sábado, 1 de maio de 2010

Banquete de sangue

VEJA, Abril de 1915
Fracassa ataque anfíbio dos Aliados a Galípoli - Forças
otomanas reduzidas impõem massacre aos invasores - Desastre militar pode
derrubar Winston Churchill do Almirantado da Grã-Bretanha

Mar em chamas: embarcações militares britânicas atingidas pelo fogo inimigo durante desembarque na península


Winston Churchill perguntava: "Não há alternativa que não seja mandar nossos exércitos mastigarem arame farpado em Flandres?" Quando o primeiro lorde do Almirantado britânico fez sua eloquente defesa da abertura de uma frente de batalha em território otomano, como forma de quebrar a estagnação da guerra no front europeu e levar Constantinopla à capitulação, certamente imaginava um cardápio algo mais saboroso para seus homens. Pois as forças de defesa do Império Otomano, chamadas à ação pelo desembarque aliado na península de Galípoli, no último dia 25 de abril, estão servindo aos invasores uma amarga mistura de sangue, pólvora e areia. Os primeiros resultados do tão discutido e aguardado assalto anfíbio da Força Expedicionária Mediterrânea no cabo Helles e em Gaba Tepe não poderiam ser mais nauseabundos: sem chegar nem perto dos objetivos, registram centenas de baixas e repetem o retumbante fracasso dos ataques navais no estreito de Dardanelos, entre fevereiro e março, dando mais uma prova do despreparo e da falta de organização da empreitada aliada. Acuados, os soldados buscam a sobrevivência enquanto aguardam reforços que não têm data para chegar.

Nas duas frentes da campanha, frustração e desespero são uma constante - especialmente para o Corpo do Exército da Austrália e Nova Zelândia (Anzac), liderado pelo general William Birdwood e composto por 15.000 soldados voluntários australianos e neozelandeses que desde o início do ano estavam lotados no Egito executando treinamentos à espera de uma transferência para os combates na França. Sua missão era desembarcar na praia de Gaba Tepe, na costa do Mar Egeu, ocupar rapidamente o cume de Sari Bair e dali avançar em direção ao interior. Mas nada deu certo, a começar pelo desembarque. Por algum motivo ainda não esclarecido, os 48 barcos que levavam os soldados para terra firme atracaram um quilômetro ao norte da praia, em um território inóspito com declives íngremes e uma sucessão de espinhaços. Com isso, os homens do general Mustafá Kemal, líder da 19ª Divisão da Infantaria otomana, puderam tomar posição em Sari Bair e repelir os atrasados aliados - que agora estão confinados em uma cabeça-de-praia, sob a mira inclemente do chumbo inimigo. O comando militar da Tríplice Entente calcula que 10.000 Anzacs já tenham perecido nessas batalhas.

Sebo nas canelas: sob fogo cruzado, um dos pelotões britânicos tenta avançar

A cerca de dez milhas ao sul, no cabo Helles, encontra-se a segunda frente, a cargo dos soldados veteranos regulares da 29ª Divisão britânica, sob o comando do general Aylmer Hunter-Weston. Eles deveriam invadir e subjugar cinco praias, batizadas com as letras Y, X, W, V e S, cruciais para a tomada do estreito. Nos flancos - Y, X e S -, praticamente não houve resistência, e os alvos foram conquistados com tranquilidade. Entretanto, em W e V, as duas praias principais, a defesa otomana promoveu uma verdadeira carnificina. Recebidos com balázios de fuzil e metralhadora, muitos dos homens de Lancashire, combatentes na praia W, pereceram antes do desembarque; aqueles que lograram chegar à areia toparam com uma cerca de arame farpado que escondia uma trincheira e possibilitava aos otomanos alvejarem um a um os invasores. Na praia V, os fuzileiros de Dublin, Hampshire e Munster não foram incomodados até suas embarcações tocarem a areia: no momento de deixar os barcos, porém, quatro metralhadoras turcas abriram fogo, dizimando aliados em escala industrial. No total, as baixas britânicas estão no cômputo de 6.500 homens.

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Batalha em Krithia - Mesmo assim, graças a uma enorme vantagem numérica, os aliados conseguiram desarmar as defesas turcas em ambos os alvos principais, estabelecendo cabeças-de-praia em V e W e permitindo o desembarque de outros batalhões da Força Expedicionária Mediterrânea, notadamente o Corpo Expedicionário do Oriente. Enviado pelos franceses, este agrupamento fizera, no dia 25, manobras diversionistas no lado asiático de Dardanelos, a fim de desviar a atenção das forças turcas, e em seguida atravessou o estreito para auxiliar no plano principal da Tríplice Aliança. Com esse reforço, o general Hamilton determinou um ataque à cidade de Krithia e ao morro de Achi Baba, que pelo cronograma original deveriam estar subjugados desde o primeiro dia da invasão. Iniciado às 8h da manhã do dia 28 de abril, o ataque foi abortado às 18 horas, depois que problemas de comunicação entre as divisões francesas e britânicas, aliados às dificuldades com o terreno e a cada vez mais forte resistência otomana, deixaram claro que a ideia de uma vitória fácil e rápida em Galípoli era uma utopia.

O que torna o cenário mais tenebroso para o comando aliado da operação é o fato de que esses revezes tenham sido produzidos por uma fração mínima das hostes do general alemão Otto Liman von Sanders, comandante das forças otomanas. Toda a área invadida pelas seis divisões da Força Expedicionária Mediterrânea era mantida por apenas duas divisões, a 9ª e a 19ª. Na angra de Gaba Tepe, uma companhia de 200 homens impediu o avanço dos milhares de Anzacs. As praias V e W estavam resguardadas por míseros pelotões de 50 homens, que impingiram verdadeiros massacres contra os fuzileiros britânicos antes de serem controlados. E o pior está por vir: a maioria das tropas otomanas, antes espalhada entre Bulair e Kum Kale, na Europa e na Ásia, neste momento se desloca célere para o estreito de Dardanelos a fim de ajudar na defesa do solo do império. Reverter o cenário é tarefa que deverá consumir, além de uma forte articulação política e altíssimos recursos dos aliados, mais inúmeras vidas no inferno de Galípoli.

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Na trincheira: otomanos travam combate

A vingança de Paxá - No tabuleiro da História, não há lugar para hipóteses. Mas os figurões aliados se perguntam se esse panorama sombrio não poderia ter sido evitado caso a Grã-Bretanha tivesse honrado, no ano passado, seu acordo de colaboração naval com o Império Otomano. Antes do eclodir da grande guerra, dois encouraçados - o Sultão Osman I e o Reshadieh - estavam sendo construídos em estaleiros britânicos para reforçar a historicamente mediana marinha otomana; às portas do conflito, as embarcações, já praticamente prontas, eram vistas como fundamentais pelo Ministro da Guerra Enver Paxá, que negociava secretamente tanto com a Alemanha quanto com a Rússia sua entrada nas hostilidades. Entretanto, tão logo as primeiras declarações de guerra entre Alemanha e Rússia foram anunciadas, a Grã-Bretanha requisitou os dois encouraçados, despertando a fúria de Paxá. Este se vingou acolhendo em Constantinopla dois cruzadores alemães, o Goeben e o Breslau, que haviam bombardeado portos franceses no norte da África e escaparam do cerco da frota naval britânica no Mediterrâneo. O Ministro da Guerra deu de ombros aos protestos da Grã-Bretanha e negociou com os alemães a anexação dos dois navios à sua frota, em incidente que afastou o Império Otomano de sua posição neutra e deitou-o no colo da Tríplice Entente.

Uma vez dentro da guerra, Enver Paxá, conhecido por seu temperamento explosivo e inconsequente, não ficaria parado. Depois de abrir frentes de combate na Índia e no Egito, na virada de 1914 para 1915, decidiu atacar a Rússia nas fronteiras do Cáucaso. Apesar de desorganizado, o avanço otomano colocou em sobressalto o comando russo, que pediu uma ação radical à Grã-Bretanha e à França para que fosse aliviada a pressão no Cáucaso. O apelo ecoou especialmente nos ouvidos de Churchill, que buscava um evento novo para tirar a guerra da Europa do ramerrão. Para o primeiro lorde do Almirantado, os combates na França haviam chegado a um ponto de paralisia. Os exércitos opostos estavam tão enraizados nas trincheiras que qualquer alternativas de ataque geraria apenas enormes baixas e pequenos ganhos. Na frente oriental, russos e alemães estavam igualmente estáticos. Havia uma confiança generalizada na supremacia da marinha britânica, mas um confronto direto com a armada alemã era pouco provável. A saída do impasse só viria com a criação de uma ousada alternativa - e o fecundo Churchill tratou logo de apresentar duas delas ao conselho de Guerra no início deste ano.

A primeira opção era invadir o estado alemão de Schleswig-Holstein pelo mar, permitindo à Dinamarca se juntar às forças aliadas e abrindo assim os portões do mar Báltico. Com o domínio britânico naval do Báltico, acreditava Churchill, os exércitos russos poderiam desembarcar a 140 quilômetros de Berlim e tomar a capital imperial alemã. O outro cenário, que acabou finalmente sendo colocado em prática, era Galípoli, por não apenas atender o pedido de ajuda russo contra os otomanos como também gerar uma série de outros benefícios. A ideia de Churchill de forçar a passagem pelo estreito de Dardanelos, ocupar a península de Galípoli e penetrar com uma esquadra pelo mar de Mármora - que liga o Egeu ao Negro - rumo à Constantinopla levaria à capitulação do Império Otomano e traria, ao mesmo tempo, a Grécia, a Bulgária e a Romênia para as fileiras aliadas. O domínio marítimo na região também facilitaria a comunicação da Grã-Bretanha e da França com a Rússia, reabrindo a rota do mar Negro.

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Os estrategistas da resistência: oficiais otomanos e alemães posam juntos

Fracasso retumbante - Quando Churchill apresentou ao Gabinete de Guerra a segunda opção, em janeiro, encontrou a resistência silenciosa de seu Lorde do Mar, o experiente almirante John Fisher. Mesmo assim, conseguiu o apoio do primeiro-ministro Herbert Asquith para execução do plano. Seu resultado, todavia, já figura nas páginas dos mais formidáveis fracassos da história da grande frota naval britânica. Os bombardeios de fevereiro e março no estreito de 7 quilômetros de largura e 65 quilômetros de comprimento não foram suficientes para desmontar o eficiente sistema de defesa otomano. Pior: a operação de 18 de março, com 16 cruzadores, terminou com o afundamento de três navios, a inutilização de outros três e avarias severas em mais quatro - isso sem que as dez linhas de minas instaladas no estreito fossem sequer acionadas. A frota liderada pelo almirante John de Robeck bateu em retirada, envergonhada, ao final do dia. Era evidente a necessidade de um ataque terrestre - mas aí, com o fator surpresa descartado, as chances de sucesso diminuíram sobremaneira.

Como se não bastasse, a demora para a mobilização das tropas (quase quatro semanas) ofereceu ao general Liman von Sanders todo o tempo do mundo para o preparo da defesa, especialmente a construção de linhas de comunicação entre suas seis divisões. Com tudo isso, a salobra refeição que os otomanos estão empurrando goela abaixo dos aliados em Galípoli pode ser especialmente indigesta para Churchill, que já têm sua cabeça pedida nas rodas militares da Grã-Bretanha. De qualquer forma, ao menos um novo atracamento em Dardanelos precisa ser considerado pelo conselho de guerra aliado. Se não para despejar reforços para as tropas sitiadas, ao menos para evacuá-las em segurança. Qualquer que seja a opção, é bom que seja rápida - antes que os soldados australianos, neozelandeses, britânicos e franceses virem em definitivo o jantar dos famintos homens de Enver Paxá, Mustafá Kemal e Liman von Sanders.

Revista Veja na História

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