua atuação menos arbitrária e dependente apenas de sua vontade individual. Fortalecia-se a instituição monárquica, mas limitava-se numa base teórica, ideal de poder, a validade de decisões que não contemplassem a vontade da maioria, ao menos da sua sociedade política. Assim, as ações régias estariam legitimadas apenas enquanto atendessem ao bem comum e a justificação social do rei dependeria de seu êxito em cumprir sua utilitas publica.

Modelos diferentes propostos defendendo um mesmo princípio de universalidade e indivisibilidade do poder seja ele imperial, pontifício ou monárquico. Outro elemento comum entre os ideais teóricos propostos seria a consciência dos perigos de ampliar e fortalecer uma autoridade que seria representada por um único indivíduo; urgia a institucionalização da mesma e a vinculação de sua validação ao reconhecimento por parte de uma base colegiada que a reconhecesse e legitimasse. O Ocidente nos séculos XIII e XIV seria dominado do ponto-de-vista da teoria política medieval por uma dialética que oporia duas tendências simultâneas: por um lado a discussão acerca da colegialidade do poder e suas fórmulas teóricas para lidar com os perigos da concentração de poderes e por outro a crescente e necessária centralização administrativa e legislativa levada a cabo pelas autoridades em cada unidade política. Uma realidade típica dos períodos de transição, neste caso, das estruturas medievais para realidades modernas.

Referências Bibliográficas

Revista de História - UNESP

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