sábado, 8 de maio de 2010

A arte de bem morrer no Rio de Janeiro setecentista


A arte de bem morrer no Rio de Janeiro setecentista*

Cláudia Rodrigues
Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense/UFF. Universidade Salgado de Oliveira. Rua Marechal Deodoro, 211, Bloco C, 1° andar, Centro, Niterói, RJ, 24.030-060. anderclau@alternex.com.br


RESUMO

Este artigo analisa alguns aspectos evidenciadores do controle eclesiástico sobre morte e o morrer, no Rio de Janeiro do Setecentos. Partindo da constatação da existência de um certo padrão das atitudes e sensibilidades católicas diante da morte, na sociedade brasileira, do período colonial até meados do século XIX, procura demonstrar que este padrão resultou de um longo processo de clericalização da morte, que remonta ao período medieval. Detendo-se na análise da preparação dos fiéis para a morte, propõe que esta evidencia o cumprimento de algumas das determinações eclesiásticas sobre o morrer por parte de um percentual considerável dos habitantes do Rio de Janeiro, no século XVIII. Ao longo do artigo, busca-se justificar que este cumprimento expressava o medo dos fiéis das punições que, segundo a Igreja, teriam no além-túmulo, caso não seguissem os ensinamentos eclesiásticos sobre o bem morrer, profundamente marcados pela chamada pedagogia do medo.

Palavras-chave: boa morte, pedagogia do bem morrer, história da morte, morte católica

Morrendo em paz ... com a Igreja no Rio de Janeiro do século XVIII

Em dezessete de setembro de 1779, nas proximidades da rua de Santa Efigênia, uma das ruas centrais da cidade do Rio de Janeiro, mais um cadáver foi sepultado na igreja de Santo Elesbão e de Santa Efigênia. Tratava-se do falecido Narciso José do Amaral, um dos membros da irmandade sob a invocação dos referidos santos. Já bem antes de sua morte, Narciso vinha se preparando para atuar como principal personagem de mais uma das cerimônias fúnebres organizadas pelos seus confrades.1

Narciso era negro e de origem africana – proveniente de Cabo Verde. Fora escravo do padre José do Amaral Ribeiro, que o alforriara por ocasião de sua morte. A condição de ex-cativo e de africano o levavam a ser identificado como um "preto forro", segundo ele mesmo se declarava. Morara na rua da Vala, na freguesia da Sé, que concentrava a maioria das igrejas e cemitérios de brancos e negros da cidade. Deixou viúva Teresa de Jesus do Amaral, também "preta forra", com quem declarou ter vivido em "boa harmonia" e de quem recebera cuidados especiais por ocasião das suas moléstias, até os últimos momentos. Não era despossuído, posto que tinha três escravos africanos adultos e uma morada de casas na rua de São Joaquim. Em virtude de não ter filhos, instituiu Teresa por sua única herdeira.

Quatro meses antes de morrer, provavelmente em razão do agravamento de suas moléstias e não querendo "ser pego de surpresa", Narciso decidira fazer seu testamento. Para tal, solicitou a Boaventura Ribeiro da Costa que, por ele, o redigisse e, como testemunha, o assinasse. Temia não estar preparado para a chegada da "hora derradeira". Muito mais do que a própria incerteza do que poderia acontecer à sua alma após a "passagem", havia o medo de ela ocorrer sem que tivesse "se preparado" para o acontecimento. A leitura de parte do seu testamento nos permite verificar a preocupação em garantir a salvação de sua alma:

Temendo-me da morte; e por não saber quando [Deus] será servido levar-me para si, faço este meu testamento na forma seguinte. Primeiramente encomendo a minha alma à Santíssima Trindade que a criou e rogo ao Padre Eterno pela morte e paixão de seu Unigênito Filho a queira receber assim como recebeu a sua estando para morrer na árvore da Vera Cruz e a meu Senhor Jesus Cristo peço pelas suas divinas chagas que já que nesta vida me fez mercê dar o seu precioso sangue e o merecimento de seus trabalhos me fez também mercê na vida que esperamos dar o prêmio dela que é a glória, e peço e rogo à Santa Virgem Maria Nossa Senhora Mãe de Deus e a todos os santos e santas da corte celestial particularmente ao anjo da minha guarda e ao santo de meu nome e aos Santos Gloriosos Elesbão e Efigênia, e Patriarca Senhor São Domingos e a Virgem Nossa Senhora dos Remédios a quem tenho [ilegível] devoções, queiram por mim interceder e rogo ao meu Senhor Jesus Cristo agora e quando a minha Alma deste corpo sair e que como verdadeiro cristão protesto viver e morrer na Santa Fé Católica Romana e nela espero viver e salvar a minha alma não por meus merecimentos mas sim pela santíssima morte e paixão do Unigênito Filho de Deus...2

Posteriormente a estes pedidos de encomendação e intercessão pela sua alma e da sua profissão de fé católica, Narciso declarou sua naturalidade africana e seu estado matrimonial, instituiu seus testamenteiros em ordem de preferências – a mulher sendo a primeira – e determinou a forma pela qual seu funeral seria realizado. Em seguida, pediu orações em intenção de sua alma e das de outrem e instituiu legados, bem como deixou outras determinações pias, tais como alforria de escravos e esmolas a pobres.

Apesar de todos estes preparativos, não seria naquele momento que Narciso morreria. O próprio fato de ele ter esperado doze dias para aprovar seu testamento demonstra que, provavelmente, sua saúde não estivesse tão debilitada. Quatro meses depois, entretanto, a situação chegaria ao ponto de sua esposa e seus confrades terem chamado o pároco para lhe administrar os "últimos sacramentos". Assim, antes de morrer, Narciso receberia a penitência, a eucaristia e a extrema-unção, conforme está registrado em seu assentamento de óbito. Após a morte, seria por ele encomendado, juntamente com mais doze sacerdotes, como havia determinado em seu testamento. Finalmente, seria sepultado na igreja de seus santos de devoção, como era de seu desejo.

O ex-cativo demonstrou ter estado bastante preocupado em garantir para si uma "boa morte", seja procurando fazer seu testamento, seja buscando os sacramentos da Igreja quando moribundo. Ambas eram medidas que, segundo a Igreja, deveriam ser cumpridas pelos fiéis na iminência da morte, a fim de garantir a salvação da alma.

Ao introduzir este artigo com a narrativa dos acontecimentos que envolveram a morte de Narciso José do Amaral, em 1779, procurei mostrar como, para um africano residente na cidade do Rio de Janeiro e que passara a professar o catolicismo, tornava-se importante se preparar para a morte. Atitude que, provavelmente, foi reforçada pela própria valorização que as culturas africanas davam à preparação para a morte e ao ritual funerário.3 Numa analise de outros testamentos redigidos naquela época, observa-se a grande semelhança com a estrutura do texto presente na declaração das "últimas vontades" de Narciso, bem como o fato de que tais preocupações não eram restritas aos negros.

A partir da análise de uma amostragem de 23.924 registros paroquiais de óbitos e de 277 testamentos relativos à freguesia da Sé/Santíssimo Sacramento da Antiga Sé, no século XVIII e em parte do XIX,4 constatei que o Setecentos apresentou uma freqüência relativamente alta de cumprimento daquelas duas determinações eclesiásticas sobre o bem morrer.5

Através da análise quantitativa e serial dos registros de óbito, pude identificar que 45% dos mortos com condições de fazer testamento – ser livre/liberto e maior de 14 anos – o fizeram, na primeira metade do século XVIII, enquanto 29,6% o fizeram na segunda metade. Considerando que, no século XIX, 6,5% testaram na primeira metade e 0,9% o fizeram na segunda, creio ser possível interpretar os índices da prática testamentária do Setecentos como significativos, principalmente se levarmos em consideração as características sócio-econômicas do período colonial, em termos dos padrões de posse.6

Acompanhando a freqüência do recurso aos sacramentos por ocasião da morte, também pude verificar altos índices relativos ao século XVIII: 75,5% na primeira metade e 72,8% na segunda; enquanto o século seguinte apresentou tendência para o declínio, semelhante à prática testamentária, ainda que menos acentuado: 53,4% na primeira metade do século e 28,0% na segunda.7 O fato de os sacramentos apresentarem um percentual bem maior de recorrência em relação à prática testamentária, muito provavelmente se explica pela maior amplitude dos grupos sociais que a eles podiam recorrer, posto que poderiam ser recebidos por escravos e indivíduos independente de suas posses.

Em que pese o fato de as fontes pesquisadas serem eclesiásticas e a vigência do sistema de união entre Igreja e Estado, no período enfocado pela pesquisa, é possível questionar sobre o aparente sucesso da Igreja católica na sua empreitada de fazer os súditos cumprirem seus ensinamentos a respeito do morrer. Afinal, sabemos, por intermédio da leitura de trabalhos sobre o cotidiano da religiosidade colonial, que muitos dos preceitos eclesiásticos sobre casamento, confissão e demais rituais não eram seguidos de forma rígida pelos fiéis.8

Com efeito, pode parecer surpresa a freqüência com que os testadores procuravam expressar uma fé contrita no catolicismo, no século XVIII. Ainda que se possa questionar se sua vida fora, efetivamente, marcada pela religiosidade que demonstravam nas suas declarações de "última vontade", o fato é que no momento derradeiro, diante da possibilidade de morrerem, fizeram questão de dar sinais de que teriam vivido daquela forma ou que, pelo menos naquele último momento, se arrependiam de não o terem feito.

O presente artigo objetiva analisar os motivos pelos quais se pode compreender esta padronização das atitudes diante da morte, no século XVIII, demonstrando que ela representou o resultado do investimento eclesiástico em torno do que costuma ser chamado de pedagogia do bem morrer.



A clericalização da morte e a pedagogia do bem morrer

Redigir testamentos e buscar os sacramentos não eram as únicas atitudes católicas diante da morte preconizadas pela Igreja. A leitura dos itens relativos à parte escatológica do testamento, permite-nos identificar uma série de rituais e práticas que deveriam ser seguidos por ocasião da morte do fiel e que resultaram do processo de assenhoreamento da Igreja católica sobre os costumes fúnebres e as representações sobre a morte e o além-túmulo, desde fins da Antigüidade até o final da Época Moderna, nos países de maioria católica.

Neste processo, dois fatores foram significativos do controle que a Igreja passou a exercer sobre as atitudes diante da morte. O primeiro foi a substituição da gerência predominantemente doméstica e familiar do culto dos mortos – sobretudo na Antigüidade greco-romana – pela gerência predominante do clero e da comunidade eclesial.9 O segundo, que nos interessará diretamente, foi a elaboração da liturgia dos mortos, ao longo da Idade Média, pela qual o clero se tornou interlocutor privilegiado entre os vivos e os mortos, através da realização de orações e de missas em intenção das almas. Nesse sentido, os "cuidados dos mortos", como afirmou Michel Lauwers, foram postos como próprios da dimensão do sagrado, do espiritual, do eclesiástico, ao mesmo tempo que as práticas funerárias e comemorativas adquiriram o significado de formas de intercessão dos vivos pelos mortos, na perspectiva da salvação. Cuidados que a Igreja passou a considerar como ato espiritual por excelência e que os eclesiásticos deveriam ser, se não os únicos a garanti-los, pelo menos os únicos a enquadrá-los.10

O desenvolvimento da liturgia dos mortos se intensificou e completou a partir de finais do século XII e início do século XIII, com o desenvolvimento da doutrina do Purgatório que, doravante, conformaria várias das práticas e representações diante da morte, como afirmou Jacques Le Goff. Crença na Cristandade ocidental, o Purgatório seria compreendido como um além intermediário, entre o Paraíso e o Inferno, onde certos mortos passariam por uma provação (que podia ser abreviada pelos sufrágios dos vivos), a fim de expiar os pecados em relação aos quais a penitência não fora completamente cumprida. Este além intermediário estaria estreitamente ligado à concepção de um tipo de pecado intermediário, ligeiro, quotidiano, que passou a ser identificado como "pecado venial", ou seja, perdoável.11

Esta concepção de purificação depois da morte se faria acompanhar do investimento que a Igreja fez, a partir dos séculos XII e XIII, em torno da confissão auricular como elemento primordial do processo penitencial. A culpa que, normalmente, levaria à condenação, poderia agora ser remida pela contrição e pela confissão, em relação às quais a Igreja buscaria insistir, tornando a confissão auricular uma prática obrigatória pelos menos uma vez por ano para todos os cristãos adultos.12

A importância dada à confissão denota a ação eclesiástica no sentido da culpabilização e, por conseguinte, do convencimento do fiel acerca da punição dada, após a morte, aos que não se mostrassem arrependidos e que não seguissem as diretrizes eclesiásticas. Esta pedagogia do medo se utilizaria da morte, do julgamento divino e da possibilidade de condenação transitória ou eterna como elementos de pressão sobre a consciência e o comportamento dos fiéis.13

A crença na existência de uma purificação depois da morte, seria acrescida da intensificação da prática dos sufrágios, que passaram a ser reforçados como meio de auxiliar na purgação das penas e na libertação das almas do purgatório, não mais somente por sua boa conduta pessoal, mas por causa das intervenções exteriores dos vivos, através das orações, das esmolas e, principalmente, das missas celebradas pela Igreja a pedido dos parentes e amigos do morto. Segundo Jacques Le Goff, um dos desdobramentos deste sistema do Purgatório foi a renovada importância que se deu ao período que precedia a morte, com a intensificação do medo dos "últimos instantes" –período imediatamente anterior à morte.14 Medo que se justificaria tanto pelo receio de que não houvesse tempo de uma preparação a tempo para o trespasse, através da penitência, como pelo caráter doloroso das penas que a alma sofreria no Purgatório; muito embora Le Goff mencione que o desenvolvimento do medo da morte, neste momento, também se explica pelas mudanças sócioeconômicas do século XII15 que, ao atribuir um apego maior à vida terrena, tornaria mais temível o momento de a deixar.16

Mas o medo que se passou a sentir em relação aos últimos momentos também esteve bastante relacionado ao progressivo desenvolvimento da crença no que poderíamos chamar de "escatologia individual", segundo a qual logo após a morte haveria um julgamento individual, pelo qual seria decidido o destino da alma: se o Paraíso, o Inferno ou o Purgatório. Era uma idéia diferente da do Juízo Final, que afirmava que o Julgamento seria coletivo e realizado no final dos tempos. Com base nesta nova concepção escatológica, o tempo de espera entre a morte e o Juízo Final seria minimizado, posto que o destino da alma seria decidido no próprio momento da morte.17

Com efeito, houve a tendência de se valorizar a agonia e os últimos instantes como o momento no qual se daria o Julgamento Individual. A inserção do Purgatório neste esquema se fez como o local de destino daqueles indivíduos que, na iminência da morte, possuíam pecados veniais e não teriam cumprido a penitência devida. Deste modo, o medo que surgiu em relação aos "últimos momentos" seria em função do destino que caberia à alma. Como a própria Igreja fazia questão de proclamar que dificilmente se iria diretamente para o Paraíso, a morte causaria a angústia sobre se o destino seria o Inferno ou o Purgatório, cujas penas e castigos seriam tão terríveis quanto os do Inferno, com a diferença de serem temporários, ao contrário dos infernais, que seriam eternos.18

Deste modo, a doutrina do Purgatório serviu em grande parte para o enquadramento das atitudes e das representações dos cristãos em relação à morte e ao além-túmulo. Tendo o final do século XII e o século XIII como período crucial de sua elaboração e desenvolvimento, será, contudo, entre os séculos XV e XVIII que ela mais profundamente se enraizará no sistema de crenças na sociedade cristã e católica. Neste processo, o período posterior ao Concílio de Trento assinalaria um reforço da doutrina devido, dentre outros fatores, à ação contra os protestantes.19

O importante aspecto de todo este empreendimento eclesiástico sobre a morte foi o direcionamento da pastoral para o sentido do medo, onde o julgamento e as penas do Purgatório e do Inferno adquiriram um lugar essencial. Não foi por acaso que os séculos XIV e XV surgiram como o período de ouro das representações em torno da imagem do Inferno, segundo Michel Vovelle, justamente no momento em que os temas medievais, dominados pela imagem da punição coletiva – em torno do Juízo final –, cederam lugar ao Julgamento Particular, que se fez acompanhar, com força, do medo da punição e do castigo.20

Nesta pedagogia do medo, os pregadores mendicantes tiveram lugar essencial e cada vez mais importante nos séculos seguintes. Uma das forças de apoio dos frades mendicantes foram as confrarias ou ordens terceiras, algumas das quais erigidas em associação direta com o tema da morte, como as das Almas do Purgatório e, a partir da Reforma Católica, as da Boa Morte.21 Fundada em Roma, em meados do Seiscentos, a Confraria da Boa Morte foi difundida com êxito, em Portugal e no Império Ultramarino, durante o século seguinte, segundo Adalgisa Arantes Campos. O culto à Boa Morte se fez presente na colônia brasileira e, na capitania das Minas, ter-se-ia difundido, a partir do segundo quartel do século XVIII, sob a denominação de Nossa Senhora da Boa Morte. Da mesma forma que na cidade do Rio de Janeiro, onde era composta pelos pardos, as irmandades da Boa Morte de São João del Rei e de Vila Rica eram formadas por este grupo social.22

Se, por um lado, a Igreja adotava esta pedagogia da morte baseada no medo, por outro, ela mesma ofereceria a esperança e a segurança, através das garantias de proteção proporcionadas por ritos tranqüilizadores, conforme analisou Jean Delumeau.23 Nesta perspectiva, ela ofereceu a imagem de um Deus misericordioso para aqueles que se confessassem, se arrependessem e se preparassem com antecedência para a morte – testando, buscando os sacramentos, instituindo legados piedosos e sufrágios.



O bem morrer como uma arte

Diante de todos estes fatores, o morrer seria gradativamente transformado pelos pregadores em uma arte, na qual tinha importante papel o ensinamento proporcionado pelos manuais de preparação para a morte – também chamados de artes moriendi ou artes de bem morrer. Desenvolvida entre os séculos XIV e XV, representaram um gênero de literatura devocional, composto por textos e imagens que procuravam ensinar aos cristãos os passos da preparação para o seu momento derradeiro, como uma espécie de cartilha. O texto e as imagens que, por ventura contivessem, ilustravam o tema da luta entre anjos e demônios, no leito de morte, pela possessão da alma, levando ao fiel uma representação da cena que se passaria no leito de morte por ocasião do Julgamento Particular.24

A forma como esta literatura se apresentou, anunciava o que se costuma chamar de devotio moderna, surgida em fins da Idade Média, expressando uma nova espiritualidade, que valorizava uma concepção mais intimista e ascética da vida cristã, fundada sobre o recolhimento, o exame de consciência e a leitura, conforme afirma André Vauchez.25 Nesse sentido, os manuais de preparação para a morte tinham um formato pequeno, praticamente de bolso, de modo a proporcionar a leitura das orações e dos passos a serem seguidos no momento da morte, de forma individual, íntima e realizada à cabeceira do leito de morte.

O desenvolvimento desta devoção mais individualizada, da qual fizeram parte as atitudes diante da morte, foi acompanhado pela crescente afirmação da "escatologia individual" e do correlato desenvolvimento da doutrina do Purgatório, analisados anteriormente. Neste contexto, nos manuais de preparação para a morte, os chamados "últimos momentos" ou a agonia adquiriam grande dramaticidade, na medida em que as imagens que os ilustravam representavam o combate realizado no leito de morte, entre anjos e demônios, pela posse da alma do moribundo no momento do trespasse. As obras apresentavam as recomendações sobre a arte de morrer, as tentações que assaltavam o moribundo, as questões que deveriam ser postas a ele, as orações que deveria pronunciar, a conduta que deveriam ter os que cercavam o moribundo e as orações que os assistentes ou acompanhantes, junto ao leito de morte, deveriam dizer para ajudar na intercessão celestial por sua alma. É neste sentido que os manuais insistiram na necessidade de que o fiel se preparasse para a ocasião, munindo-se dos sacramentos, orações e ritos realizados pela Igreja e dirigidos pelo clero.

Um exemplo típico deste tipo de literatura no mundo ibérico foi o Breve aparelho e modo fácil para ensinar a bem morrer um cristão.26 Escrita pelo jesuíta Estevam de Castro, a obra se constituiu em um dos maiores sucessos editoriais portugueses deste tipo de literatura devocional, tendo a sua primeira edição em 1621 e a última identificada em 1724. No total, seriam pelo menos onze edições que circularam entre os portugueses por cerca de cem anos e os ensinaram a morrer segundo os padrões católicos.27

Com esta obra, o jesuíta procurava ensinar o sacerdote ou leigo que fosse acompanhar o moribundo os passos que se deveria seguir na iminência da morte, especificamente em situação de doença. Segundo o texto, logo assim que soubesse do estado do doente e visse que este era perigoso, vendo-o capaz de falar, o sacerdote ou leigo que fosse consolá-lo, deveria lhe mostrar que ele não estava só. Com citações de passagens da Bíblia, procurava-se afirmar que Deus sempre se mostrara presente ao lado do fiel com a sua infinita misericórdia.28 Para alcançar a misericórdia divina, contudo, tornava-se preciso que o enfermo se confessasse, pois na confissão Deus perdoaria a culpa e aliviaria a pena.29

Assim, com base nas idéias de Jean Delumeau, percebe-se no texto do jesuíta aquela ação eclesiástica no sentido de ameaçar e, paralelamente, indicar o apaziguamento, através dos seus ritos, orações e palavras de consolo, a fim de transmitir confiança e segurança ao fiel desesperado,30 num esquema que parecia ser perfeitamente encadeado. Era neste sentido que, segundo o manual, o sacerdote deveria consolar o enfermo, deixando claro ser fundamental que este se mostrasse confiante nos "últimos momentos". Os capítulos seguintes do Breve Aparelho apresentavam os passos que deveriam ser seguidos pelo moribundo. Primeiramente, que era preciso buscar o sacramento da confissão e demonstrava como a penitência deveria ser administrada ao enfermo, enfatizando a necessidade de que este se mostrasse arrependido de todos os pecados cometidos.31

Depois de confessado o doente, o segundo passo indicado era que ele "ordenasse seu testamento". Segundo o jesuíta, o sacerdote que acompanhasse o enfermo deveria abordar este assunto "sem rodeios", avisando-o sobre seu estado, ou do perigo em que se encontrava, dizendo que ele devia "se aparelhar no de fora", dispondo de seus bens, pagando o que devia, fazendo o seu testamento de modo a restituir "o mal ganhado, satisfazendo ao próximo qualquer dano, ou injúria, que ele tenha feito, perdoar as ofensas e agravos, que outros lhe fizeram". Para isso, Estevam de Castro ensinava como redigir, aprovar e fazer a abertura de testamentos.32

Uma vez confessado e ordenado seu testamento, o enfermo deveria pedir que lhe ministrassem "o Senhor", pois seria o "único remédio de todos os males". A eucaristia deveria ser levada a ele "com a pompa, e aparato costumado dando-se por modo de viático".33 O manual indicava as palavras próprias do ritual romano e a forma pela qual o enfermo deveria comungar, as orações que deveriam ser ditas.34 À sua administração seguiria a do sacramento da extrema-unção que deveria ser dada ao enfermo quando se sentisse que ele estivesse enfraquecendo, "antes de perder o juízo natural". Sua função era fundamental, segundo Estevão de Castro, pois com ele o moribundo estaria se aparelhando "com armas convenientes para aquele tempo da batalha última, e mais fortes tentações".35

Antes da administração da extrema-unção, porém, o jesuíta exortava a quem fosse assistir ao enfermo que o advertisse para as tentações diabólicas no momento da morte. Para cada uma delas, ensinava a atitude a tomar. Diante da dúvida sobre a verdade da fé, o enfermo deveria dizer com a boca ou com o coração: "eu sou verdadeiro católico, e creio, tudo o que crê, e ensina a Igreja Romana, e nesta fé creio, e quero morrer". Feito isso, o inimigo logo se apartaria confuso, segundo Estevam de Castro.36 Entretanto, logo retornaria com a segunda tentação, que era o desespero; para isso, trazia à memória do enfermo muitos dos pecados cometidos em vida, em especial os não confessados por esquecimento, de modo a provocar o desespero do doente quanto à bondade e à misericórdia divinas. Segundo Estevam de Castro, a pessoa já deveria estar muito bem aparelhada e advertida para esta tentação, e vendo que era diabólica, deveria demonstrar confiança na misericórdia divina, repetindo orações ensinadas pelo jesuíta.37 Vendo que não conseguiria a vitória por esta via, o demônio apareceria com a terceira tentação, que era a soberba e a vaidade. Fingindo e transformando-se em um anjo de luz, ele diria ao enfermo que era Cristo, criador e redentor e que o enfermo deveria adorá-lo. Sendo bem cauteloso e humilhando-se em seu coração, o doente deveria dizer que se o anjo fosse o verdadeiro Cristo, ele o adoraria, caso contrário, não creria nele nem o adoraria.38

Esta representação que Estevam de Castro fazia sobre as tentações diabólicas não era uma novidade de seu texto. Na verdade, significava a retomada das imagens Quatrocentistas das artes moriendi, nas quais os demônios apresentavam-se aos moribundos com várias tentações, a fim de ganhar sua alma. Outros eclesiásticos portugueses também fizeram um grande investimento nesta tese da necessidade da preparação para a morte, como forma de se garantir a vitória naquele derradeiro combate. Exemplo disso foi uma obra publicada em Lisboa, em 1731, que procurava alertar o leitor para a perigosa tentação de deixar para a hora da morte o arrependimento das próprias culpas. Trata-se de Brados do pastor às suas ovelhas: espelho de desengano para pecadores confiados,39 escrita pelo frei José de Santa Maria de Jesus, bispo de Cabo Verde, cuja procura e boa aceitação implicou numa segunda edição quatro anos depois.40

No primeiro capítulo desta obra, frei José abordou o tema "da escolha da morte na variedade de suas contingências", afirmando que, se era certo que todos haveriam de morrer, ninguém sabia, contudo, como seria a sua morte.41 Com isso, buscava alertar ao leitor sobre os perigos que haveriam para aqueles que deixassem para se preparar no "último momento". Se era perigoso até mesmo para os que tivessem se preparado com antecedência, por ser o instante em que ocorreria a cena do combate pela alma do moribundo, pior seria para aqueles que não tivessem se preparado com antecedência. Com este objetivo, apresentava as cinco tentações demoníacas dirigidas ao moribundo, que demonstravam a interpelação direta, pela qual cada diabo iria "lembrar ao moribundo pecados passados, no sentido de o acabrunhar ou desmoralizar, e cuidados actuais, impeditivos ou dispersivos da sua concentração plena nas disposições interiores, necessárias à salvação".42

E era a tal representação que Estevam de Castro se referia ao alertar ao sacerdote ou a quem fosse auxiliar o enfermo na sua "hora derradeira" para estarem atentos. Daí a necessidade de o enfermo reagir a elas, conforme ensinava o Breve Aparelho, pois, diante da reação combativa e confiante, o demônio não teria como ganhar aquele combate. Vendo-se de todo vencido e confuso, o demônio se apartaria e não mais tornaria a tentar a alma que, com esta vitória, sentiria particular consolação. Os anjos e espíritos bemaventurados o cercariam com sinais claros, mostrando-lhe a coroa que esperava o enfermo pela vitória, segundo Estevam de Castro.43

Esta demonstração da coroa como expressão da vitória da alma no combate representava o triunfo da "boa morte". Não por acaso, uma das imagens de Nossa Senhora da Boa Morte que circulava em Portugal e da qual existe um exemplar na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, apresentava o corpo da Virgem sobre um leito. A seus pés se encontra um brasão oval, no qual se lê "Boa Morte" e sobre ele uma coroa real ladeada por dois anjos. Esta estampa foi feita, em Lisboa, por Pedro Massar de Rochefort (1675-1740), em 1732,44 e a figuração da coroa da vitória pode ser associada a esta representação que Estevam de Castro fez da vitória celestial no "último combate" em seu manual de preparação para a morte.45 Somente após preparar o enfermo com estas advertências e lembranças sobre as tentações diabólicas é que a extrema-unção lhe seria oferecida. Tal sacramento coadjuvaria com as advertências, possibilitando que, "animado e reforçado", o doente pudesse vencer com facilidade "as tentações daquele passo tão perigoso da morte".

Após mostrar como o doente deveria ser ungido e as orações que a ele deveriam ser ditas,46 o manual continha quatro lembranças do "devoto e douto Gerson",47 para consolar o enfermo no que tocasse a sua consciência. Palavras que deveriam preparar o cristão para a espera do momento do combate, enfocando as idéias da inevitabilidade da morte, visto ser ela um tributo pago pela vida no mundo terreno; do reconhecimento dos benefícios e das mercês que Deus estaria fazendo ao moribundo, especialmente na "última hora", não lhe tirando a vida com morte súbita, se ele se mostrasse contrito; a lembrança de que seriam inumeráveis os pecados e faltas que cometera em sua vida, pelos quais mereceria padecer grave pena e sofrer, "com muita paciência", as "moléstias, dores, e trabalhos da enfermidade, e morte presente", rogando a Deus que a gravidade de suas dores e angústias fosse em remissão dos seus pecados, e que os "horríveis tormentos do Purgatório, por sua misericórdia" lhe fossem comutados na aflição que padecia; a necessidade de cuidar somente do que tocasse a salvação naquela última hora e passo da sua vida, pedindo a intercessão por sua alma e esquecendo-se do corpo.48

Com estas lembranças, Estevam de Castro finalizava a primeira e longa parte do manual sobre o primeiro passo a ser tomado para ajudar a "bem morrer" um cristão. Os cinco passos seguintes consistiriam em orações e preces ditas pelo sacerdote e repetidas pelo enfermo, caso ainda tivesse fala ou consciência, ou por ele repetidas, no caso de as ter perdido.49



A pedagogia do bem morrer no Rio de Janeiro setecentista

Certamente, o conteúdo desta obra também circulou nas sociedades coloniais do Ultramar, como a do Rio de Janeiro no século XVIII, influenciando as atitudes dos fiéis, principalmente no que dizia respeito à preparação para a morte. Tendo, inclusive, a acreditar que este texto do jesuíta foi um dos que funcionaram como guia para aqueles que fossem redigir testamentos, possibilitando o acesso à fórmula testamentária.

Muito embora as Ordenações Filipinas regessem, da perspectiva secular, os assuntos relacionados a testamentos, elas não apresentavam a forma como o testamento deveria ser redigido, com os passos de sua escrita. Apenas legislava quanto aos que podiam ou não testar, às formas e aos tipos de testamentos, à instituição e substituição de herdeiros, dentre outros assuntos. Outro texto secular e normativo, como a Orphanologia practica,50 também não ensinava como redigir testamentos, dedicando-se apenas às regras quanto aos que podiam ou não fazer inventários e como fazê-lo, dentre outros assuntos correlatos. Do mesmo modo que estes dois textos legais, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia51 igualmente se calavam quanto à fórmula testamentária.

Um indício da repercussão do Breve Aparelho enquanto texto que efetivamente ensinava os indivíduos a fazerem testamentos na sociedade colonial vem da análise de Alcântara Machado em seu clássico estudo sobre Vida e morte do bandeirante. Ao abordar os pedidos de missas presentes nos testamentos por ele analisados, relativos aos séculos XVI e XVII, o autor menciona as disposições de Maria de Lara que, a certa altura do seu testamento, solicitou que, além das centenas de missas pedidas, fossem rezadas "mais as três missas do livro de bem morrer, e também as quarenta e sete de São Gregório e as Cinco de Santo Agostinho, na conformidade que o livrinho especifica, e mais as trinta e três de Santo Amador (...)".52

O próprio Alcântara Machado aventou a possibilidade de o "livrinho" a que Maria de Lara se referia ser "provavelmente o Breve aparelho e modo fácil para ensinar a bem morrer um cristão, do jesuíta Estevam de Castro, obra muito espalhada nos meios devotos do século XVII".53 Comparando as missas por ela pedidas com as missas que Estevam de Castro propunha no seu manual, verifiquei terem sido, justamente, algumas das que o jesuíta ensinava aos seus leitores como eficazes para a intercessão daqueles que fossem se preparar para a morte através da leitura do Breve Aparelho.54 O que pode confirmar as suspeitas de Alcântara Machado, e também as minhas, sobre a circulação do manual do jesuíta na colônia brasileira como texto normatizador no que diz respeito à fórmula testamentária.

Outro indício foi a ocorrência de duas menções ao termo "aparelho" e/ou o correlato verbo "aparelhar" entre os testamentos por mim analisados. Em 1790, Mariana Tereza de Jesus afirmou que "...conhecendo a obrigação que como fiel católica tenho de me aparelhar para o dia de minha morte (...) ordenei fazer meu testamento na forma que de direito valer".55 Em 1792, Antônio Pereira, um crioulo forro, natural da cidade, também recorreu à referida expressão no testamento que, a seu rogo, foi escrito por José Maria, em 11 de janeiro de 1792. No exórdio de sua declaração de últimas vontades constou o trecho: "e querendo me aparelhar-me para depois [da morte], e dispor de meus bens ordeno meu testamento na forma seguinte".56 Fora do Rio de Janeiro, tal ocorrência se apresentou de modo similar. Em Mariana, a expressão também foi utilizada no testamento da preta forra Maria da Silva¸ escrito por Antônio de Freitas, em 15 de julho de 1727. Nele, a expressão foi usada da seguinte forma: "querendo estar aparelhada para quando Deus me quiser levar desta presente vida".57

No Dicionário de Moraes e Silva, o termo "aparelho" surge, dentre outros significados, como "instrumentos, preparo, apresto, meio, disposição necessária, e conveniente para se fazer alguma coisa". Já o verbo "aparelhar", aparece com o significado de "dar aparelho, preparar, aprestar, aprontar, dispor do modo conveniente". Ainda segundo o dicionarista, "aparelhar-se" era a expressão utilizada para "dispor-se com os aparelhos pertencentes para se fazer alguma coisa".58 Tais significados condiziam com o objetivo do jesuíta de que seu Breve Aparelho fosse um manual bastante prático para o cristão se preparar para a morte. E "preparar", como também constata o Dicionário da língua portuguesa, era um dos significados dados ao verbo "aparelhar".

Ainda que este termo fosse corrente no vocabulário português da época, já antes da redação do Breve Aparelho, a sua utilização no testamento com o significado de "preparar-se" para a morte sugere uma relação entre o verbo e o manual de Estevam de Castro. Em outras palavras, estou querendo dizer que os testamentos que apresentaram a expressão "aparelhar para a morte" demonstram a apropriação da fórmula de Estevam de Castro e, por extensão, a circulação de seus ensinamentos entre aqueles que redigiram testamentos na sociedade colonial, fossem os próprios testadores ou outros que a seu rogo o fizessem.

Mas esta apropriação é evidenciada no momento em que se compara a estrutura dos testamentos por mim pesquisados com as orientações emanadas do Breve Aparelho, especificamente as constantes do capítulo 24, dedicadas à "forma e ordem de se fazer o testamento conforme as advertências ditas".59 Praticamente todos os treze itens por ele propostos na ordenação do testamento se apresentaram em parte significativa dos testamentos relativos ao século XVIII que pesquisei. Um exemplo disso é a estrutura textual do primeiro item do testamento, chamado de "exórdio" por Estevão de Castro, que é literalmente o reproduzido no fragmento do testamento de Narciso José do Amaral, que abriu este artigo.60

Analisando os testamentos coletados, pude constatar que a estrutura proposta por Estevão de Castro predominou no século XVIII, permanecendo com algumas alterações, no sentido da simplificação, nas duas primeiras décadas da centúria seguinte, indicando a significativa influência do Breve Aparelho e de seus ensinamentos entre os cariocas no período colonial. Mas, muito mais do que este aspecto formal, é a permanência das concepções baseadas na pedagogia do bem morrer entre os habitantes da cidade do Rio de Janeiro que devemos ressaltar. Estes são aspectos da obra do jesuíta que me levaram a perceber a disseminação de seus ensinamentos no Rio de Janeiro, sobretudo no século XVIII, tornando-o um verdadeiro guia para aqueles que buscassem o conforto espiritual diante da morte, bem como para aqueles que precisassem se orientar quanto à redação do testamento, tanto nos aspectos formais do ato como nos relativos à formula do texto.

Muito embora esta hipótese da circulação das idéias do Breve Aparelho entre os cariocas, no século XVIII, deva ser melhor demonstrada através de novos estudos, creio que os indícios apresentados anteriormente podem explicar o fato de parte significativa dos moribundos da freguesia analisada terem se preparado para morrer segundo as determinações eclesiásticas. Muito provavelmente, as orientações emanadas do manual de Estevão de Castro eram de conhecimento daqueles que fossem redigir testamentos, fossem os próprios testadores ou as pessoas que por eles redigissem o documento. Mais significativo do que o conhecimento da forma de se fazer o testamento era, ao meu ver, a própria atitude de testar e de buscar os sacramentos; na iminência da morte. Justamente os dois caminhos ensinados pelo jesuíta.

Aspectos que demonstram o sucesso do investimento que a Igreja católica fizera, por séculos, na transformação da morte em instrumento de pregação de parte de suas doutrinas e, porque não dizer, de cristianização. Assim, é possível compreendermos o significado que estava por trás da freqüência da prática testamentária e de recurso aos sacramentos diante da morte; ou seja, o temor da punição, no além-túmulo, em virtude do não cumprimento das determinações eclesiásticas sobre o viver.



Conclusão

A análise acima realizada evidencia que, na sociedade colonial brasileira, a proximidade da morte se constituiu na ocasião propícia para a Igreja católica convencer os fiéis a respeito das conseqüências, no além-túmulo, de suas atitudes em vida. Para tal convencimento, fez uso da chamada pedagogia do medo. Afinal, a "passagem" era o momento em que os fiéis se viam mais próximos da possibilidade de salvarem ou não a sua alma e de irem ou não para o Inferno, de acordo com as pregações que a Igreja repetira insistentemente ao longo de suas vidas. Por este motivo, morria-se fazendo questão de expressar o exercício daquela aprendizagem, principalmente através da preparação para o momento por meio da redação do testamento e/ou do recurso aos últimos sacramentos, conforme preconizavam as artes de bem morrer.

Atitude que fazia parte do manancial pedagógico que a Igreja construiu desde a Baixa Idade Média, segundo o qual a morte era ocasião para a qual era preciso estar devidamente preparado, a fim de se obter a salvação da alma no além-túmulo ou, o que era mais comum, a fim de se abreviar o tempo de espera no Purgatório e o sofrimento causado pela expiação dos pecados. Justamente por isso, ensinava que o fiel precisava recorrer à rede intercessora dos santos, dos anjos, da Virgem e de Cristo; precisava mostrar-se contrito, arrependendo-se de seus pecados e, através do testamento, instituísse sufrágios e legados pios. Tanto quanto isso, era preciso que o fiel vivesse com o pensamento na morte.

Ainda que se possa questionar se este viver teria sido pautado pelo pensamento na morte, como preconizava a Igreja, pelo menos pude verificar que, no século XVIII, na iminência da morte, o paroquiano procurava fazer seu testamento com o sentido de uma prestação de contas de sua vida, procurando demonstrar que ela teria sido conduzida, pelo menos nos seus últimos momentos, na direção do catolicismo; inclusive no caso de negros africanos, a exemplo de Narciso José do Amaral.

NOTAS

Revista Varia História

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