sexta-feira, 23 de abril de 2010

Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista


Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista

Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant

O imperialismo cultural repousa no poder de universalizar os particularismos associados a uma tradição histórica singular, tornando-os irreconhecíveis como tais.1 Assim, do mesmo modo que, no século XIX, um certo número de questões ditas filosóficas debatidas como universais, em toda a Europa e para além dela, tinham sua origem, segundo foi muito bem demonstrado por Fritz Ringer, nas particularidades (e nos conflitos) históricas próprias do universo singular dos professores universitários alemães (Ringer, 1969), assim também, hoje em dia, numerosos tópicos oriundos diretamente de confrontos intelectuais associados à particularidade social da sociedade e das universidades americanas impuseram-se, sob formas aparentemente desistoricizadas, ao planeta inteiro. Esses lugares-comuns no sentido aristotélico de noções ou de teses com as quais se argumenta, mas sobre as quais não se argumenta ou, por outras palavras, esses pressupostos da discussão que permanecem indiscutidos, devem uma parte de sua força de convicção ao fato de que, circulando de colóquios universitários para livros de sucesso, de revistas semi-eruditas para relatórios de especialistas, de balanços de comissões para capas de magazines, estão presentes por toda parte ao mesmo tempo, de Berlim a Tóquio e de Milão ao México, e são sustentados e intermediados de uma forma poderosa por esses espaços pretensamente neutros como são os organismos internacionais (tais como a OCDE ou a Comissão Européia) e os centros de estudos e assessoria para políticas públicas (tal como o Adam Smith Institute e a Fondation Saint-Simon).2 A neutralização do conceito histórico que resulta da circulação internacional dos textos e do esquecimento correlato das condições históricas de origem produz uma universalização aparente que vem duplicar o trabalho de "teorização". Espécie de axiomatização fictícia bem feita para produzir a ilusão de uma gênese pura, o jogo das definições prévias e das deduções que visam substituir a contingência das necessidades sociológicas negadas pela aparência da necessidade lógica tende a ocultar as raízes históricas de um conjunto de questões e de noções que, segundo o campo de acolhimento, serão consideradas filosóficas, sociológicas, históricas ou políticas. Assim, planetarizados, mundializados, no sentido estritamente geográfico, pelo desenraizamento, ao mesmo tempo em que desparticularizados pelo efeito de falso corte que produz a conceitualização, esses lugares-comuns da grande vulgata planetária transformados, aos poucos, pela insistência midiática em senso comum universal chegam a fazer esquecer que têm sua origem nas realidades complexas e controvertidas de uma sociedade histórica particular, constituída tacitamente como modelo e medida de todas as coisas.

Eis o que se passou, por exemplo, com o debate impreciso e inconsistente em torno do "multiculturalismo", termo que, na Europa, foi utilizado, sobretudo, para designar o pluralismo cultural na esfera cívica, enquanto, nos Estados Unidos, ele remete às seqüelas perenes da exclusão dos negros e à crise da mitologia nacional do "sonho americano", correlacionada ao crescimento generalizado das desigualdades no decorrer das últimas duas décadas (Massey & Denton, 1996 [1993]; Waters, 1990; Hollinger, 1995; Hochschild, 1996).3 Crise que o vocábulo "multicultural" encobre, confinando-a artificial e exclusivamente ao microcosmo universitário e expressando-a em um registro ostensivamente "étnico" quando, afinal, ela tem como principal questão, não o reconhecimento das culturas marginalizadas pelos cânones acadêmicos, mas o acesso aos instrumentos de (re)produção das classes média e superior – na primeira fila das quais figura a universidade – em um contexto de descompromisso maciço e multiforme do Estado.4

Através desse exemplo, vê-se de passagem que, entre os produtos culturais difundidos na escala planetária, os mais insidiosos não são as teorias de aparência sistemática (como o "fim da história" ou a "globalização") e as visões do mundo filosóficas (ou que pretendem ser tais, como o "pós-modernismo"), no final das contas, fáceis de serem identificadas; mas sobretudo determinados termos isolados com aparência técnica, tais como a "flexibilidade" (ou sua versão britânica, a "empregabilidade") que, pelo fato de condensarem ou veicularem uma verdadeira filosofia do indivíduo e da organização social, adaptam-se perfeitamente para funcionar como verdadeiras palavras de ordem políticas (no caso concreto: "menos Estado", redução da cobertura social e aceitação da generalização da precariedade salarial como uma fatalidade, inclusive, um benefício).

Poder-se-ia analisar também em todos os seus detalhes a noção fortemente polissêmica de "mundialização" que tem como efeito, para não dizer função, submergir no ecumenismo cultural ou no fatalismo economista os efeitos do imperialismo e fazer aparecer uma relação de força transnacional como uma necessidade natural. No termo de uma reviravolta simbólica baseada na naturalização dos esquemas do pensamento neoliberal, cuja dominação de impôs nos últimos vinte anos, graças ao trabalho de sapa dos think tanks conservadores e de seus aliados nos campos político e jornalístico (Grémion, 1989, 1995; Smith, 1991; Dixon, 1997), a remodelagem das relações sociais e das práticas culturais das sociedades avançadas em conformidade com o padrão norte-americano, apoiado na pauperização do Estado, da mercantilização dos bens públicos e generalização da insegurança social, é aceita atualmente com resignação como o desfecho obrigatório das evoluções nacionais quando não é celebrada com um entusiasmo subserviente que faz lembrar estranhamente a "febre" pela América que, há meio século, o Plano Marshall tinha suscitado em uma Europa devastada.5

Um grande número de temas conexos publicados recentemente sobre a cena intelectual européia e, singularmente, parisiense, atravessaram assim o Atlântico, seja às claras, seja por contrabando, favorecendo a volta da influência de que gozam os produtos da pesquisa americana, tais como o "politicamente correto", utilizado de forma paradoxal, nos meios intelectuais franceses, como instrumento de reprovação e repressão contra qualquer veleidade de subversão, principalmente feminista ou homossexual, ou o pânico moral em torno da "guetoização" dos bairros ditos "imigrantes", ou ainda o moralismo que se insinua por toda parte através de uma visão ética da política, da família etc., conduzindo a uma espécie de despolitização "principielle" dos problemas sociais e políticos, assim desembaraçados de qualquer referência a toda espécie de dominação ou, enfim, a oposição que se tornou canônica, nos setores do campo intelectual mais próximos do jornalismo cultural, entre o "modernismo" e o "pós-modernismo" que, baseada em uma releitura eclética, sincrética e, na maioria das vezes, desistoricizada e bastante imprecisa de um pequeno número de autores franceses e alemães, está em vias de se impor, em sua forma americana, aos próprios europeus.6

Seria necessário atribuir um lugar à parte e conferir um desenvolvimento mais importante ao debate que, atualmente, opõe os "liberais" aos "defensores da comunidade"7 (outros tantos termos diretamente transcritos, e não traduzidos, do inglês), ilustração exemplar do efeito de falso corte e de falsa universalização que produz a passagem para a ordem do discurso com pretensões filosóficas: definições fundadoras que marcam uma ruptura aparente com os particularismos históricos que permanecem no segundo plano do pensamento do pensador situado e datado do ponto de vista histórico (por exemplo, como será possível não ver que, como já foi sugerido muitas vezes, o caráter dogmático da argumentação de Rawls em favor da prioridade das liberdades de base se explica pelo fato de que ele atribui tacitamente aos parceiros na posição original um ideal latente que não é outro senão o seu, o de um professor universitário americano, apegado a uma visão ideal da democracia americana?) (cf. Hart, 1975); pressupostos antropológicos antropologicamente injustificáveis, mas dotados de toda a autoridade social da teoria econômica neomarginalista à qual são tomados de empréstimo; pretensão à dedução rigorosa que permite encadear formalmente conseqüências infalsificáveis sem se expor, em nenhum momento, à menor refutação empírica; alternativas rituais, e irrisórias, entre atomistas-individualistas e holistas-coletivistas, e tão visivelmente absurdas na medida em que obrigam a inventar "holistas-individualistas" para enquadrar Humboldt, ou "atomistas-coletivistas"; e tudo isso expresso em um extraordinário jargão, em uma terrível língua franca internacional, que permite incluir, sem levá-las em consideração de forma consciente, todas as particularidades e os particularismos associados às tradições filosóficas e políticas nacionais (sendo que alguém pode escrever liberty entre parênteses após a palavra liberdade, mas aceitar sem problema determinados barbarismos conceituais como a oposição entre o "procedural" e o "substancial"). Esse debate e as "teorias" que ele opõe, e entre as quais seria inútil tentar introduzir uma opção política, devem, sem dúvida, uma parte de seu sucesso entre os filósofos, principalmente conservadores (e, em especial, católicos), ao fato de que tendem a reduzir a política à moral: o imenso discurso sabiamente neutralizado e politicamente desrealizado que ele suscita veio tomar o lugar da grande tradição alemã da Antropologia filosófica, palavra nobre e falsamente profunda de denegação (Verneinung) que, durante muito tempo, serve de anteparo e obstáculo - por toda parte em que a filosofia (alemã) podia afirmar sua dominação - a qualquer análise científica do mundo social.8

Em um campo mais próximo das realidades políticas, um debate como o da "raça" e da identidade dá lugar a semelhantes intrusões etnocêntricas. Uma representação histórica, surgida do fato de que a tradição americana calca, de maneira arbitrária, a dicotomia entre brancos e negros em uma realidade infinitamente mais complexa, pode até mesmo se impor em países em que os princípios de visão e divisão, codificados ou práticos, das diferenças étnicas são completamente diferentes e em que, como o Brasil, ainda eram considerados, recentemente, como contra-exemplos do "modelo americano".9 A maior parte das pesquisas recentes sobre a desigualdade etno-racial no Brasil, empreendidas por americanos e latino-americanos formados nos Estados Unidos, esforçam-se em provar que, contrariamente à imagem que os brasileiros têm de suanação, o país das "três tristes raças" (indígenas, negros descendentes dos escravos, brancos oriundos da colonização e das vagas de imigração européias) não é menos "racista" do que os outros; além disso, sobre esse capítulo, os brasileiros "brancos" nada têm a invejar em relação aos primos norte-americanos. Ainda pior, o racismo mascarado à brasileira seria, por definição, mais perverso, já que dissimulado e negado. É o quepretende, em Orpheus and Power (1994),10 o cientista político afro-americano Michael Hanchard: ao aplicar as categorias raciais norte-americanas à situação brasileira, o autor erige a história particular do Movimento em favor dos Direitos Civis como padrão universal da luta dos grupos de cor oprimidos. Em vez de considerar a constituição da ordem etno-racial brasileira em sua lógica própria, essas pesquisas contentam-se, na maioria das vezes, em substituir, na sua totalidade, o mito nacional da "democracia racial" (tal como é mencionada, por exemplo, na obra de Gilberto Freyre, 1978), pelo mito segundo o qual todas as sociedades são "racistas", inclusive aquelas no seio das quais parece que, à primeira vista, as relações "sociais" são menos distantes e hostis. De utensílio analítico, o conceito de racismo torna-se um simples instrumento de acusação; sob pretexto de ciência, acaba por se consolidar a lógica do.processo (garantindo o sucesso de livraria, na falta de um sucesso de estima).11

Em um artigo clássico, publicado há trinta anos, o antropólogo Charles Wagley mostrava que a concepção da "raça" nas Américas admite várias definições, segundo o peso atribuído à ascendência, à aparência física (que não se limita à cor da pele) e ao status sociocultural (profissão, montante da renda, diplomas, região de origem, etc.), em função da história das relações e dos conflitos entre grupos nas diversas zonas (Wagley, 1965). Os norte-americanos são os únicos a definir "raça" a partir somente da ascendência e, exclusivamente, em relação aos afro-americanos: em Chicago, Los Angeles ou Atlanta a pessoa é "negra" não pela cor da pele, mas pelo fato de ter um ou vários parentes identificados como negros, isto é, no termo da regressão, como escravos. Os Estados Unidos constituem a única sociedade moderna a aplicar a one-drop rule e o princípio de "hipodescendência", segundo o qual os filhos de uma união mista são, automaticamente, situados no grupo inferior (aqui, os negros). No Brasil, a identidade racial define-se pela referência a um continuum de "cor", isto é, pela aplicação de um princípio flexível ou impreciso que, levando em consideração traços físicos como a textura dos cabelos, a forma dos lábios e do nariz e a posição de classe (principalmente, a renda e a educação), engendram um grande número de categorias intermediárias (mais de uma centena foram repertoriadas no censo de 1980) e não implicam ostracização radical nem estigmatização sem remédio. Dão testemunho dessa situação, por exemplo, os índices de segregação exibidos pelas cidades brasileiras, nitidamente inferiores aos das metrópoles norte-americanas, bem como a ausência virtual dessas duas formas tipicamente norte-americanas de violência racial como são o linchamento e a motim urbano (Telles, 1995; Reid, 1992). Pelo contrário, nos Estados Unidos não existe categoria que, social e legalmente, seja reconhecida como "mestiço" (Davis, 1991; Williamson, 1980). Aí, temos a ver com uma divisão que se assemelha mais à das castas definitivamente definidas e delimitadas (como prova, a taxa excepcionalmente baixa de intercasamentos: menos de 2% das afro-americanas contraem uniões "mistas", em contraposição à metade, aproximadamente, das mulheres de origem hispanizante e asiática que o fazem) que se tenta dissimular, submergindo-a pela "globalização" no universo das visões diferenciantes.

Como explicar que sejam assim elevadas, tacitamente, à posição de padrão universal em relação ao qual deve ser analisada e avaliada toda situação de dominação étnica,12 determinadas "teorias" das "relações raciais" que são transfigurações conceitualizadas e, incessantemente, renovadas pelas necessidades da atualização, de estereótipos raciais de uso comum que, em si mesmos, não passam de justificações primárias da dominação dos brancos sobre os negros?13 O fato de que, no decorrer dos últimos anos, a sociodicéia racial (ou racista) tenha conseguido se "mundializar", perdendo ao mesmo tempo suas características de discurso justificador para uso interno ou local, é, sem dúvida, urna das confirmações mais exemplares do império e da influência simbólicos que os Estados Unidos exercem sobre toda espécie de produção erudita e, sobretudo, semi-erudita, em particular, através do poder de consagração que esse país detém e dos benefícios materiais e simbólicos que a adesão mais ou menos assumida ou vergonhosa ao modelo norte-americano proporciona aos pesquisadores dos países dominados. Com efeito, é possível dizer, com Thomas Bender, que os produtos da pesquisa americana adquiriram "uma estatura internacional e um poder de atração" comparáveis aos "do cinema, da música popular, dos programas de informática e do basquetebol americanos" (Bender, 1997).14 A violência simbólica nunca se exerce, de fato, sem uma forma de cumplicidade (extorquida) daqueles que a sofrem e a "globalização" dos temas da doxa social americana ou de sua transcrição, mais ou menos sublimada, no discurso semi-erudito não seria possível sem a colaboração, consciente ou inconsciente, direta ou indiretamente interessada, não só de todos os "passadores" e importadores de produtos culturais com grife ou dégriffés (editores, diretores de instituições culturais, museus, óperas, galerias de arte, revistas etc.) que, no próprio país ou nos países-alvo, propõem e propagam, multas vezes com toda a boa-fé, os produtos culturais americanos, mas também de todas as instâncias culturais americanas que, sem estarem explicitamente coordenadas, acompanham, orquestram e, até por vezes, organizam o processo de conversão coletiva à nova Meca simbólica.15

Mas todos esses mecanismos que têm como efeito favorecer uma verdadeira "globalização" das problemáticas americanas, dando, assim, razão, em um aspecto, à crença americanocêntrica na "globalização" entendida, simplesmente, como americanização do mundo ocidental e, aos poucos, de todo o universo, não são suficientes para explicar a tendência do ponto de vista americano, erudito ou semi-erudito, sobre o mundo, para se impor como ponto de vista universal, sobretudo quando se trata de questões tais como a da "raça" em que a particularidade da situação americana é particularmente flagrante e está particularmente longe de ser exemplar. Poder-se-ia ainda invocar, evidentemente, o papel motor que desempenham as grandes fundações americanas de filantropia e pesquisa na difusão da doxa racial norte-americana no seio do campo universitário brasileiro, tanto no plano das representações, quanto das práticas. Assim, a Fundação Rockefeller financia um programa sobre "Raça e Etnicidade" na Universidade Federal do Rio de Janeiro, bem como o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (e sua revista Estudos Afro-Asiáticos) daUniversidade Candido Mendes, de maneira a favorecer o intercâmbio de pesquisadores e estudantes. Para a obtenção de seu patrocínio, a Fundação impõe como condição que as equipes de pesquisa obedeçam aos critérios de affirmative action à maneira americana, o que levanta problemas espinhosos já que, como se viu, a dicotomia branco/negro é de aplicação, no mínimo, arriscada na sociedade brasileira.

Além do papel das fundações filantrópicas, deve-se, enfim, colocar entre os fatores que contribuem para a difusão do "pensamento US" nas ciências sociais a internacionalização da atividade editorial universitária. A integração crescente da edição dos livros acadêmicos em língua inglesa (doravante vendidos, freqüentemente, pelas mesmas editoras nos Estados Unidos, nos diferentes países da antiga Commonwealth britânica, bem como nos pequenos países poliglotas da União Européia, tais como a Suécia e a Holanda, e nas sociedades submetidas mais diretamente à dominação cultural americana) e o desaparecimento da fronteira entre atividade editorial universitária e editoras comerciais contribuíram para encorajar a circulação de termos, temas e tropos com forte divulgação prevista ou constatada que, por ricochete, devem seu poder de atração ao simples fato de sua ampla difusão. Por exemplo, a grande editora semicomercial, semi-universitária (designada pelos anglo-saxões como crossover press),Basil Blackwell, não hesita em impor a seus autores determinados títulos em consonância com esse novo senso comum planetário para a instalação do qual ela tem dado sua contribuição sob pretexto de repercuti-lo. Assim, à coletânea de textos sobre as novas formas de pobreza urbana, na Europa e na América, reunidos em 1996 pelo sociólogo italiano Enzo Mingione, foi dado o título Urban Poverty and the Underclass, contra o parecer de seu responsável e dos diferentes colaboradores, uma vez que toda a obra tende a demonstrar a vacuidade da noção de underclass (Backwell chegou mesmo a se recusar a colocar o termo entre aspas).16 Em caso de reticência demasiado grande por parte dos autores, Basil Blackwell está em condições de pretender que um título atraente é o único meio de evitar um preço de venda elevado que, de qualquer modo, liquidaria o livro em questão. É assim que certas decisões de pura comercialização editorial orientam a pesquisa e o ensino universitários no sentido da homogeneização e da submissão às modas oriundas da América, quando não acabam por criar, claramente, determinadas "disciplinas", tais como os cultural studies, campo híbrido, nascido nos anos 70 na Inglaterra que deve sua difusão internacional a uma política de propaganda editorial bem-sucedida. Deste modo, o fato de que essa "disciplina" esteja ausente dos campos universitário e intelectual franceses não impediu Routledge de publicar um compendium intitulado French Cultural Studies, segundo o modelo dos British Cultural Studies (existe também um tomo de German Cultural Studies). E pode-se predizer que, em virtude do princípio de partenogênese étnico-editorial em voga atualmente, ver-se-á em breve aparecer uma manual de French Arab Cultural Studies que venha a constituir o par simétrico de seu primo do além-Mancha, Black British Cultural Studies, publicado em 1997.

Mas todos esses fatores reunidos não podem justificar completamente a hegemonia que a produção exerce sobre o mercado mundial. É a razão pela qual é necessário levar em consideração o papel de alguns dos responsáveis pelas estratégias de import-export conceitual mistificadores mistificados que podem veicular, sem seu conhecimento, a parte oculta - e, muitas vezes, maldita - dos produtos culturais que fazem circular. Com efeito, o que pensar desses pesquisadores americanos que vão ao Brasil encorajar os lideres do Movimento Negro a adotar as táticas do movimento afro-americano de defesa dos direitos civis e denunciar a categoria pardo (termo intermediário entre branco e preto que designa as pessoas de aparência física mista) a fim de mobilizar todos os brasileiros de ascendência africana a partir de uma oposição dicotômica entre "afro-brasileiros" e "brancos" no preciso momento em que, nos Estados Unidos, os indivíduos de origem mista se mobilizam a fim de que o Estado americano (a começar pelos Institutos de Recenseamento) reconheça, oficialmente, os americanos "mestiços", deixando de os classificar à força sob a etiqueta exclusiva de "negro"? (Spencer, 1997; DaCosta, 1998). Semelhantes constatações nos autorizam a pensar que a descoberta tão recente quanto repentina da "globalização da raça" (Winant, 1994 e 1995) resulta, não de uma brusca convergência dos modos de dominação etno-racial nos diferentes países, mas antes da quase universalização do follk concept norte-americano de "raça" sob o efeito da exportação mundial das categorias eruditas americanas.

Pode-se-ia fazer a mesma demonstração a propósito da difusão internacional do verdadeiro-falso conceito de underclass que, por um efeito de allodoxia transcontinental, foi importado pelos sociólogos do velho continente desejosos de conseguirem uma segunda juventude intelectual surfando na onda da popularidade dos conceitos made in USA.17 Para avançar rápido, os pesquisadores europeus ouvem falar de "classe" e acreditam fazer referência a uma nova posição na estrutura do espaço social urbano quando seus colegas americanos ouvem falar de "under" pensam em uma cambada de pobres perigosos e imorais, tudo isso sob uma óptica deliberadamente vitoriana e racistóide. No entanto, Paul Peterson, professor de ciência política em Harvard e diretor do "Comitê de pesquisas sobre underclass urbana" do Social Science Research Council (também financiado pelas Fundações Rockefeller e Ford), não deixa subsistir qualquer equívoco quando, com o seu aval, resume os ensinamentos extraídos de um grande colóquio sobre a underclass realizado, em 1990, em Chicago, nestes termos que não tem necessidade de qualquer comentário: "O sufixo 'class' é o componente menos interessante da palavra. Embora implique uma relação entre dois grupos sociais, os termos dessas relação permanecem indeterminados enquanto não for acrescentada a palavra mais familiar 'under'. Esta sugere algo de baixo, vil, passivo, resignado e, ao mesmo tempo, algo de vergonhoso, perigoso, disruptivo, sombrio, maléfico, inclusive, demoníaco. E, além desses tributos pessoais, ela implica a idéia de submissão, subordinação e miséria" (Jenks e Peterson, 1991:3).

Em cada campo intelectual racional, existem "passadores" (por vezes, um só; outras vezes, vários) que retomam esse mito erudito e reformulam nesses termos alienados a questão das relações entre pobreza, imigração e segregação em seus países. Assim, já não é possível contar o número de artigos e obras que têm como objetivo provar – ou negar, o que acaba sendo a mesma coisa – com uma bela aplicação positivista, a "existência" desse "grupo" em tal sociedade, cidade ou bairro, a partir de indicadores empíricos na maioria das vezes mal construídos e mal correlacionados entre si (cf., entre muitos, Rodant, 1992; Dangschat, 1994; Whelm, 1996). Ora, colocar a questão de saber se existe uma underclass (termo que alguns sociólogos franceses não hesitaram em traduzir por "subclasse", na expectativa, sem dúvida, de introduzir o conceito de sub-homens) em Londres, Lyon, Leiden ou Lisboa é pressupor, no mínimo, por um lado, que o termo é dotado de uma certa consistência analítica e, por outro, que tal "grupo" existe realmente nos Estados Unidos.18 Ora a noção semijornalística e semierudita de underclass é desprovida não só de coerência semântica, mas também de existência social. As populações heteróclitas que os pesquisadores americanos colocam, habitualmente, sob esse termo – beneficiários da assistência social, desempregados crônicos, mães solteiras, famílias monoparentais, rejeitados do sistema escolar, criminosos e membros de gangues, drogados e sem teto, quando não são todos os habitantes do gueto sem distinção – devem sua inclusão nessa categoria "fourre-tout" ao fato de que são percebidas como outros tantos desmentidos vivos do "sonho americano" de sucesso individual. O "conceito" aparentado de "exclusão" é comumente empregado, na França e em certo número de outros países europeus (principalmente, sob a influência da Comissão Européia), na fronteira dos campos político, jornalístico e científico, com funções similares de desistoricização e despolitização. Isso dá uma idéia da inanidade da operação que consiste em retraduzir uma noção inexistente por uma outra mais do que incerta (Herpin, 1993).

Com efeito, a underclass não passa de um grupo fictício, produzido no papel pelas práticas de classificação dos eruditos, jornalistas e outros especialistas em gestão dos pobres (negros urbanos) que comungam da crença em sua existência porque tal grupo é constituído para voltar a dar a algumas pessoas uma legitimidade científica e, a outras, um tema politicamente compensador (Wacquant, 1996b). Inapto e inepto no caso americano, o conceito de importação não traz nada ao conhecimento das sociedades européias. Com efeito, os instrumentos e as modalidades do governo da miséria estão longe de ser idênticos, dos dois lados do Atlântico, sem falar das divisões étnicas e de seu estatuto político.19 Segue-se que, nos Estados Unidos, a definição e o tratamento reservados às "populações com problemas" diferem dos que são adotados pelos diversos países do Velho Mundo. E, sem dúvida, o mais extraordinário é que, segundo um paradoxo já encontrado a propósito de outros falsos conceitos da vulgata mundializada, essa noção de underclass que nos chega na América surgiu na Europa, bem como a de gueto que ela tem por função ocultar em razão da severa censura política que, nos Estado Unidos, pesa sobre a pesquisa a respeito da desigualdade urbana e racial. Com efeito, tal noção tinha sido forjada, nos anos 60, a partir da palavra sueca onderklass, pelo economista Gunnar Myrdal. Mas sua intenção era, nesse caso, descrever o processo de marginalização dos segmentos inferiores da classe operária dos países ricos para criticar a ideologia do aburguesamento generalizado das sociedades capitalistas (Myrdal, 1963). Vê-se como o desvio pela América pode trans formar uma idéia: de um conceito estrutural que visava colocar em questão a representação dominante surgiu uma categoria behaviorista recortada sob medida para reforçá-la, imputando aos comportamentos "anti-socais" dos mais desmunidos a responsabilidade por sua despossessão.

Esses mal-entendidos devem-se, em parte, ao fato de que os "passadores" transatlânticos dos diversos campos intelectuais importadores, que produzem, reproduzem e fazem circular todos esses (falsos) problemas, retirando de passagem sua pequena parte de benefício material ou simbólico, estão expostos, pelo fato de sua posição e de seus habitus eruditos e políticos, a uma dupla heteronomia. Por um lado, olham em direção da América, suposto núcleo da (pós)"modernidade" social e científica, mas eles próprios são dependentes dos pesquisadores americanos que exportam para o exterior determinados produtos intelectuais (muitas vezes, nem tão frescos) já que, em geral, não têm conhecimento direto e específico das instituições e da cultura americanas. Por outro lado, inclinam-se para o jornalismo, para as seduções que ele propõe e os sucessos imediatos que proporciona, e, ao mesmo tempo, para os temas que afloram na interseção dos campos midiático e político, portanto, no ponto de rendimento máximo sobre o mercado exterior (como seria mostrado por um recenseamento das resenhas complacentes que seus trabalhos recebem nas revistas em voga). Daí, sua predileção por problemáticas soft, nem verdadeiramente jornalísticas (estão guarnecidas com conceitos), nem completamente eruditas (orgulham-se por estarem em simbiose com "o ponto de vista dos atores") que não passam da retradução semi-erudita dos problemas sociais do momento em um idioma importado dos Estados Unidos (etnicidade, identidade, minorias, comunidade, fragmentação, etc.) e que se sucedem segundo uma ordem e ritmo ditados pela mídia: juventude dos subúrbios, xenofobia da classe operária em declínio, desajustamento dos estudantes secundaristas e universitários, violências urbanas, etc. Esses sociólogos-jornalistas, sempre prontos a comentar os "fatos de sociedade", em uma linguagem, ao mesmo tempo, acessível e "modernista", portanto, muitas vezes, percebida como vagamente progressista em referência aos "arcaísmos" do velho pensamento europeu), contribuem, de maneira particularmente paradoxal, para a imposição de uma visão do mundo que está longe de ser incompatível, apesar das aparências, com as que produzem e veiculam os grandes think tanks internacionais, mais ou menos diretamente plugados às esferas do poder econômico e político.

Quanto aos que, nos Estados Unidos, estão comprometidos, muitas vezes sem seu conhecimento, nessa imensa operação internacional de import-export cultural, eles ocupam, em sua maioria, uma posição dominada no campo do poder americano, e até mesmo, muitas vezes, no campo intelectual. Do mesmo modo que os produtores da grande indústria cultural americana como o jazz ou o rap, ou as modas de vestuário e alimentares mais comuns, como o jeans, devem uma parte da sedução quase universal que exercem sobre a juventude ao fato de que são produzidas e utilizadas por minorias dominadas (Fantasia, 1994), assim também os tópicos da nova vulgata mundial tiram, sem dúvida, uma boa parte de sua eficácia simbólica do fato de que, utilizados por especialistas de disciplinas percebidas como marginais e subversivas, tais como os cultural studies, os minority studies, os gay studies ou os women studies, eles assumem, por exemplo, aos olhos dos escritores das antigas colônias européias, a aparência de mensagens de libertação. Com efeito, o imperialismo cultural (americano ou outro) há de se impor sempre melhor quando é servido por intelectuais progressistas (ou "de cor", no caso da desigualdade racial), pouco suspeitos, aparentemente, de promover os interesses hegemônicos de um país contra o qual esgrimem com a arma da crítica social. Assim, os diversos artigos que compõem o número de verão de 1996 da revista Dissent, órgão da "velha esquerda" democrática de Nova York, consagrado às "Minorias em luta no planeta: direitos, esperanças, ameaças", projetam sobre a humanidade inteira, com a boa consciência humanista característica de certa esquerda acadêmica, não só o senso comum liberal norte-americano, mas a noção de minority (seria necessário conservar sempre a palavra inglesa para lembrar que se trata de um conceito nativo importado na teoria - e ainda aí, originário da Europa) que pressupõe aquilo mesmo cuja existência real ou possível deveria ser demonstrada,20 a saber: categorias recortadas no seio de determinado Estado-nação a partir de traços "culturais" ou "étnicos" têm, enquanto tais, o desejo e o direito de exigir um reconhecimento cívico e político. Ora, as formas sob as quais os indivíduos procuram fazer reconhecer sua existência e seu pertencimento pelo Estado variam segundo os lugares e os momentos em função das tradições históricas e constituem sempre um motivo de lutas na história. É assim que uma análise comparativa aparentemente rigorosa e generosa pode contribuir, sem que seus autores tenham consciência disso, para fazer aparecer como universal uma problemática feita por e para americanos.

Chega-se, assim, a um duplo paradoxo. Na luta pelo monopólio da produção da visão do mundo social universalmente reconhecida como universal, na qual os Estados Unidos ocupam atualmente uma posição eminente, inclusive dominante, esse país é realmente excepcional, mas seu excepcionalismo não se situa exatamente onde a sociologia e a ciência social nacionais estão de acordo em situá-lo, isto é, na fluidez de uma ordem social que oferece oportunidades extraordinárias (principalmente, em comparação com as estruturas sociais rígidas do velho continente) à mobilidade: os estudos comparativos mais rigorosos estão de acordo em concluir que, neste aspecto, os Estados Unidos não diferem fundamentalmente das outras nações industrializadas quando, afinal, o leque das desigualdades é aí nitidamente mais aberto.21 Se os Estados Unidos são realmente excepcionais, segundo a velha temática tocquevilliana, incansavelmente retomada e periodicamente reatualizada, é antes de tudo pelo dualismo rígido das divisões da ordem social. É ainda mais por sua capacidade para impor como universal o que têm de mais particular, ao mesmo tempo em que fazem passar por excepcional o que têm de mais comum.

Se é verdade que a desistoricização que resulta quase inevitavelmente da migração das idéias através das fronteiras nacionais é um dos fatores de desrealização e de falsa universalização (por exemplo, com os "falsos amigos" teóricos), então somente uma verdadeira história da gênese das idéias sobre o mundo social, associada a uma análise dos mecanismos sociais da circulação internacional dessas idéias, poderia conduzir os eruditos, tanto nesse campo quanto alhures, a um controle mais aperfeiçoado dos instrumentos com os quais argumentam sem ficarem inquietos, de antemão, em argumentar a propósito dos mesmos.22



NOTAS

1. Para evitar qualquer mal-entendido – e afastar a acusação de "antiamericanismo" – é preferível afirmar, de saída, que nada é mais universal do que a pretensão ao universal ou, mais precisamente, à universalização de uma visão particular do mundo; além disso, a demonstração esboçada aqui será válida, mutatis mutandis, para outros campos e países (principalmente, a França: cf. Bourdieu, 1992).

2. Entre os livros que dão testemunho dessa macdonaldização rampante do pensamento, pode-se citar a jeremiada elitista de A. Bloom (1987), traduzida imediatamente para o francês, pela editora Julliard, com o título L'Âme Désarmée (1987) e o panfleto enraivecido do imigrante indiano neoconservador (e biógrafo de Reagan), membro do Manhattan Institute, D. DiSouza (1991), traduzido para o francês com o título L'Éducation contre les Libertés (1993). Um dos melhores indícios para identificar as obras que participam desta nova doxa intelectual com pretensão planetária é a celeridade, absolutamente inabitual, com a qual são traduzidas e publicadas no exterior (sobretudo, em comparação com as obras científicas). Para uma visão nativa de conjunto dos sucessos e fracassos dos professores universitários americanos, atualmente, ver o recente número de Daedalus consagrado a "The American Academic Profession" (1997), principalmente B. Clark, "Small Worlds, Different Worlds: The Uniqueness and Troubles of American Academic Professions" (pp. 21-42), e P. Altbach, "An International Academic Crisis? The American Professoriate in Comparative Perpspective" (pp. 315-338).

3. Para uma análise de conjunto dessas questões que, com justeza, coloca em evidência sua ancoragem e recorrências históricas, ver Lacorne (1997).

4. Sobre o imperativo de reconhecimento cultural, ver Taylor (1994) e os textos coletados e apresentados por T. Goldberg (1994); sobre os entraves às estratégias de perpetuação da classe média nos Estados Unidos, cf. Wacquant (1996a); o profundo mal-estar da classe média americana é bem descrito em Newman (1993).

5. Sobre a "mundialização" como "projeto americano", cf. Fligstein (1997); sobre o fascínio ambivalente pela América no período após a guerra, ver Boltanski (1981) e Kuisel (1993).

6. Não se trata do único caso em que, por um paradoxo que manifesta um dos efeitos mais típicos da dominação simbólica, um certo número de tópicos que os Estados Unidos exportam e impõem em todo o universo, a começar pela Europa, foram tomados de empréstimo a esses mesmos que os recebem como as formas mais avançadas da teoria.

7. Para uma bibliografia do imenso debate, ver Philosophy & Social Criticism, vol. 14, nº 3-4, 1988, número especial – Universalism vs. Communitarianism: Contemporary Debates in Ethics.

8. Desse ponto de vista, aviltadamenle sociológico, o diálogo entre Rawls e Habermas - a respeito dos quais não é exagerado afirmar que, em relação à tradição filosófica, são bastante equivalentes - é altamente significativo (cf., por exemplo, Habermas,1995).

9. Segundo o estudo clássico de Carl Degler, Neither Black Nor White (1995), publicado pela primeira vez em 1974.

10. Um poderoso antídoto ao veneno etnocêntrico sobre esse tema encontra-se na obra de Anthony Marx (1998), que demonstra que as divisões raciais são estreitamente tributárias da história política e ideológica do país considerado, sendo que cada Estado fabrica, de alguma forma, a concepção de "raça" que lhe convém.

11. Quando será publicado um livro intitulado "O Brasil Racista" segundo o modelo da obra com o título cientificamente inqualificável, "La France Raciste", de um sociólogo francês mais atento às expectativas do campo jornalístico do que às complexidades da realidade?

12. Esse estatuto de padrão universal, de "meridiano de Greenwich" em relação ao qual são avaliados os avanços e os atrasos, os "arcaísmos" e os "modernismos" (a vanguarda), é uma das Propriedades Universais daqueles que dominam simbolicamente um universo (cf. Casanova, 1997).

13. James McKee demonstra, a uma só vez, em sua obra-mestra (1993), por um lado, que essas teorias com pretensões científicas retomam a estereótipo da inferioridade cultural dos negros e, por outro, que elas se revelaram singularmente inaptas para predizer e depois explicar a mobilização negra do após-guerra e os motins raciais dos anos 60.

14. Sobre a importação da temática do gueto no recente debate em torno da cidade e de seus males, Wacquant (1992).

15. Uma descrição exemplar do processo de transferência do poder de consagração de Paris para Nova York, em matéria de arte de vanguarda, encontra-se no livro clássico de Serge Guilbaut (1983).

16. Não se trata de um incidente isolado: no momento em que este artigo vai para o prelo, a mesma editora empreendeu um combate furioso comos urbanólogos Ronald van Kempen e Peter Marcuse, a fim de que estes modifiquem o título de sua obra coletiva, The Partitioned City, para Globalizing Cities.

17. Como tinha sido observado, há alguns anos, por John Wastergaard em sua alocução diante da British Sociological Association (Wastergaard, 1992).

18. Tendo sentido muita dificuldade para argüir uma evidência, ou seja, o fato de que o conceito de underclass não se aplica às cidades francesas, Cyprien Avend aceita e reforça a idéia preconcebida segundo a qual ele seria operatório nos Estados Unidos (cf. Avend, 1997).

19. Essas diferenças estão enraizadas em profundos pedestais históricos, como indica a leitura comparada dos trabalhos de Giovanna Procacci (1993) e Michael Katz (1997).

20. O problema da língua, evocado de passagem, é um dos mais espinhosos. Tendo conhecimento das precauções tomadas pelos etnólogos na introdução de palavras nativas, e embora também sejam conhecidos todos os benefícios simbólicos fornecidos por esse verniz de modernity, podemos nos surpreender que determinados profissionais das ciências sociais povoem sua linguagem científica com tantos "falsos amigos" teóricos baseados no simples decalque lexicológico (minority, minoridade; profession, profissão liberal, etc.) sem observar que essas palavras morfologicamente gêmeas estão separadas por toda a diferença existente entre a sistema social no qual foram produzidas e o novo sistema no qual estão sendo introduzidas. Os mais expostos à fallacy do "falso amigo" são, evidentemente, os ingleses porque, aparentemente, falam a mesma língua, mas também porque, na maioria das vezes, tendo aprendido a sociologia em manuais, readers e livros americanos, não têm grande coisa a opor, salvo uma extrema vigilância epistemológico-politica, à invasão conceitual. (É claro, existem pólos de resistência declarada à hegemonia americana, como, por exemplo, no caso dos estudos étnicos, em torno da revista Ethnic and Racial Studies, dirigida por Martin Bulmer, e do grupo de estudos do racismo e das migrações de Robert Miles na Universidade de Glasgow; no entanto, esses paradigmas alternativos, preocupados em levar plenamente em consideração as especificidades da ordem britânica, não se definem menos por oposição às concepções americanas e seus derivados britânicos.) Segue-se que a Inglaterra está estruturalmente predisposta a servir de cavalo de Tróia pelo qual as noções do senso comum erudito americano penetram no campo intelectual europeu (isto é válido tanto em matéria intelectual, quanto em política econômica e social). É na Inglaterra que a ação das fundações conservadoras e dos intelectuais-mercenários está estabelecida há mais tempo e é a mais apoiada e compensadora. Dão testemunho dessa situação a difusão do mito erudito da underclass na seqüência de intervenções ultramidiatizadas de Charles Murray, especialista do Manhattan Institute e guru intelectual da direita libertária dos Estados unidos, e de seu par simétrico, ou seja, o tema da "dependência" dos desfavorecidos em relação às ajudas sociais que, segundo proposta de Tony Blair, devem ser reduzidas drasticamente a fim de "libertar" os pobres da "sujeição" da assistência, como foi feito por Clinton em relação aos primos da América no verão de 1996.

21. Cf. em particular Erickson & Goldthorpe (1992); Erik Olin Wright (1997) chega ao mesmo resultado com uma metodologia sensivelmente diferente; sobre os determinantes políticos da escala das desigualdades nos Estados Unidos e de seu crescimento durante as últimas duas décadas, Fischer et alii (1996).

22. Em uma obra essencial para avaliar plenamente não só a partede inconsciente histórico que, sob uma forma mais ou menos irreconhecível e reprimida, sobrevive nas problemáticas eruditas de um país, mastambém o peso histórico que dá ao imperialismo acadêmico americano uma parte de sua extraordinária forçade imposição, Dorothy Ross revela como as ciências sociais americanas (economia, sociologia, ciência política e psicologia) seconstruíram, de saída, apartir de dois dogmas complementares constitutivos da doxa nacional, asaber: o "individualismo metafísico" e aidéia de uma oposição diametralentre o dinamismo e aflexibilidade da "nova" ordem social americana, porum lado, e,por outro, aestagnação e arigidez das "velhasformações sociais européias" (Ross, 1991). Dois dogmas fundadores cujas retraduções diretas se encontram, em relação ao primeiro, na linguagem ostensivelmente depurada da teoria sociológica com atentativa canônica de Talcott Parsons de elaborar uma "teoria voluntarista da ação" e, mais recentemente, na ressurgência da teoria dita da escolha racional; e, em relação aosegundo, na "teoria da modernização" que reinou sem partilhas sobre o estudo da mudança societal nas três décadas após a Segunda Guerra Mundial e que, atualmente, faz um retorno inesperado nos estudos pós-soviéticos.
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Centro de Estudos Afro-Asiáticos

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