segunda-feira, 26 de abril de 2010

Isto é São João?


Isto é São João?
Banho de rio, dança indígena, culto a Xangô. A festa se reinventa na diversidade brasileira
Lorenzo Aldé

Na decoração do “Maior São João do Mundo”, que atrai cerca de 2 milhões de pessoas, há três enormes maquetes reproduzindo construções importantes para a história de Campina Grande (PB). Lá estão, lado a lado, a sede da Câmara e Cadeia, a catedral de Nossa Senhora da Conceição e... o Cassino Eldorado — famoso cabaré que funcionou na cidade até os anos 1960.

O que mais causa surpresa nessa informação não é a vizinhança entre igreja e cabaré. Afinal, ela sintetiza a origem da festa: um rito pagão em homenagem à fertilidade da terra transformado em celebração católica. São João sempre esteve cercado por essa dupla natureza da fogueira — sagrada e profana, pecado e purificação.

Mais impactante é constatar que o festejo ancestral não só se mantém vivo como parece cada vez mais forte. O que levou um evento essencialmente familiar e comunitário a atingir a megaconcentração de 2 milhões de pessoas?

Se você é adepto do candomblé, a explicação pode estar em Xangô. Para quem não sabe, este foi o orixá escolhido como equivalente a São João, no processo de sincretismo que levou os cultos afro-brasileiros a adotar referências católicas em suas práticas, ainda no Brasil Colônia. São João, Xangô menino, a entidade do elemento fogo. “Em 23 de junho, os terreiros da Bahia fazem festa para ele. Seus filhos comandam um ritual chamado ajerê: em transe após receber o santo, botam na cabeça uma panela cheia de brasa ou óleo fervente, e com ela dançam atravessando a roda sem se queimar”, explica Muniz Sodré, professor da UFRJ e diretor da Biblioteca Nacional. Outra prática comum é caminharem descalços sobre as cinzas incandescentes da fogueira — também ali, o símbolo central da festa. Para completar, os participantes servem-se de iguarias como bolos e canjica.

Igual mas diferente? Essa contradição não é problema para o São João brasileiro. É solução: a festa, como poucas no país, parece capaz de incorporar as mais variadas referências de nossa miscigenada cultura. Nada recusa, nada descarta, tudo aproveita. Não à toa, Xangô é também conhecido como o orixá da transformação.

Longe dali, no Pantanal sul-matogrossense, a mistura de povos típica de fronteira deu origem a manifestações juninas bastante peculiares. Esqueça a quadrilha e o forró. Tente imaginar uma dança chamada cururu, de origem guarani. Agora imagine o cenário: num eco distante dos solstícios de inverno (dezembro) e verão (junhos) europeus, o que se aprende com a natureza pantaneira é o ritmo das cheias (dezembro a junho) e vazantes (junho a dezembro). Nada mais natural, para o São João local, do que a substituição do fogo pela água. “Diversas imagens de S. João, apesar do cortante frio que reinou na noite de 23, foram levadas em procissão até o porto da cidade, em cujas águas sofreram o indefectível banho tradicional”, noticiou o periódico O Autonomista, de Corumbá, referindo-se às celebrações populares que movimentaram a localidade em 1908.

Autor de tese de doutorado sobre o assunto, João Carlos de Souza, professor da Universidade Federal da Grande Dourados, atribui os banhos de São João — até hoje praticados na cidade — a uma tradição dos povos árabes, via colonização portuguesa. E lembra que o simbolismo da água há tempos está presente nas lendas em torno do profeta João. Não só pelos batismos que realizava no rio Jordão. “Contava-se que, após ter sido decapitado o corpo de São João Batista foi atirado a uma fogueira, contudo permanecia íntegro, brilhante. Tomado pelos discípulos de Jesus, foi lançado ao rio Jordão. Numa segunda versão, salientava-se que algumas pessoas, ao verem o corpo na fogueira, tentavam apagar o fogo jogando água, mas a fogueira ficava ainda maior”, escreveu o historiador, em artigo publicado em 2004. Ainda segundo as crenças populares, o corpo de João teria sido batizado por Jesus no mesmo rio, numa inversão do batismo bíblico — o que deu origem a um hino junino local: “João batiza Cristo / Cristo batiza João / Onde foram batizados / No rio Jordão”.

Nas margens do rio Paraguai, religião e festa profana também convivem em harmonia. “O fogo e a água são símbolos usuais de purificação, de modo que é plausível afirmar que o significado da festa era a renovação e a regeneração, e também a fertilidade, pois também existiam rituais para adivinhar se a próxima colheita seria boa ou se uma determinada moça se casaria no ano seguinte”, interpreta João Carlos de Souza.

Vem de seu estudo no Pantanal uma boa teoria a respeito do poder casamenteiro de João, que lá é considerado ainda mais eficaz do que Santo Antônio para realizar o sonho das moças solteiras. Como as festas duravam vários dias e atraíam muitos moradores da zona rural para a cidade, a socialização era vista como boa oportunidade de encontrar um parceiro. Daí a profusão de simpatias que se registram de norte a sul do país — em Corumbá consistiam, principalmente, em passar por debaixo do andor que levava o santo.

E nem só de intenções matrimoniais vivem as simpatias e adivinhações juninas. “Na minha infância conhecia uma simpatia que era assim: sob a luz da fogueira, olhar para dentro de uma bacia com água e tentar ver seu reflexo. Quando o reflexo surgia, significava que a pessoa ia permanecer viva até o ano seguinte. Se não conseguisse se ver, era sinal de que iria morrer. Nem todo mundo tinha coragem de experimentar”, relembra Flávio Carreiro de Santana, professor da Universidade Estadual da Paraíba e pesquisador da história regional. Nascido no município de Pombal, a 370 quilômetros de João Pessoa, ele considera o acontecimento mais marcante de suas vivências juninas a escolha de sua “madrinha de fogueira”. Trata- se de um ritual semelhante ao batismo católico, mas sem padre e sob as bênçãos do fogo. Nem por isso é levado na brincadeira: muitos nordestinos têm sua madrinha de fogueira (segundo Flávio, padrinho é dispensável) e carregam este vínculo vida afora.

O tradicional casamento na roça, para muitos mera brincadeira, acredite, também já foi pra valer. “Na região entre Piauí e Goiás, o casamento na fogueira de São João constituía, pelo menos até 1912, um sacramento”, anotaram Arthur Neiva e Belisário Pena em sua Viagem científica pelo norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e de norte a sul de Goiás, publicado em 1916. A razão era simples: em localidades isoladas, sem a presença de sacerdotes, o jeito era realizar a cerimônia em torno da fogueira, nos dias do santo, com direito aos dos noivos, padrinhos, familiares e convidados. A união, considerada válida pelos fiéis, era abençoada quando um religioso passava pelo local.

Deixa estar que é divertido ver como a festa popular subverte e reinventa seus símbolos religiosos. Nada mais justo do que essa constante volta às origens, uma vez que foi a Igreja, na Idade Média, quem inventou de se apropriar de ritos pré-cristãos, moldando-os de acordo com seus dogmas. Por mais que tenha santo até no nome e inúmeras referências religiosas — capelinha, compadrio, casamento, padre, bandeira —, não tem jeito: o São João é do povo. “É uma festa profana”, sentencia Muniz Sodré. “São 30 dias de festa sem vinculação religiosa”, reforça Flávio Carreiro de Santana.

Será que o bispo de Campina Grande tem opinião diferente? Nem ele. Com espírito esportivo, Dom Jaime Vieira Rocha já entregou os pontos. “São João foi um grande profeta, o precursor de Cristo, trazendo uma mensagem de mudança de vida. Mas esse aspecto não se manifesta no mês de junho. Não se dá atenção”, reconhece. Potiguar de nascimento, ele próprio se recorda dos sentidos que a fogueira assumia em sua infância. “As cinzas eram vistas como fonte de fertilidade. Os agricultores separavam sementes de milho, cuja colheita é em junho, e as guardavam misturadas com as cinzas da fogueira, para plantar no ano seguinte e garantir boa safra”. Dom Jaime garante que a Igreja não se incomoda mais com as práticas populares nada ortodoxas. Encara o compadrio de fogueira como “um gesto de confirmação da relação de amizade entre famílias e pessoas” e diz que sua diocese atualmente apenas “administra as implicações da festa”. Nada a ver com a licenciosidade sexual de outrora, que levou a Igreja a proibir as fogueiras e até as cerimônias noturnas. Imbuído de “uma nova mentalidade”, o líder católico está em dia com a agenda socioambiental: na abertura do São João, costuma conclamar os fiéis contra a violência urbana e alertá-los para os riscos do aquecimento global.

Ainda que por novos motivos, as fogueiras estão mais uma vez no alvo das autoridades. No ano passado, a Diocese e o Ministério Público proibiram que fossem acesas na zona urbana devido aos problemas respiratórios causados pela fumaça, que superlotam hospitais com crianças e idosos. Dom Jaime lembra ainda que a lenha das fogueiras costuma ser obtida de forma ilegal, contribuindo para o desmatamento da já ameaçada caatinga nordestina. Mas em defesa da cultura popular, volta a “administrar” a situação: não é justo culpar apenas a festa junina por isso, enquanto não há campanhas permanentes contra cerâmicas e padarias, estas sim grandes sumidouros de madeira ilegal.

Não há quem consiga fazer valer as proibições às violentas guerras de buscapé em Estância (SE), outra grande manifestação junina. O povo resiste. Entre tradições e renovações, São João segue firme e forte. Há quem torça o nariz para os palcos de superprodução onde se revezam dezenas de grupos de neo-forró e outras músicas modernas — atrações que arrebanham os famosos 2 milhões de Campina Grande. Vêem neles uma ameaça às tradições. Será? “A tradição é sempre inventada, assim como os processos de construção identitária dos grupos sociais são um constante fazer e desfazer”, tranquiliza o professor Valdir Morigi, da UFRGS, especialista no São João paraibano. “Tanto os elementos do passado quanto os presentes são manifestações da identidade dos grupos. Um ritual ou prática social nunca se repetem da mesma maneira, pois as pessoas não são as mesmas e os contextos em que são realizados também passam por mudanças”, ensina.

Transformação. Para o São João, esta é a rima e a solução.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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