quarta-feira, 10 de março de 2010

Olho Grego - Liberdade de ou liberdade para?

Liberdade de ou liberdade para?

Renato Janine Ribeiro

Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP). www.renatojanine.pro.br


O maior elogio que se pode fazer ao liberalismo político é este: trata-se do mais nobre projeto para que cada indivíduo seja livre a fim de desenvolver suas potencialidades ao máximo. Se acrescentarmos sem causar dano a outra pessoa, será quase perfeito.
É usual considerar John Locke como o pai fundador do liberalismo, que terá tido outros precursores, mas nenhum tão forte quanto ele. Locke afirma que cada indivíduo "tem uma propriedade em si mesmo" - na sua vida, corpo e bens. A lógica do indivíduo, no liberalismo, é a do proprietário, a do capitalista.
Mas notemos que a principal propriedade, para Locke, não é a dos bens externos - é a que cada pessoa tem sobre sua vida e corpo. Os bens são extensão dessa propriedade primeira. Ou seja, a propriedade por excelência é uma espécie de identidade acentuada. Ter uma "propriedade" em si mesmo quer dizer o que é próprio, característico, distintivo de cada um.

Ser proprietário é ser independente. Sou independente porque tenho uma identidade própria, que não é a do trono, nem a do altar. E sou independente porque tenho bens, que me dão autonomia contra um governante caprichoso. Imaginam se o único empregador fosse o governo?
A decorrência menos feliz desse ideal é que os não-proprietários cabem mal nesse modelo de humanidade. Por isso, o liberalismo não é tão democrático nos seus primeiros séculos. Mas aqui cabe uma ressalva - até porque quero elogiar o socialismo na próxima coluna, e o que agora direi se aplica a ambos.

Ronald Reagan, ex-presidente dos Estados Unidos, em seu discurso inaugural, em 1981. Para ele, o governo era "o problema e não, a solução"


Quando discutimos uma teoria política, podemos responsabilizá-la pelo mal cometido em seu nome. Ou não! Posso censurar o cristianismo pela Inquisição, o liberalismo pela exploração colonial e o socialismo pelas ditaduras comunistas. Mas também posso dizer que o cristianismo, o liberalismo e o socialismo são maiores do que esses crimes. Porque os três estão vivos, podem crescer.
A única condição é não tratar um diferente do outro. Se eu condenar Marx pelo Gulag, condenarei Locke pela escravização na América. Mas, se considerar a mensagem liberal ainda fecunda, os crimes de Stalin não acabam com a mensagem socialista.

Potencialidades
O liberalismo pode ir além do egocentrismo europeu de antigamente ou do neo-liberalismo hoje em crise. No seu cerne, ele quer o mínimo possível de controles, em especial do Estado. "O governo é o problema, não a solução", dizia Reagan, em 1980. A muitos liberais, agradou que o Estado se reduzisse à polícia: do resto, os cidadãos - isto é, os proprietários - se incumbiriam. Mas o liberalismo pode ser mais refinado que isso.
Jean-Jacques Servan-Schreiber, liberal francês de primeira qualidade, propôs o fim da herança. Achava errado um jovem entrar na vida com muito mais chances do que outro. Essa proposta ilumina um lado importante que o pensamento liberal pode ter: a defesa da igualdade de oportunidades.


Para Isaiah Berlin, um dos maiores pensadores do século XX, o mais importante não é a liberdade de fazer coisas (freedom to - que seriam as liberdades sociais), mas a liberdade de não ter que obedecer (freedom from, ou seja, a liberdade de cada um ser o que é), princípio que rege o liberalismo

A igualdade de resultados pode ou não acontecer. O importante é que todos tenham as mesmas chances.
Não é justa a vantagem lotérica que se chama herança. Mais até: é justo todos terem uma boa educação, uma boa saúde. Um liberalismo sério não admite a desigualdade no ponto de partida. Um liberalismo consequente exigirá até que o governo assegure a igualdade de chances. É aceitável a desigualdade, sim, mas a que resultar de minhas ações (ou omissões). Um liberal autêntico - espécie raríssima no Brasil - não gostará muito do bolsa-família, mas apoiará algum tipo de ação afirmativa, que dê oportunidades a quem não as tem.
O que o liberal não aceita é a irresponsabilidade. Cada um é responsável por seus atos. Se eu tiver oportunidades e perdê-las, não me encoste nos outros. A assistência social não é meio de vida. O liberal sério defenderá todo o apoio para que a pessoa ande com as próprias pernas. Mas, se ela não o quiser, não merece dinheiro público.
O liberalismo defende a liberdade e a responsabilidade. Conhecemos programas que buscam - entre adolescentes pobres - talentos musicais, artísticos, científicos, empresariais. Esse empenho é liberal. Vamos dar oportunidades a todos, celebrando quem ganhar um prêmio, uma olimpíada de Ciência, um título de jovem empreendedor.

Construir um homem novo
O erro de muitos liberais é considerar seu projeto político o mais adequado à natureza humana. Acreditam nisso porque sustentam, nas palavras de Isaiah Berlin, um dos homens mais inteligentes do século XX, que a boa liberdade não é a liberdade para fazer isso ou aquilo (freedom to), mas a liberdade de não ter que obedecer (freedom from). Liberdade "para" são as liberdades sociais, como as que podemos ler na Constituição de Cuba: liberdade para construir o socialismo, ter saúde, Educação etc. - mas não a de divergir, de tomar rumo próprio. Já a liberdade "from" é a liberdade de cada um ser o que é.

Mas então por que digo que essa liberdade não é a da natureza humana? Simplesmente porque, para você se responsabilizar por suas escolhas, terá de passar por uma educação demorada e difícil, que o construa como uma nova pessoa, "previsível e previdente", diria Nietzsche. Isso não é fácil. É quase utópico, para usar um termo de que os liberais não gostam. Mas esse é apenas um erro dos liberais. Não é um defeito.

A falha
O problema do liberalismo não está numa suposta crueldade com o pobre. O descaso pelos pobres pode ser maior entre os que se dizem liberais, mas não é o eixo do liberalismo. A falha deste é a dificuldade de perceber a importância dos laços sociais. Como o liberal tem por herói o indivíduo livre para realizar-se, tem dificuldade em aceitar as limitações de sua personagem.
Somos muito marcados pelo nosso contexto social. Na Alemanha de Hitler, simpatizou com o nazismo gente que, em outro regime, seria liberal ou socialista. Para o bem e para o mal, os laços sociais definem muito do que somos. O liberal quer um homem menos dependente de tais contextos, que seja ele mesmo, mas para isso ele também precisa de um contexto. Para criar seu indivíduo autônomo, ele precisa - e muito - do Estado. Há pelo menos um paradoxo nisso.

Revista Filosofia

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