terça-feira, 23 de março de 2010

A Polícia Carioca no Império


A Polícia Carioca no Império
Marcos Luiz Bretas

E provável que poucos países tenham a história de sua form ação tão ligada ao desenvolvimento de sua justiça criminal como o Brasil. Já desde o próprio período monárquico, a história do Brasil independente se elaborava em torno da formação das instituições e órgãos da justiça criminal, tomados como símbolos ou campos de luta para a constituição da nova nação, local privilegiado da disputa entre as tradições do absolutismo português e as novas idéias do liberalismo então em expansão. Marcos da história politica, na sua forma mais tradicional, foram a criação dos códigos criminal e de processo penal, e sua reforma, que representaram o triunfo da reação conservadora, permitindo a consolidação do Império.!
Desse ponto de vista, parece surpreendente que as instituições policiais tenham recebido apenas atenção passageira, apontando - na versão liberal de Tavares Bastos - para a derrota dos projetos liberais e para a implantação de um regime cennalizador. Na versão liberal, o impulso de liberdade trouxe para o Brasil o que havia de mais moderno nas práticas de justiça européias, como o julgamento por júri, o habeas-corpus e o juiz de paz eleito, para em seguida ceder diante da avassaladora onda centralizadora, representada na prática pela substituição dessas instituições por juízes e policiais apontados pelo poder central.2
Foi a própria forma legal dada ao sistema policial das provincias que deslocou o eixo da autoridade de um papel de manutenção da ordem e de repressão ao crime para incluÍ-la na rede de favores distribuídos pelo Estado, que teria corno contrapartida um papel garantidor de um resultado positivo nas disputas eleitorais.
Seguindo essa linha estabelece-se urna longa tradição intelectual- ainda muito presente - que enfatiza as formas jurídicas e vê na reforma e na liberalização do aparato legal e judiciário o caminho de reformas para a consolidação de um regime democrático no Brasil. A história institucional e política do Estado brasileiro já produziu importantes trabalhos sobre a formação desse arcabouço legal e, num passo adiante, sobre a estruturação de um grupo profissional de magistrados e bacharéis capazes de exercer as funções de produção de justiça, ao mesmo· tempo em que se legitimavam como gestores do Estado em sua totalidade.3
Um outro caminho para se fazer a história da consolidação do Brasil independente torna corno eixo central a constituição de mecanismos de dominação e repressão. As necessidades do nascente Estado pouco teriam a ver com ideais liberais exóticos, concentrando-se as elites nas tarefas imediatas de manter obedientes e ordeiras as massas oprimidas de escravos e homens livres pobres.
Também por esse caminho as instituições da justiça criminal merecem um papel central na definição das formas do Estado brasileiro e, ainda que, mais uma vez, sejam objeto de atenção passageira, são melhor reconhecidas corno o instrumento de controle do que corno urna pela do sistema cuja montagem exigiria uma operação de alguma complexidade.
O objeto deste trabalho se situa na confluência dessas duas linhas, propondo mostrar quem eram os policiais militares no Rio de Janeiro do século XIX. Sua identificação é fundamental para a ampliação de nossa visão sobre os componentes do aparelho de Estado - supondo que a polícia faça parte desse Estado, o que por vezes parece ser ignorado por parte da historiografia -, apresentando funcionários de nível mais baixo que os magistrados e bacharéis normalmente estudados e permitindo conhecer um pouco do que se poderia chamar a história social do Estado brasileiro.
Sua presença nos permite atentar para a exigüidade do grupo profissional que controlava esse Estado, forçado a conviver com agentes recrutados nas relações de poder local e muito menos qualificados, seja no exercício de suas funções de controle sobre a corte, seja na menos conhecida - e talvez ainda mais importante - expansão da esfera de açao do Estado sobre o interior brasileiro. Ao mesmo tempo, o estudo dos policiais nos obriga a refletir sobre a ambigüidade de sua própria condição: agentes da dominação estatal, eram eles muitas vezes vítimas do recrutamento forçado e participantes cotidianos dos dramas das vidas da camada de homens livres e pobres. O engajamento no corpo militar não significava urna mudança de status e o imediato afastamento de sua condição anterior de filhos, irmaos, amigos ou amantes; muito ao contrário, o exercício da atividade policial jamais conferiu atributos positivos na sociedade brasileira, e os policiais conviviam com os mesmos problemas de outros grupos de trabalhadores,
e talvez com alguns mais.
A construção dos agentes encarregados do controle social ainda não mereceu a devida atenção na ciência social brasileira. Recrutados nas camadas sociais que teriam preferencialmente que controlar, policiais e agentes semelhantes podiam muitas vezes se solidarizar com seus objetos, mesmo em detrimento da tarefa que deveriam executar5
Esse problema perpassou a formação de todas as forças policiais no século XIX.
E bem sabido que a imposição de novas normas de comportamento não se fez sem uma série de percalços. A polícia inglesa - paradigma da noção de força policial moderna - adotava como medida básica a dura disciplina militar e enfrentava com um número enorme de demissões a resistência dos policiais a conformarem-se ao modelo de trabalhador padrão, sóbrio e morigerado (Steedman, 1984; Emsley, 1991). Todo esforço era feito para isolar o policial de seus pares trabalhadores, controlando seus locais de moradia, investigando as candidatas a esposa dos policiais, proibindo a freqüência a bares e a contração de dívidas. Ainda assim, a queda do número de demissões que se percebe no último quarto do século indica ao mesmo tempo uma conformação à norma e o desenvolvimento de formas de contorná-la que tiveram de ser toleradas (Klein, 1992).
A relação entre os policiais e os trabalhadores, que se revelou explosiva e marcada por dificuldades na fase de implantação das forças (Storch, 1975), se foi pouco a pouco estabilizando, na medida em que as próprias direções policiais foram percebendo determinados limites de ação, foram reduzindo a ingerência policial sobre os "maus hábi tos" da população trabalhadora e estabelecendo normas de convivência com o jogo e a prostituição que evitavam o confronto permanente (Dixon, 1991; Petrow, 1994).
Problemas semelhantes podem ser encontrados na constituição da força policial de Buenos Aires (Gayol, 1996). Contando com policiais recrutados a partir de recomendações políticas - ao contrário do recrutamento forçado mais visível na força carioca -, também os administradores policiais da cidade e o público em geral tinham muito do que reclamar. Os níveis de exclusão eram extremamente elevados e relacionados com os mesmos tipos de problemas; o pedido de desligamento do vigilante Saverio Elias poderia dizer respeito a muitas forças policiais do século XIX:
"é completamente inútil como agente de segurança ...
não tem maneiras nem inteligência, falta com freqüência, se embriaga, não fala o idioma e nem mesmo conhece as ruas de seu distrito" (citado em Gayol, 1996: 127).



a) Sobre as fontes
Nosso conhecimento sobre a identidade dos policiais do Rio de Janeiro do século XIX -e mesmo do século XX -é muito limitado. Parn o século passado, a documentação sobrevivente não preserva registros de pessoal, oferecendo apenas informações fragmentadas. O que vamos tentar aqui é recuperar informações a panir de relatórios sobre a força policial, fés de oficio e petições apresentadas ao comando da polícia ou ao imperador, nas quais policiais ou seus familiares apresentam seus problemas e constroem a história que os justifica.
Nesses documentos são elaboradas nallativas que visam a obter detelIninados fins: perdão parn uma deserção ou dispensa de levar a telIno o período de engajamento. Para serem bem-sucedidos precisavam oferecer um mínimo de coerência na explicação da demanda e, se possível, manipular valores considerados caros àqueles que iriam receber a petição. Por isso, ocasiões especiais como aniversários e casamentos na família real são aproveitados parn inuoduzir pedidos, e a linguagem parece sempre enfatizar os elogios à benevolência e à sapiência dos senhores do poder.6

E um Ultiverso de homens simples, oriundos das camadas livres e pobres da sociedade-com a exceção de algum possível escravo fugido buscando proteção e melhores condições de trabalho nas fileiras da força pública. Não demonstram muita instrução, e suas histórias, como veremos adiante, falam de pequenas roças, famílias extensas e empregos muitas vezes ligados ao serviço do Estado, em condições que cabe perguntar se seriam muito melhores do que na polícia. Talvez
por isso seja tão importante resgatar as formas de entrada e saída da profissão policial.



b) A polícia no Império
A formação do que viria a ser conhecido como polícia militar tem origem na vinda da família real para o Brasil em 1 808. Adaptando instituições já experimentadas em Lisboa, o príncipe regente cria no Rio de Janeiro uma Intendência Geral de Polícia, órgão administrativo com poderes judiciais e encarregado de um amplo leque de tarefas na administração da cidade. Como a Intendência não dispusesse de pessoal para fazer valer suas determ inações, foi estabelecida a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, corpo estruturado à semelhança do Exército, mas tendo como principal função atender às ordens do intendente na manutenção do sossego público.
Dessa Guarda Real original derivaram as instituições policiais uniformizadas de formato militar que ainda hoje fazem o policiamento urbano no Rio de Janeiro. Com exceção de um breve lapso em 1831, quando o mittistro da Justiça Feijó extinguiu o rebelado corpo policial, essa instituição tem sido permanente na história do Rio de Janeiro. Os quadros originais foram formados na tradição patrimonial portuguesa, com homens de maior poder aquisitivo obtendo o privilégio de comandar um corpo policial, oferecendo como contupartida a manutenção de seus praças. O intendente Paulo Fernandes Viana, em sua prestação de contas, menciona sua ação para obter fundos para a manutenção da Guarda Real, possivelmente através de doações de proprietários abastados?
Não está claro quando essa prática se alterou, mas na década de 1830 já se percebe um recrutamento feito de voluntários ou não, que assinavam um contrato de engajamento por dois anos renováveis.8 Se as condições de trabalho não eram nada boas, uma possível vantagem era a ascensão na carreira. O engajamento era feito no nível mais baixo, e o policial podia obter promoções até os postos superiores, num modelo de carreira pouco usual para as modernas concepções de exército, mas queé sempre apresentado como uma das características básicas, e razão da qualidade, da polícia inglesa. Mesmo os comandantes das companhias podiam ser originários do corpo ou oficiais do Exército.9
O futuro Caxias, que comandou a polícia por um largo período na década de 1830, fazia questão de deixar claro o papel de incentivo que a possibilidade de promoção abria ao policial, ao sugerir a promoção do sargento Antônio da Silva Freire: Ué de criação do corpo e nele goza muito boa opinião, sendo os oficiais os que me deram as melhores informações a seu respeito; e por isso creio que o serviço lucrará muito com o aumento dele, pela esperança em que põe os outros seus
companheiros.,, 10
Seu parecer seria acatado, e Silva Freire continuaria sua carreira na polícia, podendo servir de exemplo de trajetória bem-sucedida: tendo-se engajado em 11 de novembro de 1831, foi promovido a segundo-sargento em 10 de fevereiro de 1832 e a tenente em 10 de julho, como solicitou Caxias.
Chegaria ao posto de capitão em 17 de dezembro de 1839, constando ainda dos quadros da polícia em 1852. 11 É importante perceber que seriam poucos os que
conseguiriam fazer carreira e especialmente ascender ao oficialato; entre os oito capitães listados em 1845, quatro vinham das linhas do corpo e quatro do Exército.

Matéria completa http://cpdoc.fgv.br/revista/

Revista Estudos Históricos - Vol. 12, No 22 (1998) - FGV

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