sábado, 1 de maio de 2010

Civilizados, Bárbaros, Europeus Três homens de letras em face do inimigo - 1914-1925


Civilizados, Bárbaros, Europeus Três homens de letras em face do inimigo - 1914-1925

Yaël Dagan
EHESS- CRN (Centre de Recherche Historique). Boulevard Raspail 105, 75 014 - Paris, France. yaeldagan@pobox.com



Em um discurso pronunciado em Paris, diante da Academia de Ciências Morais e Políticas, em 8 de agosto de 1914, o filósofo Henri Bérgson deu sua versão da guerra que se desencadeava: "a luta engajada contra a Alemanha é a própria luta da civilização contra a barbárie".2 Esta fórmula estabeleceu o eixo principal do discurso dominante sobre a Grande Guerra, na França. Se o ódio ao inimigo é constitutivo de uma situação de conflito, a representação do inimigo como bárbaro, ameaçando a civilização, leva à sua desumanização radical, e sublinha o car áter total que a Grande Guerra teria, desde o princípio.3

A história cultural, ao contrário da antiga história das idéias, se interessa pelos sentimentos, e tenta lhes restituir o justo lugar no conhecimento do passado.4 A história dos intelectuais, ao contrário da história intelectual, se interessa pela vida dos "profissionais da manipulação dos bens simbólicos",5 em todas as dimensões, partindo do princípio de que "as idéias não passeiam nuas pela rua".6 A Grande Guerra é um excelente laboratório para o estudo dos sentimentos dos escritores, um período que a posteridade muitas vezes ocultou, por considerá-lo apenas um parêntesis.

Proponho-me, aqui, a seguir três homens de letras, escritores e críticos literários - André Gide, Jean Schlumberger, e Jacques Rivière -, durante o período menos conhecido de suas vidas: o da Primeira Guerra Mundial, e o do imediato pós-guerra. Entre os três, somente André Gide é hoje reconhecido como um grande escritor, que marcou seu tempo. Schlumberger e Rivière se ligam a Gide por um projeto comum: La Nouvelle Revue française (La NRF), uma revista literária que atingiu, no entre- guerras, um status hegemônico no mundo literário francês.7 A revista foi fundada por Gide e cinco outros escritores, em 1908; Schlumberger foi um dos "pais-fundadores". Rivière, o mais novo, se juntou ao grupo, em 1909, começando sua carreira literária como crítico. A partir de 1912, ele foi secretário da redação da revista.8 A revista pára de ser publicada em 1914, e, quando ela reaparece, em 1919, Rivière se torna seu diretor. No entre-guerras, o espírito de Gide continua pairando sobre a revista, onde ele é um de seus escritores mais venerados, e um colaborador importante. Schlumberger continua, também, a fazer regularmente notas críticas e textos literários. Esses últimos são, ao mesmo tempo, acionistas da sociedade que edita a revista, da qual Gaston Gallimard é o gerente. Gide, Schlumberger e Rivière formam o núcleo duro da revista, e encarnam a continuidade entre o pré e o pós-guerra, a despeito da interrupção de 1914 a 1919.

A questão do ódio ao inimigo e de suas representações, no percurso desses três escritores, será examinada no período de 1914 a 1925. Esse decênio se distingue por duas comoções: a passagem da paz à guerra, em agosto de 1914, que foi brusca e dramática; e, com a vitória, a passagem da guerra à paz. Esta segunda comoção não foi menos profunda que a primeira. Nessa dupla passagem - da paz à guerra, e depois, da guerra à paz -, a representação do inimigo nacional foi o elemento central do sistema de representações do período. O estudo do modo com que essa construção coletiva se inscreveu concretamente na biografia desses três escritores pode esclarecer não somente a história de La NRF, a despeito da interrupção da guerra, mas, também, o mecanismo de mobilização e desmobilização culturais (que se encontram no coração da Primeira Guerra Mundial, e até de outros conflitos contemporâneos), no qual o ódio ao inimigo aparece como um elemento constitutivo.9

Mobilizações e brutalizações, 1914-1918

NA mobilização, em corpo e espírito, dos intelectuais para a guerra é um fenômeno bem conhecido pelos historiadores da Grande Guerra. Ela é conhecida, sobretudo, sob o ângulo da contribuição à propaganda e, na retaguarda, pela manutenção da moral.10 Menos conhecida é a mobilização silenciosa de numerosos escritores que apoiavam a guerra, seja como soldados, seja na retaguarda.11 Gide, Schlumberger e Rivière entram nessa categoria, pois, quando sua revista deixa de existir, eles são privados de tribuna. Contudo, seus escritos íntimos - diários, cadernos e correspondências - trazem o traço de sua mobilização patriótica.

Gide: a busca da ordem

Os leitores de André Gide, muitas vezes, se surpreendem quando ficam a par da maneira como ele recebeu a guerra. Autor libertário de L'immoraliste, inimigo da família e da ordem, Gide atravessa a guerra do modo mais conformista, e não resiste à agitação nacionalista. Tendo 45 anos, em 1914, ele não é mobilizável. Esta posição lhe é, moralmente, muito desconfortável: "sem dúvida, àqueles que estão mobilizados, o porte dos trajes militares autoriza uma enorme liberdade de pensamento. Em nós, que não podemos vestir o uniforme, é o espírito que se mobiliza";12 reconhece ele, em seu diário. Ele procura, portanto, se engajar civilmente, e, de outubro de 1914 a março de 1916, passa seus dias na co-direção do Foyer franco-belga, constituído, em Paris, para acolher os refugiados franceses e belgas, que fugiram das zonas ocupadas pelos alemães. "Eu compreendo pouco a pouco aqueles que, durante essa crise extraordinária, preocupam-se em desarrumar o menos possível a sua vida. Não duvido que os acontecimentos não os eliminem, como aos elementos não assimilados",13 escreveu Gide a Schlumberger, no início de 1915. Durante esse período, Gide confidencia, em seu diário, sua visão exaltada de uma guerra regeneradora, que ele cria estar vivendo. A guerra é descrita como uma "chance imensa, essa vantagem. que se é necessário agarrar "intrepidamente"; ela seria o "cataclisma" que, "no secreto de nossos corações, desejamos"; vinda "do profundo da humanidade, ela seria o grande golpe de vento que varreria a impureza".14

A "guerra regeneradora" deita suas raízes no tema da decadência, muito divulgado no fim do século XIX, e ao qual Gide retornou, às vésperas da guerra.15 Essa visão de uma decadência nacional, que somente a guerra poderia frear, é um dos fios condutores que ligam o pré-guerra à guerra, que explicam porquê a guerra foi amplamente aceita pelos escritores. Ela se inscreve em um movimento paradoxal de idéias e de sentimentos que caracterizariam os anos 1910, nos quais La NRF exerceu o papel tanto de reveladora, quanto de incitadora.16

Mas, essa visão sofre uma erosão, à medida que a guerra se prolonga. O que ocorre, sem dúvida, por ela contrastar com a experiência cotidiana de Gide, que consiste em levar auxílio aos infelizes que perderam tudo, em razão da invasão; um trabalho paciente e sem glória. O otimismo que o dominou, no início da guerra, não resiste à prova de uma guerra longa e mortífera. Assim, Gide começa a desenvolver, em seu diário, uma "teoria" da superioridade alemã. Com efeito, a guerra seria regeneradora para a França, na medida em que ela a forçaria a se rejuvenescer, a se modernizar. A ação, a juventude, a virilidade são os valores que a França deveria seguir, para se salvar. Indo ao mais fundo dos seus sentimentos, ao admitir viver uma guerra que dá a luz à "modernidade", Gide é forçado a reconhecer os méritos desta na Alemanha, e não na França. Pois, segundo ele, é justamente a Alemanha que dá, na guerra, a demonstração das forças da modernidade, da juventude, e da virilidade. Daí, a passagem à valorização do país inimigo é lógica: "Parece-me, também, que o massacre não tem a mesma significação para o povo que se rarefaz, que para um povo muito prolífico. A Alemanha que sangra uma aldeia sabe que pode repovoá-la; o excesso de população convida ao massacre; é necessário criar" um lugar "diante de si mesmo".17 A França, em compensação, devastada pelo alcoolismo, é um "país que não sabe mais se defender". Esta é a razão pela qual Gide pode se apresentar como favorável à "idéia germânica do golpe de charrua: supress ão dessa população corrompida, incurável, intratável - não resta mais que a suprimir. Chamamos de crueldade essa medida de ordem sanitária. (...) Nesse caso, vale mais se deixar invadir: ser salvo".18 Ainda que essa germanofilia se aproxime, ás vezes, do derrotismo, ela não é o fruto de um pacifismo, mas de uma admiração das virtudes dos alemães:

No passo em que vamos, se formará, dentre em pouco, um partido germanofilico na França, que de modo algum será recrutado entre os anarquistas e os internacionalistas, mas sim entre aqueles que se virão forçados a reconhecer a constante superioridade da Alemanha. Eles julgarão, com razão, que é bom, que é natural, que esta superioridade governe.19

Essas reflexões vão à contra-corrente do discurso dominante da guerra, que faz da Alemanha a encarnação do mal; uma equação várias vezes apresentada e repetida, na qual a França representa a civilização, e a Alemanha, a barbárie. São estas proposições que Gide confidencia apenas a seu diário, não aparecendo em nenhuma de suas cartas. Elas não passariam pelo crivo da censura, caso se tornassem públicas, durante a guerra. Evidentemente, elas são de uma natureza chocante, e podem parecer subversivas. Mas, ao se observar de perto, Gide não faz mais que inverter a equação, ao atribuir um valor positivo à Alemanha, e um negativo à França, inscrevendo-se diretamente nesta linha de representa ção binária. Em seu diário, encontramos, repetidas vezes, a reprodu ção desses lugares comuns mais banais sobre a França e a Alemanha. Da comparação entre as duas culturas nacionais, resulta que os alemães pecam pela "falta de contorno", o que explica ausência de uma pintura digna sobre o outro lado do Reno. Mas, essa falta de contorno é o que lhes dá uma extraordinária capacidade de expansão:

Ela é da família dos fícus, e comparável ao banian (figueira da índia), sem tronco principal, sem definição, sem eixo, mas na qual os raminhos menores (e até mesmo separados do tronco) brotam mais vivos, onde quer que seja, no alto dos braços, embaixo das raízes; e vivem, crescem, prosperam, se desenvolvem e se tornam, por sua vez, uma floresta.20

Sua admiração pela brutalidade e pelas técnicas inspiradas no darwinismo social, aliadas à idéia "germânica", encontra uma justificativa no seu contato com os infelizes do Foyer:

Confesse que, se você estiver tomado pela idéia fixa de uma melhoria possí- vel da raça humana, uma melhoria prática e quase imediata, você não procuraria insanamente prolongar a vida dos malformados, dos corrompidos, dos indesejáveis, etc., nem encorajaria, ou mesmo, simplesmente, permitiria sua reprodução! Para permitir aqui, e se sacrificar ali. Nada mais lógico. Uma vez mais, se procura saber quem merece triunfar.

Quantas vezes, no foyer, cuidando, consolando, protegendo estes pobres farrapos humanos, capazes somente de gemer, enfermos, sem sorrisos, sem ideal, sem beleza, senti se erguer em mim a angustiante dúvida: Merecem eles serem salvos? A idéia de os substituir por outros mais bem sucedidos faz, certamente, parte da filosofia germânica. Esta lógica é, portanto, monstruosa. 21

Este texto extremamente duro ilustra o processo de "brutalização", indicado por George Mosse; segundo este a brutalidade começa pela indiferença crescente com respeito à morte em massa.22 Esse processo de endurecimento, de desumanização, ao longo da guerra, é perceptível em nossa amostragem. No discurso de Gide, a "brutalização" se exprime na desumanização de si mesmo.

Levado por sua admiração pela ordem e pela brutalidade, desencorajado por uma guerra longa e que não traz a vitória, Gide se inquieta, pouco a pouco, com a ameaça da guerra civil e da desagregação interna: "Ai! Vê-se, à hora do perigo, que o edifício inteiro, de alto a baixo, está carunchado, que a sociedade inteira... Mas, para onde eles dirigem os olhos, para não terem que ver a seu redor? Não há um andar do edifício social em que não se constate a insubmissão de alguém",23 exclamou ele em novembro de 1915. Gide se consterna com Romain Rolland, e com a agitação anti-militarista que se forma em torno dele: "Tudo isso trabalha deploravelmente a favor da guerra civil".24 Mais tarde, assim que a Revolução Russa passa à sua fase bolchevique, é o socialismo quem ameaça suscitar a guerra civil.

A busca da "superioridade", da "força", acrescida ao receio de uma guerra civil, o conduz diretamente à Ação Francesa. Durante a guerra, Gide admira nos alemães, e em Maurras, a mesma coisa: a força. "Essa guerra inteira parece uma dar o exemplo disto: que mesmo com as mais belas virtudes do mundo, não se consegue nada sem método. É o que ensina Maurras; e o que a Alemanha põe em prática".25 E, 1917, ele adere ao jornal da liga de extrema direita, e troca elogios com Maurras.26 A adesão provisória de Gide à Ação Francesa ilustra o sucesso do movimento, durante a Grande Guerra, sendo um de seus apogeus.27

Schlumberger: do patriotismo ao nacionalismo

Sofrendo de insuficiência cardíaca, Schlumberger foi reformado, em 1914, aos 37 anos de idade. Levado pela onda solidária de agosto de 1914, ele chegou a se alistar como voluntário, passando os primeiros anos da guerra numa bateria pesada comandada por seu irmão. No início da guerra, seu discurso permanece moderado: confrontado com a realidade do campo de batalha (ele permanece em um posto de retaguarda, mas, não obstante, próximo da linha de frente), ele observa o absurdo da morte em massa e recusa a mistificação da guerra. Contudo, em 1916, ele muda seu sentimento, ao se tornar oficial no centro de informa ções de Réchésy, na fronteira franco-suíça. O contato com os nacionalistas causa o endurecimento de sua postura. Ele se dá conta, em uma carta a Gide, datada de 27 de janeiro de 1917: "Sob a uniformidade do trabalho de cada dia, a vida que levamos aqui continua a ser rica e comovente. No fundo, é a primeira vez que mantenho um contato prolongado com os espíritos nacionalistas (no sentido mais amplo)". Esse contato, admite ele, o comove:

Eu mentiria se quisesse negar que, no mais profundo de mim, se passa uma grande comoção. Meus amigos se aproveitam de meu estado de paixão, de minha ira, do meu desejo de causar dano, para atacar meu ponto de vista tucidiano! Talvez, a formação protestante torne particularmente difícil a ren úncia ao universal... Mas, em que embarco?Quero dizer, é teoricamente difícil, pois praticamente tudo isso foi varrido.28

A referência a "um ponto de vista tucidiano" remete a um ensaio que ele redigiu pouco antes da guerra, Enlisant Thucydide, no qual Schlumberger, sendo "totalmente inapto a reações patrióticas", segundo suas próprias palavras, veria a imparcialidade de Tucídides com uma admiração sem reservas. "A legitimidade desse assentimento total não tinha sido, até o agora, posto à prova", explica ele, em suas memórias. "No entanto, o que a guerra me trouxe de mais positivo foi a descoberta de uma certa fraternidade, nas emoções coletivas. Ela me revela o que se pode ter de salutar nas cóleras nacionais, e de estreito nos julgamentos" acima do conflito...29

Pode-se perceber o endurecimento de Schlumberger através do aumento de sua ira contra a Alemanha. Gide, que, no entanto, está convencido da pertinência dos caracteres nacionais, não chegaria a imaginar um pós-guerra sem a continuação das relações franco-alemãs. Em 1917, ele escreveu a Schlumberger que, depois da guerra, as relações intelectuais entre os dois países prosseguiriam "mais belas e com uma maior" consideração "por parte da Alemanha para conosco, reflexo de uma admiração que nós os constrangeremos a ter por nossas armas. Eles desde já se persuadem de que um povo que os resiste tão heroicamente não é simplesmente o povo superficial que eles gostariam crer".30 Mas, essa carta encontrou Schlumberger com uma disposição totalmente diferente:

Meu velho, (...) encontrei milhares de coisas belas para lhe dizer, em particular para combater esta idéia de que conquistar a Alemanha com nossa arte seja o mesmo que a conquistar. Não, nós a conquistaremos quando vendermos a ela couro e minério; nós a forçamos a passar em nosso caixa, mas, quando a fazemos participar de nossa arte, a convidamos à nossa mesa. É bem diferente. É um ato de polidez e cortesia. No entanto, estamos, atualmente, envolvidos numa vida em que não há outra salvação que uma luta a todo custo. É pouco provável que a paz nos coloque em uma situação assaz brilhante, para que possamos nos permitir a esta sorte de elegâncias. Certamente, importa que traduzamos as obras alemãs sobre metalurgia e química; pois podemos tirar proveito delas; mas, não faremos mais que dar satisfação ao orgulho teuto, quando fazemos conhecido um Dhmel ou um George. A cordialidade artística desempenhou um papel muito sinistro no pré-guerra. Ela foi uma bucha de clorofórmio, destinada a nos adormecer. Não nos exporemos uma segunda vez. Os alemães se aproveitam de nossa arte, como de nossas prostitutas. Mas, se, precisamente todos os nossos esforços tenderem a nos endurecer contra a invasão?.31

O antagonismo anti-alemão de Schlumberger traduz uma lógica defensiva, que está no coração do discurso da guerra de 14-18, na França. Os inimigos são compreendidos como uma ameaça contra os civis, os soldados e, até mesmo, a civilização.32 Assim, ele se opõe categoricamente a todo diálogo com a Alemanha, notadamente no domínio cultural. A luta a todo custo, na qual ele se empenha, implica na manutenção das hostilidades no plano cultural, mesmo após o fim da guerra. Nesse momento, em que Gide vê na guerra uma ocasião para se reabilitar a honra francesa, para, em seguida, se estabelecer um diálogo francoalemão, sobre bases favoráveis à França, Schlumbeger exclui toda possibilidade de reconciliação futura entre os povos.

Rivière: da humilhação ao ódio

Ao contrário de Gide e Schlumberger, Jacques Rivière, com 28 anos em 1914, se mobilizou desde os primeiros anos da guerra, e partiu para o fronte, como sargento de um regimento de reserva da infantaria. No momento da mobilização, ele é arrebatado por um espírito patriótico, e exprime seu consentimento para com o sacrifício. Em 25 de agosto, após apenas três dias de combate, ele é feito prisioneiro, e passa cerca de três anos em um campo de prisioneiros, na Alemanha. Este destino é, para ele, o cúmulo da humilhação, e suas cadernetas de cativeiro portam o traço dessa experiência humilhante, e de seu diálogo com Deus. Em 1° de julho de 1917, liberto, ele se encontra só, em Engelberg, na Suíça, sem sua mulher e sua filha; com as quais, em breve, viria a se reencontrar. Ao sair da missa de domingo, sua primeira enquanto homem livre, ele se comove:

Que Deus me preserve de semear o ódio! Que Deus me preserve de aumentar, o mínimo que seja, a soma do ódio, o capital do ódio! "Semeemos o ódio!", disse um jornal, que li com meus olhos.
Não; mas abafemos o ódio, ajudemos, com todas as nossas forças, a findá-lo. Se eu conhecer qualquer fato que possa contribuir a reinflamá-lo, o calarei cuidadosamente. Se eu tiver qualquer motivo para o sentir, eu o esquecerei. 33

Cristão, o ódio lhe é interdito. Mas, ele reconhece haver sido posto à prova: "Eu conheci o ódio, algumas raras vezes; e cedi a ele, porque acreditei que estaria bem assim, e que esse seria o preço de se ser um homem. Mas, hoje, sei que o ódio é mal, e que não se é homem senão ao preço de não o sentir".34 Pode-se acreditar que Rivière teria dito isto de boa fé, posto que, em 5 de julho, ele escreve a Jacques Copeau:

Pois então, J.[ean] Sch.[lumberger] me escreveu, essa manhã, uma carta que me deu muito prazer, mas onde há alguma coisa que me escandaliza, ou que, ao menos, me intriga fortemente. Ele fala do ódio. É possível possuí-lo ainda? Não sei por mim, e pergunto. Em todo caso, no que me concerne, não sinto mais nenhum. Pelo menos, acho. Ou ele terá dormido, como o resto?35

Mas, a guerra não terminara, e Rivière ainda não está curado de suas seqüelas. Durante o verão de 1917, ele escreve dois textos pacifistas, mas, no início de 1918, ele decide classificá-los como indignos, diante da paz de Brest-Litovsk, firmada entre a Alemanha e a Rússia.36 Como muitos de seus contemporâneos, ele passa, durante o ano de 1918, por uma "remobilização",37 e, retornando à França, em junho de 1918, termina seu livro L.Allemand, souvenirs et réflexions d'un prisonnierde guerre. Esse livro - inscrito na tradição da "psicologia das nacionalidades", muito em voga neste período"38 apresenta o conflito entre a França e a Alemanha como uma luta entre dois temperamentos antagônicos: o Francês, herdeiro de uma tradição clássica; e o alemão, definido por sua "ausência".

No início do livro, Rivière anuncia sua idéia principal. Os alemães são, com certeza, bárbaros, mas não "ao modo dos Hunos". O que os caracteriza não é a violência extrema, mas "a falta de topete: Tome-os bem no início de si mesmos, antes que sua formidável vontade tenha tido tempo de intervir: eles não são nada; eles não desejam, não esperam, não pretendem nada".39 Esta "falta de crista", que Rivière chama também de "indiferença" radical, não é o "fatalismo" eslavo ou oriental, o qual é resignação: "O alemão não curva seus desejos e sonhos diante de um incidente considerado insuperável. A verdade é que eles não têm, de início, nem desejos, nem sonhos; nem amor, nem ódio; nem prazer, nem desgosto; nem paixão de qualquer tipo".40

Deste defeito resulta a incapacidade alemã de distinguir entre o bem e o mal, o verdadeiro e o falso. Paradoxalmente, o alemão se distingue, contudo, por uma extraordinária força de "vontade", posto que o "dever" substitui, neles, a inteligência. Se a primeira parte do livro se apóia sobre anedotas tiradas da experiência de cativeiro de Rivière, na segunda parte, ele reafirma estas observações, e as confronta com uma série de artigos do ensaísta alemão Paul Natorp, acerca do destino nacional da Alemanha, publicados em 1915, na revista Deutscher Wille des Kunstwarts. A impotência analítica da Alemanha produz "o espírito de síntese universal" e "a incapacidade para a contemplação". Daí, Rivière chega à constante da "barbárie alemã":

Podemos ver, nisso tudo que precede, que não me agradam muito as injúrias. Eu tomei, especialmente, o cuidado evitar, pelo maior tempo possível, a grosseira palavra barbárie. Eu mesmo condenei o emprego que dela, correntemente, se tem feito, para estigmatizar certos defeitos dos alemães, que creio terem sido mostrados de uma forma totalmente diferente. Mas, enfim, chegou o momento no qual não posso mais me impedir de soltá-la. Sim, tudo bem refletido, mesmo se o triunfo da Alemanha, mesmo se a revolução do mundo pela Alemanha, viessem representar um progresso material positivo, eu afirmo que isso não poderia ser ao preço de um retorno à mais assustadora barbárie intelectual.41

Certamente, Rivière reconhece as virtudes dos alemães, e, notoriamente, seu talento para a inovação técnica, que se inscreve em sua aptidão para a revolução. Mas, Rivière recusa o vocábulo "civilização" para esse mundo à moda alemã; pois, "se haja, ali, civilização, é necessário, antes de tudo, que haja preferência e cortesia, e que elas sejam definitivas".42

Ao contrário, os franceses são, segundo Rivière, um povo conservador: "É inútil dissimularmos que somos um povo nenhum pouco progressista. (...) O passado nos tem, e nos comanda".43 Seu amor pela França é o amor pelo imobilismo e pelos valores "garantidos".44 Como para Gide, a Alemanha representa a modernidade e a juventude, mas, ao contrário de Gide, Rivière delata estes atributos. O alemão é um ser se formando, uma eterna juventude, e a juventude não é "interessante":

Mas, ninguém pode ser menos interessante. O que há, talvez, de mais terrível para se dizer sobre os alemães, é justamente que eles não são interessantes. E, como se ligar a esses seres em perpétua formação? 'Nós somos jovens', gritam eles. Vocês não percebem isso? Infelizes! Como se, assim, pudessem nos seduzir! E, o que têm eles de menos interessante que a juventude? É possível se comover acerca das possibilidades infinitas que ela guarda. Pode-se fazer lirismo disso. Mas, quem quer que seja que tenha gosto pela realidade psicológica, volta sua atenção para os seres acabados, completos. Em se falando de humanidade, eu conheço, eu amo, aquele que é, aquele que resiste, aquele que pensa, e sente, e vive como tal, e não de outra maneira. A deutsche Jüngling me aborrece. Se ao menos eu sentisse que eles envelheceriam! Mas, não. Eles serão jovens para sempre, er ist jung in Ewigkeit. Eles serão sempre em potencial. E eu, justamente, não me apaixono senão pelo que é de fato.45

Graças à sua paixão "insana para chegar ao ponto",46 dispomos de fontes suplementares que nos esclarecem sobre a gênese de L'Allemand. Os rascunhos indicam claramente que a redação desse livro foi, para Rivière, uma maneira de fazer face ao trauma:

Eu escrevi, então, o que será seguido apenas pelo vomitar a Alemanha e os alemães. Uma simples operação higiênica. Eu quero retomar meu fôlego; eu quero ser eu mesmo, de novo, todo inteiro. Eu não sei muito bem o que vou dizer. Mas, em todo caso, direi que os alemães não são eu, e que eu não sou os alemães; direi que eles são a coisa menos suportável que foi lançada ao mundo, para o meu temperamento; eu os sacudirei de mim (se eles, talvez, estiverem um pouco pendurados), como o objeto mais inoportuno, o mais ofensivo ao meu gosto e aos meus instintos, que senti pesar sobre meus ombros.47

Este livro violento é, portanto, uma resposta a uma experiência violenta. Um outro texto ligado a este livro esclarece mais sobre que tipo de traumatismo que o perturba. Retirado de seus rascunhos, este extrato foi publicado pela La NRF, por ocasião do terceiro aniversario de morte de Rivière, em fevereiro de 1928. Este texto descreve sua confusão, no momento em que ele se encontra só, em sua cela, onde foi castigado:

... Tão logo me vi só, bem recolhido em minha sepultura, sob o triplo segredo da fechadura, como uma garrafa que ainda não está em tempo de ser bebida - as noites são tão frias, a fome tão grande, que nos damos por satisfeitos com tão pouco que um certo desespero se apodera de mim. Penso em tudo o que me hão roubado; estou humilhado, envergonhado, horrivelmente despojado. Por mais que eu faça, eu conto os dias que restam para me libertar. E, ainda que toda minha vontade se tensione neste sentido, não fico mais tão certo de chegar até o fim. Esta lenta miséria se utiliza mais do que de grandes provações. Tenho o coração fechado e infeliz.

Nestas condições, o cúmulo da humilhação reside, de fato, no sentimento de uma perda total de identidade:

pouco a pouco a febre me ganha: parece-me que eles irão voltar, que escuto seus passos. Dos quatro pontos cardinais, tenho a impressão de que podem marchar sobre mim, entrarem em minha casa, em mim, a todo instante, arrancarem- me o que ainda resta, e me deixarem ali, uma vez mais, como uma coisa da qual não se precisa, roubado, violado. Não conheço nada mais desmoralizante que a espera do mal que podem lhe fazer, somada à perfeita impossibilidade de lhes escapar.48

Rivière admite, aqui, ter passado ele próprio por um processo de "desumanização", resultante, ao mesmo tempo, da "penetração" do inimigo até em seu corpo, e de sua redução ao estatuto de um simples objeto. Este ponto revela uma verdade essencial da guerra 14-18 (e, sem dúvida, uma generalidade das experiências da violência extrema): o ódio ao inimigo aparece como um mecanismo psíquico que visa ao reencontro da própria identidade, em um contexto onde todos as referências se embaralham. Em se desumanizando o inimigo, pode-se esperar re-humanizar a si mesmo, e se redesenhar os contornos da própria identidade.

Desmobilização e re-humanização: 1919-1925

O texto precedente mostra como três experiências diferentes da guerra levaram a formas diferentes de se relacionar com o inimigo. A violência que caracteriza as representações do inimigo junto a cada um de nossos protagonistas é um produto da situação de guerra: ela é construída historicamente, e está intimamente mesclada às questões de identidade, que se encontram perturbadas em tempos de guerra. Mas, podese prever, como disse John Horne, que uma tal divisão identitária e "uma formulação tão cruel do Outro nacional dificilmente sobrevivem nas condi ções ambíguas da paz, se desagregando, em seguida".49

Rivière: da culpabilidade à desmobilização

Em Rivière, esta passagem foi mais rápida. Assim que o livro é impresso, ele já sente remorsos, e exprime a defasagem entre o conteúdo do livro e seus sentimentos. Em 30 de outubro de 1918, algumas semanas antes da impressão, ele escreve à sua mulher:

É meu pobre livro [...]. Eu o detesto, eu o execro, se eu tivesse apenas um pouquinho de coragem, pararia a impressão, pois sei que, assim que ele for publicado, o lamentarei, e que este será um remorso para toda minha vida. Os escrúpulos que confesso em meu prefácio eram legítimos, eu deveria tê-los escutado.
Mas, te poupo dos meus remorsos antecipados, pois bem sei que serei covarde o bastante para deixar que o assunto chegue ao fim. É necessário, ao menos, que eu aceite francamente minha própria infâmia.50

Motivado por sua culpa, ele anuncia, a partir 1919, um giro em seu pensamento, como se pode ler em sua carta a Jules Romains, na qual responde suas críticas contra L'Allemand:

Meu destino é totalmente desfavorável. Estou mais consciente que você de nossos imensos defeitos, e de que os alemães podem ter qualidades. Esforçarei-me, agora, para lhe dizer isto. Minha única covardia é, talvez, ter que começar por isto que, em meu pensamento, poderia ser o mais lisonjeiro para a opinião mediana entre nós.51

Sendo o diretor da La NRF, de 1919 a 1925, ano de sua morte súbita, aos 39 anos de idade, Rivière publicou na revista inúmeros artigos políticos que exprimem este "destino". Em maio de 1921, nas Notes sur un événement politique, ele se propõe a ler o fracasso das negociações de Londres52 à luz do abismo psicológico que se abre entre os diplomatas franceses e alemães; os quais representam, precisamente, as mentalidades de seus respectivos povos. Neste ensaio, Rivière mantém a oposição irredutível entre o caráter francês e a sua "falta" nos alemães, tal como havia desenvolvido em seu L'Allemand; mas, desta vez, mostrando todos os defeitos que a rigidez francesa comporta, e as virtudes da plasticidade e da flexibilidade alemãs. Ao passo que os franceses estão presos ao passado, os alemães não querem mais que esquecê-lo. No entanto, para se construir a paz, sustenta Rivière, a memória se torna um obstáculo: "Nós somos iguais a estes doentes a quem falta de sono os torna incapazes; nós precisamos, antes de tudo, de um pouco de esquecimento".53 A mania dos franceses de querer sempre "ter razão" é contra-produtiva, segundo Rivière: "Passando por cima de algumas avers ões, e da amargura de nossas lembranças, não poderíamos tirar proveito, desta vez, daquele "vir a ser", do qual a Alemanha superabunda, e que a sorte nos pôs à disposição?". 54

Um ano mais tarde, ele torna a atacar, esta vez acerca do fracasso da Conferencia de Gênova.55 Em Les dangers d'une politique conseqüente, ele culpa Poincaré, com o título indica, pelo desfecho e pela "conseqüência" restritos de sua política: "Estamos bem satisfeitos com as injustiças que podemos provar que somos vítimas. Ao passo que seria preciso refletir e trabalhar".56 Enfim, em plena crise de Ruhr,57 Rivière se torna a expressão mais nítida do fracasso do projeto de paz. É agora a mentalidade francêsa que se torna o obstáculo:

Nossa concepção de paz, se não é muito jurídica, permanece militar. Nós nos preparamos para ver a paz nascer miraculosamente de nossa constância. Nós não nos ocupamos da vontade do adversário, nem em descobrir seu significado, e se ela pode se unir à nossa: nós não sonhamos com nada mais que quebrantá-la.58

É, agora, o esquecimento que Rivière exalta:

Quatro anos se passaram, após a guerra. Os culpados são culpados: é facultado a cada um nomeá-los, e os detestar, em seu coração. Busca-se, hoje, a paz. A paz que falta. É preciso retomá-la. É preciso concebê-la como um organismo, e não decretá-la, mas, sim, dar-lhe vida. [...] é preciso instituir o esquecimento.59

A paz será construída graças a um acordo comercial com a Alemanha, mais importante e mais provável, segundo ele, que um acordo intelectual ou cultural. A prosperidade produzirá a paz:

Não posso deixar de crer que a Alemanha, no fundo, pode facilmente se desinteressar pela guerra. Estou convencido que ela não tem um gosto profundo pela guerra, e que uma prosperidade bem regulada, na qual eles teriam uma boa chance de cumprir com as condições fundamentais, os dissuadir á, por um longo tempo, de recorrer.60

Quando se pensa no "milagre alemão", que se seguiu ao pré-guerra, e na pacificação da Alemanha antes do nazismo, esta idéia parece muito correta, embora avançada para sua época.

A insistência de Rivière acerca do esquecimento parece ir à contracorrente da tendência atual de transformar a memória no novo imperativo categórico das sociedades ocidentais.61 Contudo, no contexto de uma situação pós-conflito, e quando se pretende que a memória de um povo seja, ao mesmo tempo, vencedora e penetrada por um sentimento de vítima, mais que memória, arrisca-se a produzir uma fixação narcisista coletiva, impedindo a sociedade de olhar para o futuro.62 A política do esquecimento, ou ao menos aquela que não cultiva uma memória vitimista obsessiva, não seria uma condição necessária para se virar a página?

Se Rivière continua convencido da pertinência dos "caracteres nacionais", a transformação no uso que ele faz desta teoria é, contudo, espetacular. Ela não deixa de intrigar seus contemporâneos. Um leitor, escrevendo-lhe após seu artigo sobre L'entente économique, se espanta: "Acabo de ler seu artigo, publicado na NRF de maio. E, me pergunto se é você o autor de L'Allemand, quem o escreveu".63 A este propósito, Alfred Fabre-Luce, crítico e escritor (ao qual, retornaremos), disse, em uma homenagem a Rivière: "Em pouco tempo, Rivière se viu censurado pelos alemães, por conta da antiguidade de seus preconceitos; pelos franceses, pela novidade de suas idéias conciliadoras".64

Gide: a continuação do diálogo

A reação de Gide aos artigos políticos de Rivière é entusiástica. A propósito dos "perigos de uma política conseqüente", Gide escreveu a Rivière:

No fundo, não lhe escrevi para lhe contar do prazer, do contentamento, do encantamento que tive, ao reler seu artigo. Meu velho, ele é excelente - excelente. E quanto me apraz a linha sutil, exata e torsa da frase! Eu gostaria de lhe fazer alguma crítica, para reafirmar meu elogio - mas não encontro nenhuma. Excellentíssima, murmura Madame Théo, perto de mim.65

Em Gide, também, a desmobilização se deu muito rapidamente, mas de uma outra maneira. Ao fim da guerra, depois de um breve momento de remobilização, no qual se diz a favor da punição da Alemanha, Gide se afasta da visão essencialista das duas identidades nacionais, a francesa e a alemã.

Os partidos nacionais, de um e do outro lado da fronteira, exageram na porfia das diferenças de temperamento e de espírito que, segundo eles, tornariam impossível qualquer acordo entre franceses e alemães. Estas diferenças, é certo, existem (...). Acredito, no entanto, que elas são menos essenciais e nativas, que exaltados com cobiça pela educação familiar, pelo ensino nas escolas, depois, pela imprensa. (...) No terreno da cultura, tanto no das ciências, quanto no das letras e das artes, os defeitos e as qualidades de uma parte e da outra são a tal ponto complementares, que não se poderia tirar mais proveito deles em um acordo, que prejuízo, em um conflito.
Eu não posso esquecer, ai!, que o problema atual não concerne simplesmente às relações diretas entre indivíduos. Um escritor não tem, certamente, compet ência para estabelecer as condições precisas de um acordo político entre Estados, mas ele tem o direito e o dever de afirmar o quanto este acordo lhe parece desejável; digamos mais: indispensável, na situação atual da Europa. Não há, atualmente, um erro mais funesto para os povos e para os indivíduos, que crer que se possa passar uns sem os outros. Tudo o que se oponha aos interesses da França e da Alemanha é nefasto para os dois países, simultaneamente; benéfico é tudo aquilo que leva à satisfação dos interesses mais solidários.66

Esta rápida desmobilização se explica, no caso de Gide, pelo fato de que seu antagonismo anti-alemão, durante a guerra, foi, em parte, superficial; e, de outra, incoerente. Para um homem que deu sua aprovação à guerra, sob a perspectiva da ameaça existencial, a suspensão da ameaça leva, naturalmente, ao caminho de volta aos princípios da paz. Mas, publicamente, ele permanece reticente quanto a expressar posições muito conciliadoras frente à Alemanha, e trata desse tema com muita prudência. Em 1921, sente, por exemplo, que os alemães não têm tato, e decide não responder a um convite para ir à Alemanha, feito por Franz Blei, seu tradutor alemão, com quem manteve "relações literárias muito boas, antes da guerra". Esta foi a primeira carta do outro lado do Reno que ele recebeu, depois da guerra; e a qual ele cita em seu diário:

Porque você não vem à Munique? - me perguntou ele. Você será recebido com braços abertos; e experimentaria, seguramente, ao deixar a França por um instante, o mesmo alívio que nós, alemães, experimentamos quando, na Suíça, por exemplo, escapamos à terrível opressão que pesa sobre nossa pátria.... O que responder a isto?, [acrescenta Gide]. Nada, não é? Eu não respondi.67

Estas hesitações terão fim em novembro de 1921, em um breve artigo, intitulado Les rapports intellectuels entre la France et l'Alemagne. Ele denuncia "este isolamento no qual se pretende, às vezes, manter a Alemanha, que poderia, ao fim das contas, se virar contra nós".68 Seus encontros com Walter Rathenau e Ernst Robert Curtis, em 1921, o convenceram da importância desta retomada de relações; com Curtis, Gide manterá uma amizade que durará mais de trinta anos.69 No caso de Gide, pode-se constatar que um ódio menor, em tempos de guerra, permite uma desmobilização rápida.

Schlumberger: o retorno de 1923

O intercâmbio cultural e universitário foi o carro chefe do novo projeto. Foram concedidas bolsas de estudo e auxílios de viagem para estudantes e profissionais hispanomericanos que desejavam ir para a Espanha. Houve custeio de missões culturais espanholas na América e estimulo à vinda de conferencistas daqueles países. Muitos Congressos foram organizados com o mesmo fim de aproximação com os hispanoamericanos.

A desmobilização de Schlumberger foi mais lenta e mais dolorosa que a de Rivière e Gide. Enquanto Rivière é posto fora de combate, no início da guerra, havendo retomado a vida civil, desde 1917; enquanto Gide está muito longe da guerra, na retaguarda; Schlumberger não estar á desmobilizado (militarmente) antes de fevereiro de 1919. Neste momento, ele não considera a guerra terminada.70 Assim que reaparece La NRF, ele se insurge contra a orientação que Rivière declara querer lhe dar. Em seu artigo-programa, publicado no início do primeiro número da revista, no pós-guerra, Rivière denuncia os males da guerra, notadamente sua violência moral sobre os espíritos, e conclama o retorno aos princípios da revista do pré-guerra: uma literatura "pura", contra todas as formas de literatura "mobilizada".71 Em resposta, Schlumberger contesta: "a guerra terminou, eu gostaria de acreditar nisso, pois me vejo desmobilizado; mas, ela nos deixou à face de perigos tais que, tão mal armados, tanto dentro quanto fora, apreciamos a felicidade da trégua, sem ousarmos nos deixar levar à despreocupação da paz".72 Esta ameaça do recomeço imediato da guerra deve, segundo ele, ditar uma postura de resguardo:

Para chegarmos a nos pôr totalmente a serviço do país, tivemos que sacrificar tanto os gostos, as preferências, os hábitos intelectuais, no esforço de sermos tão rudes que, se for necessário, em breve, recomeçar, se exigirá de nós que não percamos nosso treinamento. Em nossa idade, não somos tão flexíveis para combater e se recuperar inúmeras vezes. Durante cinco anos, nós não raciocinamos, julgamos e esperamos senão em função da França. Às vezes, nos convinha odiar, lá onde poderíamos, talvez, experimentar naturalmente a simpatia; nos convinha atar amizades às quais nosso instinto, talvez, não nos levaria. Uma vez que nos concedemos algum descanso, corrigimos aquilo que a necessidade nos impôs de muito contrário à disposição natural de nosso espírito; mas, não iremos, ao modo dos políticos, mudar de alianças, como de camisa. Nossa atitude, durante a guerra, não tem nada em comum com um gesto político; não estamos mais prontos para nos dar; não é a mesma coisa.73

Quatro anos se passaram, durante os quais Schlumberger conseguiu, não sem dano, retomar seu trabalho de escritor, e reencontrar sua rotina. Sua reviravolta ideológica aparece no momento da crise do Ruhr. Em 19 de fevereiro de 1923, ele escreveu a Gide:

É inadmissível que se pretenda nos fazer marchar por uma guerra econômica, por um apelo à dedicação que nós estávamos prontos a ter, no momento da invasão. Nossas crenças não eram nada sacras; com um pouco mais de coragem fiscal, nos abster; em todo caso, não é (ao menos por agora), uma luta de vida e morte, mas uma guerra de oportunidade, à qual nós nos recusamos, se ela não é vantajosa. No entanto, todo mundo concorda que nossas finanças sucumbiram; mas se espera dar à Alemanha um golpe ainda mais grave. É a velha política de aniquilamento.74

Em sua resposta, Gide se alegra com a reviravolta de seu amigo:

Sua carta me deu a alegria, totalmente amistosa, de ter tais pensamentos, que são igualmente meus, expressos claramente, fortemente, eloqüentemente. E isso me deixa ainda mais sensível por não termos pensado sempre assim; durante a guerra, ou, ao menos, no momento de ressurgimento da revista.75

A virada de Schlumberger aparece no seu artigo Le sommeil de l'esprit critique,76 publicado em março de 1923, no qual culpa a opinião pública francesa de haver deixado o campo livre para o governo do Bloco Nacional, abdicando-se de todo espírito crítico. O artigo clama a uma nova política, que permitiria uma reconciliação com a Alemanha. Para compreender o esforço interior, que exigiu sua mudança de atitude, basta ler o extrato abaixo, retirado de suas memórias:

Não é que eu não domine, em mim mesmo, as mais vivas repugnâncias sentimentais. Nossas catedrais bombardeadas, nossas vilas destruídas (...): estas imagens tornam-me dificilmente tolerável a idéia de uma Alemanha inviolada, duramente golpeada, mas que não traz, em sua carne, as cicatrizes de algumas réplicas a seus insultos. Apesar disto, é evidente que, na realidade, que a aspereza de nossa política (...) expressaria (...) a velha xenofobia, na qual a opinião francesa se reinstalou com satisfação (...). A parvoíce deste chauvinismo me faz tomar, rapidamente, consciência de minhas afinidades com a cultura germânica, e com tudo aquilo que lhes devo, sem falar das amizades pessoais que não irão tardar a se reatarem.77

Alsaciano, conhecendo perfeitamente a língua alemã, em 1923, no novo contexto de agressão francesa contra a Alemanha, Schlumberger consegue retomar suas raízes germânicas. A desmobilização de Schlumberger, em torno de 1923 e 1924, parece se inscrever numa atitude ideol ógica nova, ainda que ela não atinja forçosamente toda a opinião pública francesa. Compreende-se melhor que esta evolução tenha dado lugar à publicação, na La NRF de abril de 1924, à conclusão do livro de Alfred Fabre-Luce, La Victoire.78 É Jean Schlumberger quem redige a crítica do livro, na La NRF de setembro de 1924: "Livro cruel, que não se lê sem rubor nem humilhação, mas um livro salutar, pois nos arranca do pesadelo de ilusões, onde nos sentimos agitados, fazendo-nos repor os pés em terra firme".

Esse livro provocou um escândalo, pois, ao analisar as causas da Primeira Guerra Mundial, ele desmente a tese oficial, consagrada pelo Tratado de Versalhes, acerca da responsabilidade "exclusiva" da Alemanha, na explosão do conflito. Graças à sua leitura, Schlumberger reconhece, agora, a ilusão na qual acreditou, de boa fé: a da "perfeita justiça de nossa causa". Mas, esse reconhecimento, explica Schlumberger, não poderia ter ocorrido mais cedo:

Há somente um ano, o livro de Alfred Fabre-Luce se chocou contra muitas ilusões, para alcançar o brilho que dele esperamos. Ele veio a seu tempo, nesse momento em que a França começa a se enjoar das carnes escarificadas, com as quais engordou seu amor-próprio. (...) Se já não há mais tempo para a França pronunciar as grandes palavras de pacificação, que delas esperamos, logo após a guerra, as quais criariam uma situação única entre as nações, ainda não é tão tarde para se tomar a iniciativa de um movimento sincero de colaboração européia. 79

O engajamento de Schlumberger em uma perspectiva de reconciliação franco-alemã é, doravante, tão apaixonado, que ele parece levá-lo com o mesmo zelo que teve, ao sair da guerra, pelo objetivo contrário. De sorte que, em julho de 1925, Jean Palhan, o sucessor de Rivière na La NRF, recusa um artigo de Pierre Viénot,80 cuja publicação Schlumberger apoiava; uma recusa que Pullan justifica pela medíocre qualidade literária do texto. Mas, ele reconhece que sua prudência o aceita em razão da inclinação "pró-alemã" do ensaio:

Ignore, pois, as ameaças que nos fizeram, mesmo da parte de nossos assinantes mais fiéis, o artigo de Jacques [Rivière] sobre as relações francoalemãs, a campanha da Mauclair, nos acusam, em dez jornais provinciais, de tocar no dinheiro alemão? Quantas suspensões de assinaturas nos chegam, quantos amigos de província, que se ocupavam, neste momento, a organizar as conferências da La NRF, nos escreveram que não podem mais se interessar por nós? 81

E, termina esta carta com uma nota ligeiramente irônica:

Eu pergunto uma coisa: não seria você um novo converso, um neófito desse tipo de internacionalismo que representa, por exemplo,o príncipe Rohan? Você não teria voltado da guerra com um pendor totalmente diferente? Perdoe minha indiscrição. Mas, enfim, eu procuro me esclarecer, e não posso me esclarecer quanto à sua indiferença, sobre esse único ponto, pela qualidade. 82

La NRF dos anos 20 é conhecida por ser um dos escalões de uma política cultural com pretensões européias. Seus autores mais importantes participam, nas primeiras décadas do pós-guerra, do Pontigny, um "pequeno núcleo da futura Europa", segundo a expressão de seu animador, Paul Desjardins;83 como, também, do círculo do castelo de Colpach, em Luxemburgo, propriedade de Aline e Emile Mayrisch, que constituiu uma rede intelectual e industrial européia.84 As relações franco-alemãs estão no centro desta nova consciência européia. Depois da "guerra fria" de 1919-1924,85 eles buscam o mais belo na segunda metade dos anos de 1920; e é apenas em torno de 1933, que o que o sonho de uma "Europa do espírito" se parte novamente. 86

Em novembro de 1933, Albert Thibaudet, crítico literário de La Nouvelle Revue Française, propõe um balanço dos últimos vinte anos, os resumindo assim:

Os historiadores das idéias reconhecerão que, durante os quinze anos que se passaram, a partir do pós-guerra, a doutrina canônica, geradora de lugares comuns sobre o destino da civilização européia, se transformou três vezes, e que duas idéias já se tornaram ultrapassadas. Chamam-se a idéia de hegemonia européia, e a idéia de cooperação. A primeira durou até em torno de 1924. Durante a guerra, a propaganda, o mito, fizeram, do grande conflito, o conflito entre duas formas de civilização, entre duas direções do espírito, entre dois princípios contrários. (...) Quando o sistema da hegemonia, permanecendo alhures bastante teórico, teve fim (digamos em 11 de maio de 1924), seguiu-lhe a parte, ou o partido, da cooperação. A idéia de cooperação foi a conseqüência, e foi o mito, do período político no qual se tentou organizar a paz. Ela se liga ao espírito de Genebra. (...) A reintegração de valores alemães fazia par com a reintegração política da Alemanha, nos acordos da Europa e nas Assembléias de Genebra. O mito da cooperação reinou cerca de dez anos. A grosso, a bem grosso modo, pode-se dizer que as eleições hitlerianas, de 1933, marcariam seu fim, como as eleições cartelistas87 francesas, de 1924, marcaram, para nós, o fim daquela primeira idéia.88

Meu estudo parece confirmar a cronologia proposta por Thibadet: a desmobilização tomou seu caminho, na França, em torno de 1923-1924. O novo revés, de 1933, que se seguiu à tomada do poder por Hitler, na Alemanha, não fará que se esqueçam os dez anos precedentes, durante os quais uma reconciliação com o inimigo, via uma desmobilização da guerra, tomou lugar; como se vem a constatar entre a elite intelectual da França, na qual La NRF constitui o componente majoritário.

O ódio ao inimigo aparece, durante o percurso que tracei aqui, como um sentimento bem real, interiorizado pelos indivíduos que viveram a guerra como uma experiência brutal, na qual a experiência identitária determinou o olhar sobre o outro. Contudo, sendo um produto histórico, o ódio ao inimigo não é eterno; estes mesmos exemplos ilustram que, através da culpa, do distanciamento, e da revisão do exame crítico, este ódio é superável, e pode se tornar, ainda, o ponto de partida para um novo engajamento cívico.

Notas

Revista Varia História

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