quarta-feira, 5 de maio de 2010

A luta final de Che


A luta final de Che
Nas selvas da Bolívia, o revolucionário argentino de alma cubana morreu isolado, doente, faminto e maltrapilho. Mas fiel aos príncipios revolucionários em que acreditava
por Reportagem Giovana Sanches, Celso Miranda
Já era tarde da noite de 3 de novembro de 1966 quando o diplomata Adolfo Mena González, de 38 anos, calvo e barrigudo, chegou ao aeroporto de La Paz, na Bolívia. Cansado da longa viagem – havia passado por Moscou, Praga, Viena, Frankfurt, Paris, Madri e São Paulo, como mostrava seu passaporte uruguaio –, declarou aos fiscais da imigração que pretendia levantar dados para a Organização dos Estados Americanos. Liberado, seguiu para o centro da capital, onde se hospedou numa suíte do Hotel Copacabana. Ali conheceu os irmãos bolivianos Guido e Roberto Peredo e com eles partiu de avião para Cochabamba, a 800 quilômetros de La Paz. Depois de mais três dias de viagem de jipe, chegou às margens do rio Ñancahuazú. Em 7 de novembro, escreveu em seu diário: “Hoje começa uma nova etapa”. Só então revelou sua verdadeira identidade: González era, na verdade, o guerrilheiro Ernesto Che Guevara.

Depois de ter levado a Revolução Cubana à vitória em 1959, ao lado de Fidel e Raúl Castro, Che se dedicara a espalhar ideais revolucionários pelo mundo. “Ele esteve no Congo em 1964, onde experimentou um terrível revés, e, de volta a Cuba, entrou na clandestinidade para trabalhar secretamente em seus novos planos: criar na América Latina um foco guerrilheiro que pudesse convulsionar todo o continente”, diz o historiador mexicano Jorge Castañeda em Che Guevara – A Vida em Vermelho. “Na época, a América Latina parecia um grande tabuleiro da Guerra Fria, onde ondas de inspiração comunista esbarravam em ditaduras militares apoiadas pelos Estados Unidos.”

A Bolívia não fugia à regra. Em 1964, depois de duas décadas de instabilidade (em que sindicatos, Exército e latifundiários se digladiaram pelo poder), um golpe pôs no governo o general René Barrientos. A Bolívia se tornou, então, um notório aliado dos Estados Unidos – naquela época, em termos de ajuda militar americana, o país só perdia para Israel. Era a nação mais pobre da América depois do Haiti.

Repressão, pobreza, presença imperialista: segundo as concepções políticas de Che, a Bolívia era perfeita para uma nova vitória revolucionária. Para colocar a teoria em prática, entretanto, era preciso recrutar uma equipe. Em julho de 1966, enquanto Che permanecia incógnito, Raúl Castro, comandante das Forças Armadas de Cuba, convocou alguns veteranos da Revolução Cubana. O capitão Harry Villegas Tamayo, o Pombo, estava presente e relembrou a cena em 2006, numa entrevista à revista chilena Punto Final. “Raúl disse que havíamos sido chamados para integrar uma Brigada Internacional de Combatentes pela Liberdade dos Povos”, afirmou. “A resposta foi um unânime ‘eu vou!’”

A tropa de elite passou por três meses de treinamento. Depois, todos seguiram por caminhos diferentes para a América do Sul. Já Che precisava de um bom disfarce para conseguir chegar à Bolívia sem ser notado. Cortou o cabelo e a barba, adotou óculos de lentes grossas e colocou uma prótese dentária que mudou sua fisionomia e sua voz. No fim de outubro, visitou sua família pela última vez em Havana. Jantou com as filhas, apresentado a elas como “tio Ramón”. O disfarce funcionou – as meninas só saberiam que aquele era seu pai depois de receber a notícia de sua morte.

Bem-vindo à selva

A região do rio Ñancahuazú é coberta por uma mata densa, cortada por córregos e mangues. De repente, erguem-se elevadas montanhas ou abrem-se crateras e desfiladeiros, chamados na região de quebradas. Foi às margens das águas barrentas do Ñancahuazú que Che encontrou pela primeira vez sua tropa, instalada num sítio que haviam comprado na região para servir de disfarce temporário. Eram apenas 13 homens, entre veteranos cubanos e jovens bolivianos. Em novembro, Che inspecionou o primeiro acampamento na selva – duas cabanas sobre o chão barrento.

No início de dezembro, o líder anotou em seu diário (que depois seria publicado como Diário da Guerrilha Boliviana): “Não tenho os homens e as armas que esperava”. Che se referia à falta de ajuda do Partido Comunista Boliviano. Seu líder, Mário Monje, insistia em ter a palavra final sobre a guerrilha. Che não aceitou, e os dois cortaram relações. A briga era indesejável, mas não comprometia a estratégia de Che. O apoio de partidos e sindicatos poderia ser obtido à medida que avançassem as conquistas dos guerrilheiros. A referência, é claro, era a Revolução Cubana – que quando começou, no fim de 1956, tinha apenas 12 homens isolados no meio do mato (incluindo o próprio Che).

Todo o discurso político, porém, parecia muito distante naquela manhã de janeiro de 1967, em que a selva de Ñancahuazú afundava sob as chuvas de um verão amazônico. Foi quando os guerrilheiros liderados por Che deram os primeiros passos de sua quimera revolucionária. Já eram 27 homens que, em expedições diárias, se familiarizavam com o território. A fase de “implementação e infra-estrutura” durou quase dois meses. Numa área de cerca de 140 quilômetros quadrados, estabeleceram postos de observação e abriram covas para estocar remédios, alimentos, armas e equipamentos de comunicação. “Abrir trilhas e desenhar rotas para deslocamento e defesa não parecia uma missão perigosa, nem revolucionária, mas era cumprida com dedicação absoluta e disposição militar”, lembra Dariel Benigno Ramirez, um dos veteranos da guerrilha, em Memorias de un Soldado Cubano (inédito em português).

Surra no Exército

“O primeiro estágio está terminado. Os homens chegaram algo cansados, mas de modo geral conduziram-se bem”, anotou Che em 1º de fevereiro. O próximo passo seria treinar os combatentes para a sobrevivência na selva. Che, então, montou três grupos para uma expedição, prevista para durar 15 dias. No acampamento ficaram apenas quatro combatentes. “A marcha era a principal atividade. Che, exigente com a disciplina, fazia o grupo caminhar em silêncio, mantendo uma distância de 20 metros entre um e outro”, relatou o capitão Villegas. Andar uma dezena de quilômetros sob chuva, em trilhas enlameadas, podia levar o dia todo. Quando o grupo de Che tentou atravessar o rio Grande, o boliviano Benjamin Coronado Córdoba foi levado pela correnteza e morreu afogado. A primeira baixa da guerrilha viera antes do primeiro tiro ser disparado.

A volta foi ainda mais cansativa – a expedição já havia tomado quase um mês. Desde a chegada à Bolívia, Che tinha perdido 20 quilos. Sua barba voltara e ele sofria com ataques de asma, dores nas mãos e pés inchados. No acampamento, sem notícias do resto do grupo, Vicente Rocabado e Pastor Barrera desertaram em 11 de março. A caminho da vila de Camiri, tentaram vender um fuzil e foram denunciados. Presos, falaram da guerrilha. E disseram que o líder era Che Guevara.

As forças armadas bolivianas foram colocadas em alerta. Em março, patrulhas saíram de Camiri para investigar a região. No dia 23, cerca de 40 militares estavam na margem direita do Ñancahuazú, carregando armamento pesado e avançando devagar. Com a água batendo na cintura, os soldados tentavam atravessar o rio quando, por volta das 8h30, um tiro acertou o último homem da retaguarda. Após o estampido seco do fuzil, a selva cuspiu rajadas de metralhadora. Os soldados não viram quem os atingia. A ação, feita por sete guerrilheiros, deixou sete militares mortos, quatro feridos e 14 capturados.

Os prisioneiros foram levados ao acampamento da guerrilha, onde receberam medicação e alimento. No dia seguinte foram soltos – aliviados de três morteiros de 60 milímetros, 16 pistolas Mauser, três submetralhadoras Uzi, dois rifles BZ, dois rádios, duas mulas, um cavalo e alguns pares de botas. “Os soldados em serviço militar, mal treinados e mal armados, quando não foram simplesmente afugentados, sofreram fragorosas derrotas para a guerrilha que parecia, nos dois primeiros meses de conflito, invencível”, afirma o jornalista americano Jon Lee Anderson em Che Guevara – Uma Biografia. Em 10 de abril, um grupo de cerca de 150 soldados apanhou de uma dúzia de guerrilheiros e acabou com dez mortos e 30 prisioneiros. A guerrilha sofreu apenas uma baixa: o veterano capitão Suarez Gayol, ex-ministro da Indústria do Açúcar em Cuba.

Alarmado, o governo boliviano buscou ajuda nos Estados Unidos e nos países vizinhos. De Argentina e Peru e, em menor escala, do Brasil recebeu apoio logístico, equipamentos e informações. Do norte, recebeu mais. “O governo norte-americano promoveu um programa de treinamento para ações de contraguerrilha e forneceu armas automáticas relativamente modernas e outros equipamentos ao Exército boliviano”, diz um relatório do Departamento de Estado americano de maio de 1967. Naquele mês, quatro oficiais e 12 fuzileiros navais chegaram à Bolívia para treinar 600 soldados. Outro documento, de 18 de maio, mostra que os americanos estavam preocupados com o eventual apoio popular aos rebeldes: “Entre eles, há médicos que tentam tratar das crianças em lugarejos destituídos de qualquer outro tipo de assistência”.

Metade a menos

A presença dos militares dificultava o contato da guerrilha com La Paz. Lá, a argentina Tamara Bunke mantinha um esquema de apoio aos homens de Che – era a “rede urbana”. Boa parte da comunicação com a capital era feita pelo filósofo francês Regis Debray (amigo e mensageiro de Fidel) e pelo artista argentino Ciro Roberto Bustos, que costumavam visitar os guerrilheiros. Em abril, com o Exército de prontidão, Debray e Bustos não conseguiam voltar a La Paz. Por causa disso, no dia 17, Che tomou uma decisão que selaria o destino de todos: dividiu a guerrilha em dois grupos, um de avanço e outro de espera. Liderando o primeiro, Che tentaria ocupar o povoado de Muyupampa para, de lá, mandar os dois mensageiros a La Paz. Já a tropa de espera, sob o comando de Joaquín (Juan Vitalio Nuñez, membro do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba), aguardaria perto do povoado de Bella Vista. Che deveria voltar em três dias.

Ao se aproximar de Muyupampa, a tropa de avanço encontrou o jornalista inglês Tom Roth, que insistia em fazer uma entrevista. Apesar do risco, Che aceitou. Em troca, Roth deveria levar Debray e Bustos em seu carro até Camiri, a cerca de 300 quilômetros dali. Esforço inútil. Em 20 de abril, Debray e Bustos foram presos. Após um mês de tortura, o francês acabou confirmando a presença de Che na selva. Já Bustos colaborou desde o primeiro dia, dando preciosas informações e até desenhando o rosto dos guerrilheiros.

Em 25 de abril, o grupo avançado foi atacado pelo Exército. Che anotou: “Um dia negro”. Referia-se à morte de Eliseo Reyes, que havia combatido a seu lado em Cuba. Seguiu-se uma longa retirada pelo norte, na direção oposta ao ponto de encontro com Joaquín. No dia 14 de junho, Che questionou até quando a idade permitiria que ele continuasse a ser guerrilheiro. “Por enquanto, ainda estou inteiro”, escreveu. Era seu aniversário de 39 anos.

Em agosto, Joaquín resolveu sair em busca de Che. Começou a busca na casa de Honorato Rojas, camponês que já havia servido de guia para a guerrilha. Depois de mais de 20 dias andando, o grupo acampou perto da casa de Honorato, em Vado del Yeso. Ao amanhecer de 30 de agosto, Joaquín enviou homens até lá para pedir comida. Honorato prometeu algo para o dia seguinte. Enquanto isso, mandou o filho alertar o Exército. Às 16h do dia 31, Joaquín apareceu e pagou a Honorato pela sopa de milho e pelos pães. Na volta, perto de um rio, os 16 guerrilheiros foram surpreendidos por tiros vindos das árvores. Dez morreram na hora, incluindo Joaquín. Longe dali, sem saber de nada, Che escreveu que o mês de agosto fora “o pior desde o início da guerrilha”. Mas, esperançoso como sempre, considerou que o Exército não tinha aumentado “nem sua eficácia nem sua iniciativa”. Estava errado.

No início de setembro, Che foi em busca de Joaquín. Assim como o companheiro, decidiu ir procurar na casa de Honorato. Durante dias de caminhada margeando o rio Grande, ouviram pelo rádio que os colegas haviam sido emboscados. No início, Che duvidou. Mas a precisão das informações o fez aceitar o fato. As notícias diziam também que a rede urbana em La Paz tinha sido desbaratada. Che percebeu que seus homens eram tudo o que lhe restava e, portanto, o único foco do Exército seria pegá-los. Estava certo.

O grupo mudou de rumo, em direção aos vilarejos de Pucará e La Higuera. Esperavam recrutar gente para a luta e conseguir comida. Em seu diário, Che anotou as dificuldades alimentares daqueles dias: “Urbano [codinome do cubano Leonardo Tamayo Nunes] matou um cavalo (...). Ao meio-dia tomamos seu sangue. De noite, assamos a cabeça e eu comi os olhos e o cérebro. Depois, sopa de frango.”

No dia 26 de setembro, às 3h da madrugada, a marcha recomeçou. Perto de La Higuera, Roberto Peredo caiu morto, atingido por um disparo. Seguiu-se um tiroteio. O saldo foi trágico: três mortos, dois feridos e duas deserções. Che percebeu que o Exército conhecia sua posição e que uma nova emboscada seria questão de tempo. Em Vallegrande, maior cidade da região, estava o quartel da unidade militar treinada para combater a guerrilha: o Segundo Batalhão de Rangers. Mais de 2 mil militares estavam no encalço de Che.

Apenas um homem

Em contraste com a selva que a guerrilha havia enfrentado durante meses, a região próxima a La Higuera tem mata baixa e vegetação rala. Lá, na manhã de 7 de outubro, Che e seus 16 homens encontraram uma velha que caminhava com sua filha. Temendo a delação, os guerrilheiros ofereceram à mulher 50 pesos pelo seu silêncio. A pobre senhora recebeu o dinheiro. E, assim que cruzou com militares, detalhou a posição exata dos barbudos.

Na madrugada do dia 8, o Exército bloqueou todas as rotas de fuga. Voltando de uma inspeção, dois homens de Che avistaram dezenas de soldados no alto do desfiladeiro. O grupo estava encurralado no fundo da quebrada de Yuro: uma garganta de 300 metros de comprimento e menos de 50 metros de largura. Che decidiu esperar a noite para tentar furar o cerco. A silenciosa tensão foi rompida por volta de 13h30, quando o Exército abriu fogo contra os guerrilheiros. Quatro deles caíram mortos. No tiroteio, Che foi atingido e não podia mais andar sozinho. Carregado pelo boliviano Simeón Cuba, ele permaneceu disparando até que um tiro arrancou a carabina de suas mãos. Che e Willy acabaram cercados e rendidos por militares bolivianos. Segundo o relato de um deles, o sargento Bernardino Huanca, o revolucionário teria lhe dito: “Não atire. Eu sou Che Guevara. Valho mais para você vivo do que morto”.

Dos homens de Che, dez escaparam da emboscada. Metade deles seria morta nos próximos dias. Apenas cinco sairiam das montanhas com vida (os bolivianos Guido Peredo e David Veizaga voltariam à luta armada e acabariam mortos em La Paz, em 1969. Apenas os cubanos Benigno, Urbano e Villegas ainda estão vivos). Che, Willy e o peruano Juan Pablo Chang, que também havia sido preso na quebrada do Yuro, foram levados a uma escola em La Higuera. Lá, Che foi interrogado. No dia seguinte, perto das 13h, Willy e Chang foram executados. Pouco depois, naquele calorento 9 outubro de 1967, sentado numa sala com chão de terra, Che foi assassinado pelo tenente Mario Terán com uma rajada de fuzil. Para evitar sinais de execução, não foram dados tiros na nuca ou na cabeça.

As longas garras da águia
Documentos recém-divulgados revelam os bastidores da atuação da CIA na caçada a Che Guevara
“Barrientos comunicou-me que, no dia de ontem, as autoridades bolivianas capturaram dois supostos guerrilheiros (Vicente Rocabada Terrazas e Pastor Barrera Quintana) nas cercanias de Ipita (Santa Cruz). Depois de terem sido interrogados em La Paz, nesta manhã, os dois suspeitos admitiram pertencer a um grupo de 30 ou 40 subversivos, que atuam nas cercanias de Ipita. Rocabada e Barrera confessaram que Che Guevara lidera o bando.” O telegrama ao Departamento de Estado americano, assinado por Douglas Henderson, embaixador dos Estados Unidos em La Paz, carimbado como supersecreto e postado em 16 de março de 1967 às 22h45, é a primeira menção em documento oficial – incluindo qualquer comunicado do governo boliviano –, à possível presença do revolucionário na Bolívia. Che já era um emblema vivo para a esquerda e a CIA (a agência de inteligência americana) o procurava desde o Congo, em 1964, onde ele havia liderado um grupo de guerrilheiros cubanos que tentou derrubar o ditador Joseph Mobutu. Em clima de Guerra Fria, Che e seu exército foram repelidos por bem equipados mercenários da CIA. Dois anos depois da derrota, Che já estava na selva boliviana. A relação estreita entre a CIA e a Bolívia, no entanto, precedia a chegada de Che. Nos anos 60, a agência aumentou sua presença na América Latina, buscando informações sobre Cuba e a influência soviética na região. O presidente René Barrientos cooperava bastante com os agentes dos Estados Unidos – ele chegara ao poder após receber mais de 1 milhão de dólares da CIA. “O dinheiro serviu para encorajar, nas palavras da própria agência, um governo estável inclinado em direção aos interesses americanos”, diz o jornalista americano Tim Wiener em Legacy of Ashes – The History of the CIA (“Legado das cinzas: a história da CIA”, inédito no Brasil). Depois do anúncio da presença de Che na Bolívia, Barrientos procurou o embaixador Henderson, em abril de 1967, para lhe informar que suas tropas estavam seguindo o guerrilheiro. Apesar de ter informações de que Che havia sido morto no Congo, a CIA enviou dois espiões para se juntar aos soldados bolivianos. Um deles era Felix Rodriguez, cubano dissidente que havia tentado derrubar Fidel na malfadada invasão da baía dos Porcos, patrocinada pelos Estados Unidos em 1961. Ele enviou uma série de boletins do campo de batalha – suas mensagens, tornadas públicas em 2004, são o rico testemunho de um confronto encoberto pelo mito. Da vila de La Higuera, Rodriguez falou por rádio com John Tilton, chefe da CIA em La Paz: “Em 8 de outubro de 1967, Che foi capturado depois de um confronto com os Rangers bolivianos”, dizia. Segundo Rodriguez, o alto comando boliviano estava decidindo o destino de Che. “Estou tentando mantê-lo vivo”, reportou. “O que tem sido muito difícil.” Rodriguez disse que, na manhã seguinte, tentou interrogar Che, que estava sentado no chão de uma sala de aula. Tinha pulsos e tornozelos amarrados, o rosto entre as mãos. Segundo o espião, eles falaram sobre o confronto no Congo e sobre o destino dos invasores da baía dos Porcos que haviam sido capturados por Cuba. “O governo executou todos os líderes guerrilheiros que invadiram seu território”, teria dito Che. “Então ele parou com um olhar irônico em sua face e sorriu como se reconhecesse nessa declaração sua própria posição em solo boliviano”, escreveu Rodriguez. A ordem para matar Che veio às 11h50. “Guevara foi morto com uma rajada de tiros à 1h15 da tarde”, relatou Rodriguez, por rádio, a Tilton. “As últimas palavras de Guevara foram: ‘Diga a minha mulher para casar de novo e a Fidel Castro que a revolução vai vencer novamente nas Américas’. Depois, a seu executor, ele disse: ‘Lembre-se: você está matando um homem’.” De La Paz, Tilton telefonou para o quartel-general da CIA nos Estados Unidos. O oficial Tom Polgar atendeu o telefone e, ao ouvir que Che estava morto, perguntou: “Você pode enviar as impressões digitais?” Tilton respondeu: “Eu posso enviar os dedos”. Sob o pretexto de acelerar a identificação do cadáver, as mãos de Che haviam sido cortadas.

Um rosto sem camiseta
O leal Willy ficou até o fim ao lado de seu comandante
Se Che Guevara pudesse voltar atrás a respeito de uma, apenas uma coisa que escreveu, talvez riscasse de seu diário um trecho de setembro de 1967: “Minhas únicas dúvidas são sobre Willy: ele pode tirar vantagem de alguns combates para escapar sozinho”. Willy era o apelido de Simeón Cuba Sarabia, um ex-mineiro boliviano de 32 anos, militante comunista que se integrou ao grupo de Che em março de 1967. Os colegas de guerrilha o viam como corajoso e disciplinado. Talvez por causa da natureza reservada de Willy, Che tenha suspeitado de sua lealdade. Não poderia estar mais enganado. Em 8 de outubro, quando Che e seus homens foram cercados, Willy tentou achar um jeito de furar o bloqueio do Exército. Che, que o seguia de perto, foi atingido. Willy voltou e arrastou o companheiro para fora da linha de tiro. Segundos depois, foram cercados novamente. Responderam ao fogo até que um tiro tirou a arma das mãos de Che. Willy novamente o levou para longe dos disparos, colocando-se entre o líder ferido e os inimigos. Exposto, Willy foi atingido vários vezes. Rendido por soldados, Willy confrontou-os: “Este é o comandante Che Guevara. Tenham respeito!” Willy foi amarrado a Che e levado para La Higuera, onde foram presos em salas separadas. No dia seguinte, Willy foi metralhado por três soldados. Antes da execução, ele teria dito: “Estou orgulhoso de morrer perto do Che”. Em 1997, seu esqueleto foi achado na Bolívia, na mesma cova que continha os restos de Che. Assim como muitos dos homens que tombaram na última guerrilha do comandante, hoje Willy repousa ao lado dele, em Cuba.

Saiba mais
Livros

Diário da Guerrilha Boliviana, Che Guevara, Edições Populares, 1980

Com prefácio de Fidel, traz um apêndice com documentos sobre a guerrilha. Uma boa versão do diário na internet, em espanhol, está em www.diariochebolivia.cubasi.cu.

Che - Uma Biografia, Jon Lee Anderson, Objetiva, 1997

Perfil completíssimo, fruto de cinco anos de trabalho. Tem diversos depoimentos de pessoas ligadas a Che – muitas das quais nunca haviam falado sobre o assunto antes.

Vida, Morte e Ressurreição do Che, Reginaldo Ustariz Arze, Brasbol, 2004

O autor boliviano viu de perto – e fotografou – o tratamento dado ao corpo de Che em Vallegrande. A obra pode ser encomendada por e-mail: editorabrasbol@uol.com.br.

Relatório da CIA – Che Guevara, de Maurício Dias e Mario Cereghino (org.), Ediouro, 2007

Tem documentos americanos recém-liberados sobre a caçada a Che Guevara e a identificação de seu cadáver.

Trinta anos para voltar
Saiba como foi o reencontro de Che com Cuba
Logo depois de ser executado em La Higuera, no dia 9 de outubro, Che Guevara foi levado de helicóptero a Vallegrande. Lá, seu corpo ficou na lavanderia de um hospital. Entre a dúzia de jornalistas que pôde vê-lo estava o boliviano Reginaldo Arze. “Naquela segunda-feira, quando vi o cadáver do Che, o reconheci facilmente”, afirma. Arze percebeu que o corpo ainda estava quente – o que contrariava a versão oficial de que Che teria sido abatido em combate no dia anterior. O cadáver permaneceu exposto durante toda a terça-feira e, depois, desapareceu. Suas fotos, no entanto, correram o mundo. Para conferir a autenticidade das imagens, Fidel Castro pediu ajuda ao argentino Alberto Granado, que vivia em Cuba e acompanhara Che na célebre viagem de moto pela América do Sul nos anos 50. “Fidel me chamou tarde da noite. Não havia dúvida: era Ernesto. Choramos muito”, disse Granado em entrevista a História em 2005.

Em 15 de outubro, Fidel reconheceu a morte de Che. Ao fim dos três dias de luto oficial, discursou em Havana despedindo-se do companheiro e prometendo preservar-lhe a memória. Assim fez. Primeiro, recuperando o diário de Che. No começo de 1968, Antonio Arguedas, então ministro do Interior boliviano, mandou secretamente a Cuba fotocópias das anotações (as páginas originais permanecem desaparecidas). Em 1º de julho, o livro foi distribuído para a população cubana. Arguedas também fez chegar a Cuba as mãos de Che, que haviam sido cortadas em Vallegrande. Elas as havia recebido no fim de 1967, num frasco de formol. A missão de tirá-las da Bolívia coube ao boliviano Juan Enrique Quiroga. “As mãos estavam cortadas de forma irregular, sugerindo que o corte não fora feito com instrumento adequado. Me pareceram grandes e musculosas”, disse ele à revista Veja em 1997. Após ficar cinco meses com o frasco debaixo de sua cama, Quiroga o levou até Moscou, em janeiro de 1970. De lá, as mãos foram para Cuba, onde estão guardadas no Palácio da Revolução.

O mistério sobre o resto do corpo, entretanto, persistia. Em 1995, o general boliviano Mario Vargas Salinas disse ao jornal The New York Times que Che havia sido enterrado no aeroporto de Vallegrande. Em 28 de junho de 1997, numa antiga pista de pouso, uma expedição de legistas argentinos e cubanos revelou uma vala com sete esqueletos. Um deles estava sem as mãos. Era Che Guevara. Em 12 de julho, seus restos mortais foram recebidos em Cuba. No dia 17 de outubro, Che foi enterrado com honras de Estado em um mausoléu na cidade de Santa Clara.

Revista Aventuras na História

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