sexta-feira, 12 de março de 2010

Reino (nem tão) Unido


Reino (nem tão) Unido
Do insucesso do “Reino Unido de Portugal, e do Brasil e Algarves” à inevitável independência do Brasil
Cristina Nogueira da Silva

Qual é a capital do Reino Unido? Até 1820, não havia dúvida: Rio de Janeiro. Era aqui que vivia o rei D. João VI, e foi ele que criou, em 1815, uma nova forma de administrar os diferentes territórios da Coroa portuguesa. O “Reino Unido de Portugal, e do Brasil e Algarves” incluía, além dos três reinos mencionados, algumas “possessões” na África e o “Estado da Índia”, na Ásia.

Isso durou até que os ventos do liberalismo bateram em Portugal. Inspirada pelo que acontecera em outros países europeus, a elite local estava decidida a transformar o regime monárquico, por meio de uma Constituição baseada em princípios como os da soberania nacional (ou popular), da participação política, da separação dos poderes, da consagração dos direitos naturais e civis dos “cidadãos” e da sua igualdade perante a lei.

Em 24 de agosto de 1820, a Revolução do Porto pôs em xeque o Reino Unido criado por D. João. Vinham à tona sentimentos represados desde 1808: a transferência da Corte para o Brasil causara “ciúme” e “mágoa” na elite deixada para trás na metrópole. Eles achavam que o “velho” Portugal havia virado uma “colônia de sua colônia”. Agora era o momento de o rei regressar a Lisboa (como de fato faria no ano seguinte). Mas, com essa mudança, o que ocorreria ao “Reino” do Brasil? Voltaria a ser a colônia da sua antiga metrópole?

A resposta dos deputados portugueses – reunidos em janeiro de 1821 nas “Cortes Geraes Extraordinárias da Nação Portugueza” para redigir a futura Constituição – foi muito clara: o Brasil jamais voltaria a ser colônia. Contra essa possibilidade, comprometiam-se a destruir o “odioso sistema colonial” – criado pelo mesmo regime absolutista que durante séculos tinha oprimido tanto os portugueses da América quanto os da Europa. Agora, instituída a liberdade, seriam todos iguais. A questão era: como garantir essa igualdade?

A própria formação das Cortes foi o primeiro passo dado neste sentido, pois pouco tempo depois de iniciada a sua reunião, D. João VI mandou publicar, a 7 de março de 1821, as instruções para a eleição dos deputados brasileiros. Deu-se então início, no Brasil, a um processo eleitoral de que resultou a presença, nas Cortes de Lisboa, de deputados eleitos nas diversas capitanias brasileiras. Nos debates, o tema da igualdade ecoava os argumentos “anticolonialistas” próprios do Iluminismo. Os deputados se baseavam no pensamento de autores do século XVIII, como David Hume (1711-1776), Denis Diderot (1713-1784) e Jeremy Bentham (1748-1832), na época muito lido no Reino do Brasil. Para eles, a relação colonial era injusta e não promovia a riqueza e o desenvolvimento nem das colônias nem das metrópoles. Além disso, muitos “perigos” pairavam sobre os territórios coloniais: as ambições imperiais das outras nações, o “natural” desejo de independência dos colonos e a revolta das populações escravizadas. As metrópoles européias eram obrigadas a gastar cada vez mais dinheiro para proteger seus territórios.

Para os pensadores mais moderados, a liberalização da economia (como tinha feito D. João VI, com a abertura dos portos) e a concessão de maior autonomia política aos colonos eram medidas suficientes para resolver o problema. Para os radicais, contudo, a única solução era emancipar as colônias. Dessa forma, o comércio livre seria o elemento central das relações entre as novas nações, saídas das independências coloniais, e as velhas nações européias. Sobre relações fraternais, baseadas na interdependência econômica e na identidade cultural e afetiva, se ergueria uma “sociedade cosmopolita” – uma das utopias do Iluminismo.

Mas os homens que fizeram a revolução de 1820 – os vintistas –, se por um lado pareciam decididos a superar o velho sistema colonial, por outro não estavam dispostos a conceder independência às antigas colônias, nem a formar com elas uma federação. Para estes deputados, o novo regime deveria consolidar a unidade do Reino. Criar federações, diziam, era separar o que já estava unido. O que propuseram aos seus “irmãos” da América foi um modelo politicamente unificado, que desse nova forma a uma realidade que para eles já existia: a de uma nação portuguesa espalhada por vários continentes. O antigo sistema colonial seria substituído por um regime político representativo, no qual as colônias, transformadas em províncias (ultramarinas), teriam direitos iguais aos da antiga metrópole. Assim funcionaria o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Suas províncias – as européias, mas também as ultramarinas, na América, na África e na Ásia – estariam submetidas a um só governo. E a sede desse governo seria Lisboa, capital do novo Reino Unido.

A ênfase dos deputados nos ideais de união e de igualdade parecia um pouco forçada. Eles tinham consciência da fragilidade dessa união, uma vez que muitos “elementos de desagregação” a ameaçavam: as distâncias, a diversidade das produções e das línguas, o enorme peso demográfico da população mestiça e escravizada, as diferenças de costumes e “sistemas” de pensamento, a presença ameaçadora dos “índios bravos”, entre outros.

De qualquer forma, o entendimento entre as elites portuguesas dos dois lados do Atlântico foi possível, num primeiro momento, graças a alguns “elementos de união”. Além do fato de que todos queriam ver substituído o governo despótico anterior, os deputados ultramarinos se identificavam com a elite européia: julgavam-se um grupo de homens civilizados no meio da barbárie. O primitivismo das sociedades coloniais era uma imagem forte da época. Preservar a ligação com o Reino de Portugal significava, para eles, conservar a matriz européia e garantir apoio contra os seus “inimigos internos”.

Este diálogo entre “irmãos” toca outro ponto crucial: quando os deputados, ultramarinos ou europeus, falavam de liberdade e de igualdade de direitos, não se referiam aos escravos nem aos direitos das populações nativas. A prova disso é que a escravidão foi consagrada, sem grandes polêmicas, na Constituição de 1822. Dos índios, pouco se falou. O alheamento geral em relação aos direitos e ao destino dos povos nativos era comum na cultura política do Iluminismo e em boa parte da sua literatura anticolonial. Esses povos não integravam a “sociedade cosmopolita” iluminista.

As afinidades políticas e ideológicas entre as elites européias e americanas afastaram por algum tempo a hipótese de independência. Mas esta finalmente viria, embalada por uma série de desentendimentos. Entre eles, o desacordo quanto à representação política do Ultramar. A maioria dos ultramarinos achava que a Constituição deveria ter artigos especiais que exigissem a presença de um número mínimo de deputados do Ultramar como condição para as Cortes se reunirem. Em caso de qualquer impedimento na ida para Lisboa, esses deputados poderiam ser substituídos por aqueles eleitos para a legislatura anterior. Assim ficaria garantida uma verdadeira representação. Além disso, esses deputados deviam ter nascido, ou pelo menos residir, em território ultramarino, pois era preciso que no Parlamento houvesse pessoas que conhecessem as realidades locais brasileiras e fossem capazes de interpretar seus interesses específicos.

Alguns deputados europeus concordaram com estas exigências, e parte delas foi reconhecida na Constituição de 1822. Para o grupo mais radical, contudo, essas exigências não faziam sentido, e a representação política do Ultramar devia ser tratada de forma exatamente igual à do Reino de Portugal, uma vez que os interesses eram gerais e os deputados representavam toda a Nação, e não apenas sua província. E condicionar o funcionamento das Cortes à presença de deputados do Ultramar trazia outro problema: um simples bloqueio dos portos, ou a má vontade de um governador, por exemplo, poderiam impedir os trabalhos.

O mesmo tipo de discussão se repete na abordagem de temas como a composição do Conselho de Estado, o funcionamento da administração local e a criação de uma delegação do governo no Brasil. Ao longo desses debates, tornam-se cada vez mais visíveis as divergências entre ultramarinos e europeus, que atingem seu ponto máximo quando os deputados paulistas apresentam uma proposta de complementar a Constituição. Nela, partem da idéia de que “as localidades e circunstâncias do Brasil o diferenciam essencialmente de qualquer regime e sistema europeu”, para exigir três medidas fundamentais: que fossem instituídos dois reinos, o do Brasil e o de Portugal e Algarves, cada um com o seu Congresso legislativo, que se criasse uma “Assembléia Federal” e que houvesse uma delegação do poder executivo na América, entregue ao sucessor da Coroa.

A proposta obteve a adesão da maioria dos deputados eleitos na América. Tratava-se de uma solução federal mais igualitária, próxima daquelas propostas pelos iluministas. Mas os deputados portugueses, tanto os radicais quanto os moderados, uniram-se para rejeitá-la, uma vez que ela era totalmente incompatível com o modelo eleito de “Nação bi-hemisférica”, representada num só Parlamento e governada a partir de um único centro: Lisboa.

Foi justamente este modelo que viria a ser aprovado na Constituição de setembro de 1822. Mas, a essa altura, o Brasil já se afastara definitivamente do processo: muitas províncias haviam se rebelado contra a autoridade das Cortes, e semanas antes de ser promulgada a Constituição, D. Pedro proclamara, no dia 7 de setembro, a independência do Brasil, convocando uma Assembléia Constituinte para o ano seguinte.

Reconhecida somente em 1825, a independência do Brasil e o processo que a ela tinha conduzido marcaram o pensamento colonial em Portugal durante todo o século XIX. Nas Cortes vintistas e nas que se seguiram, permanecia vivo o argumento de que os “irmãos” do Ultramar – agora apenas na África e na Ásia – eram politicamente iguais aos cidadãos da metrópole, porque elegiam deputados para o Parlamento único da metrópole. A representação política continuou, portanto, a funcionar como uma espécie de álibi, que permitia recusar às colônias africanas e orientais a criação de instituições representativas locais com poderes legislativos. O motivo da recusa era sempre o mesmo: o receio de que tal concessão favorecesse a independência. Afinal, foi assim que o Reino Unido perdeu sua mais importante colônia.

Cristina Nogueira da Silva é professora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e autora do artigo “O ‘Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves’, 1815-1822”, Revista de História das Idéias, vol. 14, 1992.

Saiba Mais - Bibliografia:

NIZZA DA SILVA, Beatriz, Movimento constitucional e separatismo no Brasil, 1821-1823, Lisboa, Livros Horizonte, 1988.

BERBEL, Márcia Regina, A Nação como artefacto, Deputados do Brasil nas cortes Portuguesas de 1821-1822, S. Paulo, Editora Hucitec, 1999.

SLEMIAN, Andréa e PIMENTA,João Paulo G., O «nascimento político» do Brasil, Rio de Janeiro, DP& A editora, 2003.

ALEXANDRE,Valentim, Os Sentidos do Império. Questão Nacional e Questão Colonial na Crise do Antigo Regime Português, Porto, Afrontamento, 1993.

Revista de História da Biblioteca Nacional

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