Por James Andrade
Duas bruxas voam juntas numa mesma vassoura (que muitos consideram uma paródia aos Cavaleiros Templários) durante um de seus sabbaths
Nietzsche (1844-1900), em seu O Livro do Filósofo, refere-se ao período da seguinte maneira: "A história e as ciências humanas foram necessárias contra a Idade Média: o saber contra a crença..." .
O estudo do período medieval se inicia, deste modo, imerso em errôneas pressuposições. Um engano grosseiro que, aos poucos, se desfaz. Eventos importantes ocorreram. Um deles foi a solidificação do cristianismo, que criou Instituições e Dogmas, permitindo que nos refiramos a esta institucionalização como Igreja. Olhar para a Idade Média como algo de importância própria é o mínimo para se desfazer este mal-entendido; mas falemos de bruxaria. E de bruxas.
Como os registros históricos, principalmente aqueles vinculados à Inquisição e ao Santo Ofício, nos dão conta de que em cada quatro casos envolvendo bruxaria três eram com mulheres - outras fontes indicam números ainda mais insignificantes de homens - focaremos aqui o aspecto feminino do mito. As novas cores com que foram pintadas neste período, de certa maneira, tangencia como o papel da mulher também se modificou. Começaremos por uma visão panorâmica do assunto.
Origem do Termo O termo "bruxa" se perde no tempo, remontando facilmente a épocas pré-romanas. Em inglês, a palavra witch pode significar tanto bruxa, quanto feiticeira; provavelmente tem sua origem nos termos anglo-saxões "wissen", (conhecimento) e "wikken" (adivinhação). Vinculando, portanto, as bruxas a atividades adivinhatórias e àquelas relacionadas com o acúmulo de conhecimento, como o trato com as ervas e raízes.
Neste contexto, podemos traçar o perfil das bruxas, de forma geral, como personalidades femininas que estavam envolvidas em práticas "medicinais" (chás, beberagens e uma infinidade de outros artifícios para curar os enfermos) e vaticínios (profecias). Coisas que nas sociedades antigas, de certo modo também nas atuais, em nada se diferenciavam entre si, sendo ambas entendidas como Magia.
A Magia sempre foi entendida como uma interferência na ordem natural das coisas, uma ingerência, obtida por meio de palavras, gestos, objetos, oferendas, estando sempre relacionada com o sobrenatural. São das concepções mágicas do mundo que brotam as religiões. Aqueles que com ela se envolviam, por aprendizado ou por dom inato, sempre gozaram de um certo status social. Uma lacuna quase sempre preenchida pelas mulheres que, desde sempre, são mais identificadas com o sobrenatural.
O exemplo que nos chega do que seriam estas personalidades femininas são as parteiras e as benzedeiras, ainda tão presentes na vida de muitos brasileiros que vivem longe dos grandes centros e que, recuando-se poucos anos (40 no máximo), podemos identificá-las mesmo dentro de nossas famílias (minhas duas avós, tanto materna quanto paterna, eram parteiras e benzedeiras).
Estas mulheres estavam portando plenamente integradas ao grupo social. Não que estas relações fossem sempre pacíficas, muito pelo contrário; em épocas em que a mortalidade infantil era assustadora, a figura da parteira tendia a oscilar entre salvadora e carrasca. Convém nos lembrarmos também que neste mesmo extrato social ainda se inseriam os desviados, os doidos, os desajustados e tantos outros, todos vistos, de uma maneira ou de outra, envolvidos com o sobrenatural, consequentemente, com a Magia, sendo ela mesma, já habitada por outros tantos mitos e crendices. Aqui temos outro elemento que, invadindo o plano real, irá marcar profundamente a figura das bruxas: os Mitos.
Na Roma antiga existiam as Strix (origem da palavra italiana strega = bruxa); eram mulheres que, em certas noites, transformavam-se em corujas e procuravam crianças para sugar-lhes o sangue. Monstros similares eram as "stringlas" gregas. As germânicas "streghe" podem estar neste mesmo caldeirão.
A Grécia, em especial, é particularmente rica em mitos de monstros femininos que facilmente se associam a bruxas. Em sua vasta mitologia encontramos Atena, deusa da Sabedoria, cuja ave preferida é a coruja e que leva ninfas para um revigorante voo noturno sob o luar. A vingativa Lâmia, que, tendo perdido seus filhos, vinga-se sugando o sangue de crianças. Medeia e seus muitos feitiços, capazes até de devolver a juventude ao já velho Esão, pai de Jasão. Circe, que transforma a tripulação de Odisseu (Ulisses) em porcos. As tessalianas, que podiam assumir a forma de qualquer animal. As Sibilas, e muitas outras.
Assim colocados, lado a lado, pessoas reais e entes míticos, pode parecer estranho, porém é necessário um esforço de nossa parte em tentar entender que, em um mundo complexo, porém pouco compreendido como o antigo, bem como o medieval, todos estes elementos inevitavelmente se promiscuiriam, gerando um amálgama onde todas as partes envolvidas seriam chamadas de feiticeiras, magas, catimbozeiras, parteiras, curandeiras, benzedeiras e muitos outros nomes que, à época, tinham significados similares: bruxas, deixando claro que a fronteira entre o imaginário e o real era muito mais tênue do que podemos supor.
Vemos assim, que em praticamente todas as sociedades pré-medievais a figura feminina, com maior ou menor intensidade devido à sua capacidade de gerar vida e sua condição de "sexo-frágil", sempre foi relegada à casa e aos filhos, associando-se ao bem-estar. Por outro lado, também eram capazes de terríveis vinganças e sórdidas maquinações.
Hécate, deusa grega da bruxaria, que vagava pelas noites, sendo vista somente pelos cães que ladravam à sua passagem, às vezes aparecia associada à deusa Diana (Ártemis), a Lua. Na Idade Média os dois mitos praticamente se fundiram.
A Bruxa Primordial
A bruxa primeva é, portanto, o resultado mágico da fusão da mulher sábia, aquela que auxiliava no parto e cuidava das enfermidades, dos vitimados pelo sobrenatural, os desajustes mentais e sociais e dos muitos monstros sugadores de sangue que povoavam o imaginário popular, estando inequivocamente ligada a elementos naturais, a um saber ligado à terra, aos seus ciclos e aos seus muitos deuses; em especial os da fertilidade, em suma, Pagã. Um ser que vivia na tênue fronteira entre o real e o imaginário. Uma figura complexa. E ambígua.
Essa ambiguidade, tão presente (a mesma erva que cura pode também matar) foi uma constante; e neste ponto não se restringe apenas à questão de gênero nem de época, sendo o médico de hoje tão vítima desta desconfiança quanto a bruxa de outrora. Esta desconfiança, disfarçada, mas nunca superada, contribuiu para a existência de um convívio no meio social, no mínimo, delicado.
Situação facilmente estendida para todas as mulheres que, com seus humores e sangramentos, sempre esteve envolta pelo manto do sobrenatural. A distinção social dada à bruxa e a seus saberes tipicamente femininos reflete, em certa medida, a distinção dada à própria mulher. Seria fácil, portanto, nestas sociedades, supor o papel da mulher laureado de um certo prestígio, ainda que mínimo. Afinal, acima de tudo estava a figura da mulher como mãe; ela, enquanto geradora de vida, assumia maior importância até do que o seu fruto, o filho.
Tela do pintor norte-americano Douglas Volk (1856-1935) que mostra uma acusação de bruxaria, muitas vezes feita em tom dramático
Contexto
Na Idade Média isso mudou. Para pior. Neste ponto é necessário se fazer uma pequena introdução sobre os muitos povos, diferentes entre si, que habitam a Europa neste período.
A Idade Média se inicia; segundo alguns defendem, com a queda do Imperador Augústulo (algo como Augustinho) em 476 d.C - indo terminar com a queda de Constantinopla (1453 d.C.). A condenação ao exílio deste trêmulo rapazola, que recentemente perdera o pai, Orestes, marca a queda do Império Romano do Ocidente e o fim da Antiguidade. Data meramente ilustrativa, uma vez que a agonia do Império Romano foi um processo longo e seus ecos persistiram por muito tempo.
O fato é que o desmoronamento da bem azeitada máquina administrativa romana - da qual a Igreja é a herdeira direta - lançou todo o continente, sua maior parte pelo menos, em um confuso desmantelo. É no bojo deste efervescente caldeirão de raças e credos, em meio a estes povos em franco processo de aculturação, que aqui, para efeito de simplificação, iremos reduzir para duas correntes principais: Os "Romanos", aqueles que estavam integrados no moribundo Império, sendo ou não 100% romanos. E os "Germanos", todos os povos que, pressionados pelos hunos, por outros povos, pela escassez de terras cultiváveis ou ainda pela própria fragilidade do Império Romano, desceram das frias terras do norte, avançando pelas praticamente inexistentes fronteiras romanas.
Todos estes povos tinham suas bruxas, e viam a mulher sob óticas diferentes. Ainda mais interessante é dizer que as próprias mulheres se viam de forma diferente. Foi neste ambiente, em que todos influenciavam e eram influenciados, nos séculos em que se fomentou a formação das futuras nações que se consolidaram na Idade Moderna, é que assistimos o cristianismo (aquele nascido no Concílio de Niceia (325 d.C.), tornado de Estado no Édito da Tessalônica (380 d.C.) e reforçado nos outros muitos concílios que se seguiram) se tornar uma Instituição e ganhar corpo. Força. Poder.
É no confronto direto com esta "nova" religião que o mito da bruxa ganhará os contornos que hoje vemos e em paralelo, assistiremos o delinear de uma nova posição a ser ocupada pela mulher, pois, no seu processo de "formatação", a religião criada em nome do Cristo afasta, paulatinamente, as mulheres dos seus nichos de poder, assumindo, em definitivo, seu aspecto Patriarcal. Justo a religião que, em seus primórdios, galgou importantes degraus apoiada por mulheres (vide a mãe e a esposa de Constantino).
É na institucionalização do Cristianismo que a mulher perde sua projeção inicial, relegada a um papel subalterno na Igreja que nascia. Uma nova realidade era escrita, não sem conflitos, arbitrariedades, sangue e Fé Verdadeira. Uma realidade regida por um Deus Único. Nas famigeradas "Três Ordens" (séc. XI) os que oram ocupam o topo da tríade.
Um dos passos mais importantes dados pela Igreja no sentido de exercer controle sobre seus seguidores foi dado no Concílio de Latrão (também chamado Latrão IV), convocado pelo então papa Inocêncio III, em 1215. Onde, dentre muitas outras resoluções, estabeleceu-se a obrigatoriedade da Confissão. Todo Cristão, a partir dos sete anos, ficava obrigado a se confessar com um sacerdote pelo menos uma vez por ano, correndo o risco de excomunhão se não o fizesse. Neste concílio também é recomendado aos padres uma atenção especial às heresias, estimulando o interrogatório em casos de suspeitas e, caso ficasse comprovado o desvio, a punição (lembremos que à mesma época existia a perseguição aos Cátaros).
Nessa nova realidade que surgia era o Filho, não mais a Mãe, a figura de maior importância. Mesmo que haja, principalmente após as Cruzadas (séc. XI a XIII), uma certa redescoberta do feminino cristão, na figura de Maria, a relação de primazia estava irremediavelmente comprometida. E aquele saber das bruxas, desde há muito associado a deuses muitos, será marcado indelevelmente pela chegada do Deus Único.
Apoiado nestes pressupostos é inegável que a Idade Média irá assistir a um reescrever do papel da mulher na sociedade, coisa que já vinha sendo delineada, mas que naquele momento ganha novos e fortes contornos. A mulher do cristianismo não é a mesma das religiões pagãs. Não diria nem melhor nem pior, só diferente. No período medieval estas mulheres se chocarão. O imaginário popular da época irá opor, bem ao gosto da época, duas figuras diametralmente opostas: a bruxa e a santa.
Uma, no sentido espiritual, tocada pelo Divino e a outra, no sentido mais carnal, tocada pelo Profano. A sexualidade feminina será o principal campo de batalha destas novas concepções. Não creio ser necessário dizer qual o nome reservado para as mulheres das religiões pagãs.
O Sexo, tão comum e natural nas religiões primitivas, torna-se, no decorrer dos séculos, a ruína dos homens. A leitura dos livros que compunham a Bíblia (aqui me refiro aos canônicos), uma das muitas possíveis, em que se constata que o Cristo, em não sendo casado, morreu puro, cria uma ideia, gestada nos mosteiros e disseminada por todos os cantos, que a demôniosos primórdios, que opunha Bem e Mal em uma disputa incansável, vemos o surgimento de outras frentes de batalha. Contra os infiéis que, ignorantes do Cristo, mereciam esforços para a salvação; contra aqueles que professavam outros entendimentos do mesmo Cristo; contra aqueles que abandonavam as fileiras da Igreja, e agora contra o desejo e a volúpia, que minavam a vontade dos homens, abriam espaço para o pecado.
Pintura na parede externa do Mosteiro de Rila, na Bulgária, retratando as bruxas e parte delas com os demôniosos
A Posição da Igreja
Para a Igreja, porém, a luta era uma só, e louvável: a defesa da Fé, o que significava a salvação da alma, algo que, visto no contexto medieval, valia todos os esforços. Para muitos, ainda hoje vale. Uma guerra de muitos frontes e de perdas consideráveis, calorosamente travada nos muitos séculos da Idade Média, uma contenda que tratava tanto a maledicência e o malefício, que, claro, existiam, quanto às protociências que despontavam como sendo puro Mal. Tudo em nome do Dogma que, em última análise, é tão somente uma Opinião. Todos perderam, mas principalmente as mulheres, que assistiram, não passivas, mas incapacitadas, um lento remodelar da sua relevância social.
Relacionar a mulher com o pecado não era novidade - Eva estava lá desde os primórdios para comprovar a verdade inegável do fato - porém, este é só um dos aspectos que irão. compor o arquétipo da Bruxa que nos chega nos dias de hoje. A da bela e sensual jovem, caminho da perdição. No outro extremo desta composição está a decrépita e medonha anciã, aquela que tem um narigão e uma ruga quase tão grande quanto ele.
A madrasta da Branca de Neve, da adaptação para o cinema de Walt Disney, é um exemplo magnífico por representar, no mesmo personagem os dois extremos; antes dos filmes da Disney as ilustrações dos contos dos irmãos Grimm se encarregaram de fornecer o arquétipo de como seria uma bruxa velha. O caldeirão e a vassoura são outros elementos associados a elas.
Notar que, em sua maioria, são elementos do cotidiano feminino, comuns na sua labuta de esteio familiar, que assumem novas conotações. O objeto onde se cozinha é o mesmo onde se fundem poções maléficas; a ferramenta de limpeza se torna o meio de transporte mágico; assim por diante. Nestes elementos, porém, uma outra leitura é possível, mais sombria, mas necessária; é no seio do cotidiano, na rotina do dia a dia, no envenenar da comida, no cozinhar do cachorro preferido e servir como sopa que a vingança feminina se manifesta.
Novamente notamos a dubiedade do mito, sempre calcado em um delicado equilíbrio que, na Idade Média, será definitivamente quebrado com o surgimento de uma nova figura, fundamental para se buscar uma visão aproximada do que foi a bruxaria medieval: O Diabo.
Demônios dos mais diferentes tipos povoaram o imaginário medieval, vindos das tradições cristãs: como Asmodeu, Baal ou Belzebu, Beemot, Lúcifer, entre outros; ou importados de outras crenças, como o Pã grego, os Sátiros romanos, o mesopotâmico Pazuzu.
Na Idade Média, o Diabo estava em todos os lugares e as mulheres, comprovadamente fracas na Fé, eram o seu quintal.
Ardiloso, capaz de mudar de forma, apresentava-se como Súcubbus (aquela que fica por baixo), para seduzir os homens e Incubbus (aquele que fica por cima), para quem as mulheres se entregavam. Notar a sutileza em dizer que as mulheres se "entregavam" e que os homens eram "seduzidos". As atividades do Diabo, porém, seriam vistas com um certo desdém até meados do século XIV, é comum o entendimento dele não como adversário, mas sim como um empecilho. Até meados do século XI, a bruxaria também será vista, pela Igreja, com olhos mais complacentes, algo pitoresco, integrado à concepção popularesca do Cristianismo.
Tela de Waterhouse que retrata a preparação de uma bruxa para um de seus rituais. não falta nada, do caldeirão aos pássaros pretos
Os Cristãos
O Cristianismo foi totalmente hegemônico no longo período medieval. Porém, não foi linear em seu desenvolvimento, nem tão pouco homogêneo. O cristianismo praticado nos grandes centros, tidos como mais cultos, era, em muito, diferente daquele praticado nos locais mais afastados, tidos como mais tacanhos. Nestes locais ermos se mostrava como uma crença confusa, uma mistura de crendices, de antigas religiões e dos ensinamentos ouvidos dos pregadores das boas novas (Evangelhos). Tudo cerzido por uma compreensão toda própria do que significava cada um destes elementos. Porém, demarcava fortemente o seu espaço, e crescia a olhos vistos.
O pensamento cristão medieval tangenciou todo o continente Europeu, indo muito além dele. Logo, no mundo medieval, ser cristão era quase condição sine-qua-non para ser aceito socialmente; quem não fosse batizado era taxado de "Pagão" ou "Infiel", e vitimado pelo preconceito. Com a invasão muçulmana, esta situação se radicalizou ainda mais.
Na Idade Média, o Deus Único Trinitário (Pai, Filho e Espírito Santo) torna-se a fonte de tudo. A realidade está sujeita à sua vontade, uma vez que Ele a criou pode interferir nela à seu belprazer. Portanto, para se conseguir algo basta pedir à Sua representante na Terra: a Igreja.
Esta, por sua vez, era auxiliada na árdua tarefa de intermediária por um sem número de santos, santas e mártires, todos envolvidos em resolver as mazelas mundanas.
"... Para bolhas e biles, Cosme e Damião; Santa Clara para os olhos; Santo Apolônio para os dentes; São Jô para as doenças de pele..." (Scot, Discoverie: A Discourse of Divels, cap. xxvi).
A lista continua, mostrando a especificidade de cada santo em determinada área, isso sem levar em conta aspectos como a adoração de relíquias (objetos tocados pelos santos ou até mesmo partes do seu corpo ou vestuário), a crença pia na transubstanciação do pão e do vinho em carne e sangue na Eucaristia, nas muitas qualidades divinas da hóstia, da água benta, dos rosários, dos amuletos, dos escapulários.
O período medieval foi totalmente dominado pela Magia. Outras épocas também o foram, mas o que torna este período especial são as tentativas, muitas vezes violentas, de se criar uma Magia única, de natureza cristã.
De início, a Igreja medieval não perseguiu a crendice, mas se valeu dela para crescer. Tudo aquilo que não era Divino só podia vir do Diabo e como o próprio era também uma criatura de Deus, a hegemonia estava na eminência de ser criada, bastando para tanto associar cada elemento não pertencente à religião cristã com elementos que existissem dentro dela. Surgiram assim deuses antigos que foram transformados em demônios, outros ainda foram substituídos por santos que executaram as mesmas funções. Para garantir um bom parto não mais se clamava à romana Lucina, para este momento especial lá estavam Santa Margarida ou Santa Marpúgis; isso sem falar da própria Maria, mãe de Deus, que nos chega como Nossa Senhora do Bom Parto. No decorrer da Idade Média, um monopólio dos aspectos não naturais da vida se estabelece. A faceta mágica da Igreja Cristã é tão fortemente disseminada que até mesmo os feitiços e encantamentos perderam o seu aspecto de manipulação de objetos, digamos naturais, para se tornarem manipulações sacrílegas de elementos cristãos, tornando-se assim, herética. Como vemos nos dois exemplos a seguir:
A Bruxa "primitiva", que perdurará, grosso modo, até meados do séc. XII, em meio a um cristianismo atulhado de crendices de caráter pagão:
"... Então, com os cabelos soltos, deu três voltas em torno do corpo, enfiou lascas de madeira em seu sangue (...) no caldeirão pôs ervas mágicas, com sementes e flores de suco acre, pedras do Extremo Oriente, e areia do litoral (...) a cabeça e as asas de uma coruja, e as entranhas de um lobo..." (Medeia e Esão: Bulfinch´s mytology - 2006).
A Bruxa "herege", que ganha notoriedade cada vez maior a partir do séc. XII, frente a um cristianismo que se busca mais puro:
"... E a Fé, toda sua, obtida no Batismo Santificado, em sacrilégio, renegam (...) a Alma deles posta em perigo, ofensa à majestade Divina..." (Summis Desiderantes Affectibus: Bula Papal; Inocêncio VIII- 1484).
No processo que acabou por levar Joana D'Arc (1412-1431) a um "Auto de Fé", leia-se fogueira, já figurava a palavra bruxa, vinculada à heresia.
James Andrade é pesquisador de história antiga e medieval. É autor do livro Getsêmani, a Verdade Oculta (Giz Editorial, 2008)
Revista Leituras da História
Interssantíssimo ocmo sempre, Eduardo.
ResponderExcluirvenho sempre ler, mas nem sempre comento.
deixo um abraço.
Nossa Eduardo, parece que vc adivinhou...
ResponderExcluirEstou preparando um artigo para o meu blog sobre o "Crucible" de Arthur Miller, adaptado para o cinema com o nome de "As Bruxas de Salem". Devo me ater, basicamente, ao uso que a personagem principal, Abigail Williams, faz das crenças sobre magia e bruxas para conseguir seus objetivos. Gostaria de pedir sua permissão para citar algumas partes do seu post, quando da publicação do artigo no blog. Obrigada pelo excelente texto.