sexta-feira, 12 de março de 2010

Mal ou bem, só falam dele


Mal ou bem, só falam dele
Nos 50 anos que se passaram desde a sua morte, Getulio Vargas continuou influenciando o Brasil ao longo de diferentes momentos da vida pública
Marieta de Moraes Ferreira

O que é que Getulio tem? Como explicar que um líder falecido há mais de meio século continue exercendo forte influência no cenário político do país? Por que, afinal, sua figura é lembrada e relembrada – seja para o elogio, seja para a crítica – sempre que se discutem os grandes temas nacionais?

Em agosto de 2004, quando o suicídio de Getulio Vargas completou 50 anos, o Brasil assistiu a uma onda de celebrações em memória ao ex-presidente. Seminários, exposições, debates, construção de memoriais, artigos em revistas especializadas, cadernos especiais nos jornais, programas de rádio e televisão. O tom era francamente positivo, com as atenções voltadas para o seu segundo governo (1951-1954) – tempos de crescimento econômico e de implantação de políticas industriais que estimularam a ampliação do mercado de trabalho, o que possibilitou maior inclusão social. Tudo isso sob a vigência de normas democráticas. Nos dias de hoje, é compreensível que esse cenário provoque nostalgia naqueles que voltam o olhar para a década de 1950. Afinal, integrar o pleno funcionamento da democracia com a retomada do crescimento econômico e a diminuição das desigualdades sociais ainda é o grande desafio brasileiro.

Nem sempre a memória de Vargas recebeu tratamento tão nobre. Em primeiro lugar, porque se trata de um personagem bastante ambíguo – se por um lado contribuiu com inegáveis avanços para o desenvolvimento do país, por outro liderou um período autoritário e de repressão política em seu primeiro governo (1930-1945). Além disso, no último meio século o Brasil atravessou grandes mudanças políticas e institucionais. À experiência democrática iniciada em 1946 sucederam-se, a partir de 1964, vinte anos de ditadura militar, até que em 1985 se iniciasse novo processo de construção da democracia. Para cada um desses momentos veio à tona um Vargas diferente.

Agosto de 1964. Os dez anos do suicídio coincidem com o início de um novo regime: o golpe militar havia ocorrido em 31 de março daquele ano. Não poderia haver momento pior para o cultivo da memória de Vargas. Seu principal herdeiro, o presidente João Goulart, havia sido deposto, e um grande número de partidários do PTB e do PSD, partidos que lhe deram sustentação no segundo governo, foram afastados da vida pública. Os militares que tomaram o poder apresentavam-se como aqueles que iriam pôr fim à Era Vargas.

“A queda do império getuliano” foi o título de um conjunto de textos publicado no Jornal do Brasil no domingo, 23 de agosto de 1964. Três grandes reportagens procuravam enfocar sua trajetória sob diferentes ângulos. A primeira tratava de aspectos pessoais, da infância até a formação na Faculdade de Direito e o início da vida profissional como promotor. Ainda que de caráter pouco opinativo, o texto deixava entrever simpatia pelo personagem. A seguir apresentava-se uma cronologia comentada dos principais fatos políticos que contaram com a participação de Vargas, como a Revolução de 1930, o golpe de 1937, a deposição em 1945 e a volta ao poder pelas urnas em 1950. Por fim, a matéria intitulada “Memórias de agosto” fazia uma retrospectiva dos acontecimentos que antecederam o suicídio. Em destaque, o depoimento de Café Filho – vice-presidente de Vargas e seu sucessor, cujo breve governo se aproximou da oposicionista UDN –, que apenas relembrava os episódios, sem fazer qualquer julgamento: “Um ex-presidente não deve julgar um ex-presidente”. Talvez os ex-presidentes Kubitschek e Goulart não pensassem da mesma forma, mas eles estavam no exílio e não foram ouvidos.

Curioso é que, enquanto o golpe de 1964 foi visto por alguns como a “segunda morte de Vargas”, não demorou para que o governo adotasse um projeto autoritário que incluía exatamente as idéias de um Estado centralizado e de um sindicalismo corporativista – como se viu na tradição varguista. Por isso, quando chegou 1974, vigésimo aniversário de sua morte, a memória de Vargas ganhou outro tratamento. Na Câmara dos Deputados, os líderes dos novos partidos políticos (a Arena, de apoio ao governo, e o MDB, de oposição consentida) proferiram discursos em sua homenagem. Naquele teatro oficial, o tom era de ênfase no desenvolvimento econômico. Houve também algumas tímidas manifestações nas ruas do país. No Rio de Janeiro, elas se concentraram na praça da Cinelândia, em frente ao busto do presidente. Flores foram deixadas ao pé do monumento e duas mil cópias da carta-testamento foram distribuídas, muitas trazendo também os nomes de candidatos ao Congresso Nacional. Em Porto Alegre, o MDB homenageou Vargas com uma missa e uma concentração política diante do monumento à carta-testamento.

Já a imprensa não produziu apenas conteúdos positivos. Um artigo do jornalista Carlos Castello Branco, publicado em caderno especial do mesmo Jornal do Brasil, indica sua intenção crítica já pelo título: “A ditadura”. O autor rememora a censura praticada no Estado Novo, a ação repressora do governo diante das manifestações políticas e as prisões efetuadas. A figura que emerge é a do Vargas ditador, odiado por aqueles que defendiam a liberdade de expressão e a democracia. Para Castello Branco, a ditadura de Vargas propiciava a “corrupção sob todas as formas e se tornava ineficiente como fator de mobilização para o trabalho. (...) A ditadura é por definição centralista, mas no Brasil daqueles tempos, sem comunicações, havia, além de uma ditadura estadual, ditaduras culturais”. Qualquer semelhança com o contexto da época certamente não se deve a coincidência. Carlos Castello Branco se utiliza da condenação ao autoritarismo do Estado Novo para realçar as arbitrariedades do regime em vigor.

A partir do final de 1978, quando foi revogado o Ato Institucional n° 5, o mais drástico da legislação de exceção editada pelo regime militar, os ventos da abertura começaram a soprar com mais força. No ano seguinte, foi decretada a anistia política e a reforma partidária. Muitos exilados voltaram ao país, e em 1982 houve eleições diretas para governador. Em 1983, um outro tipo de comemoração foi preparado em torno de Vargas: celebrou-se o centenário de seu nascimento.

Os novos ares democráticos possibilitaram a realização de diversos debates sobre a Era Vargas. Pela primeira vez sua memória alimentava análises sobre a história recente do país, a partir de comparações entre diferentes períodos. A reestruturação dos partidos políticos desencadeada em 1979, por exemplo, foi discutida à luz do cenário pós-1945, quando o país também viveu um retorno à democracia. A diferença era que, no pós-Estado Novo, o getulismo e o antigetulismo eram determinantes no jogo político, enquanto no início dos anos 1980 não havia nenhum partido ou núcleo político declaradamente antigetulista. Ao contrário, o getulismo e sobretudo o trabalhismo passaram a ser utilizados como trunfo eleitoral por vários partidos. A exploração eleitoral voltava-se para uma parte específica da memória de Vargas: seu lado nacionalista e patriótico, tal qual exposto na carta-testamento.

De modo geral, o centenário de 1983 redimiu a figura de Getulio Vargas associando-a ao seu segundo governo, democrático e nacionalista. Ainda que alguns artigos mencionassem a face autoritária do líder, o foco não se fixava nessa questão. No ano seguinte, a comemoração dos 30 anos da morte de Vargas assumiu grande relevância no cenário político.

Assim que foi rejeitada a emenda das “Diretas Já”, a oposição lançou a candidatura de Tancredo Neves para a eleição indireta à Presidência. Político conciliador, Tancredo era governador de Minas Gerais. E ex-ministro de Vargas. Em agosto de 1984, o candidato da Aliança Democrática – formada pelo PMDB e pelos dissidentes do governo – juntou-se a Leonel Brizola, do Partido Democrático Trabalhista (PDT, herdeiro do antigo PTB), e a outros líderes em uma caravana rumo a São Borja (RS), cidade natal de Getulio, para prestar-lhe uma homenagem. A memória de Vargas ajudou a costurar a aliança entre PDT e PMDB. Unidos para reverenciar o passado, os dois partidos estavam de olho no futuro. “Getulio é realmente aquele divisor de águas, aquele que havia dado mais que a sua vida, havia dado todo o seu espírito a serviço da emancipação política, econômica e social do nosso povo. (...) Feliz a pátria que pode possuir homens públicos da sua estatura; feliz a nação que pode se honrar de ter tido um filho deste vulto e deste porte”, afirmou Tancredo Neves na ocasião. Brizola aproveitou para sugerir que, dali em diante, 24 de agosto fosse considerado o “Dia da Carta-testamento”. “Mais que a morte do presidente Getulio Vargas, a referida data assinala o lançamento daquele grande manifesto, cujo impacto e a posterior influência sobre os destinos do povo brasileiro são de uma profundidade que ainda não estamos em condição de avaliar. Divulgar o pensamento conclusivo do maior estadista deste século é uma questão cívica que interessa ao conjunto da Nação, com vistas às novas gerações”, discursou o gaúcho, governador do Rio.

A redemocratização do país não transcorreu sem percalços. Eleito presidente em janeiro de 1985, Tancredo morreu antes de tomar posse. No governo de seu sucessor, o vice José Sarney, todas as atenções se voltaram para o combate à inflação, que progredia em ritmo alarmante. A memória de Vargas também não navegaria em águas calmas.

“A Era Vargas acabou”. O mote, que reverbera o discurso dos militares do golpe de 1964, ressurgiu no início dos anos 1990. Era o momento de questionar o modelo de desenvolvimento econômico inaugurado por ele. Em 1994, analistas defendiam que a tendência mundial de abertura das economias, de privatização das empresas estatais, redução da ação do Estado, controle das contas públicas e ajuste fiscal resultaria, para o Brasil, na “terceira morte de Vargas”.
Este foi o título de um artigo assinado pelo cientista político Bolívar Lamounier naquele ano. Segundo o autor, com novas instituições, uma opinião pública livre e novos meios de comunicação, o país vivia um período de construção democrática, no qual desaparecia “a preocupação com a tutela das Forças Armadas sobre o sistema político”. Por isso seria possível “afirmar que o getulismo e o antigetulismo virulentos feneceram”. Outras críticas foram expressas na ocasião, como fez um editorial do Jornal do Brasil (25/8/1994) que apontava o corporativismo como herança negativa do varguismo enraizada na sociedade brasileira.

A oposição, por sua vez, tentava usar o mito a seu favor. Para a economista Maria da Conceição Tavares, o então candidato à Presidência pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva, era o principal herdeiro do trabalhismo de Vargas, enquanto o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), de Fernando Henrique Cardoso, poderia ser comparado à antiga UDN. Depois de eleito FHC, muitas vozes da oposição continuaram a apregoar os valores positivos de um certo legado varguista. Na luta contra as privatizações e no debate sobre a revisão da legislação trabalhista, a figura de Getulio era acionada para contestar os novos rumos tomados pelo país.

O embate ganhou novas feições em 2004. Desde o ano anterior, o país vivia sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, ex-líder operário que iniciou sua carreira política no final do regime militar, fundando o PT, e que jamais se declarou, ele próprio, herdeiro de alguém.

Contrariando certas expectativas de que o velho líder não mais despertaria grande interesse, naquele ano Vargas ressurgiu com grande vigor. Os principais jornais do país prepararam alentados cadernos especiais. As revistas de História dirigidas ao grande público saíram com fotos de Vargas estampadas na capa. Políticos e intelectuais dedicaram-se a discutir o assunto.

Para alguns analistas, a vitória de Lula na eleição de 2002 poderia representar a retomada de alguns ideais do nacional-estatismo. Cristóvam Buarque, ministro da Educação de Lula até janeiro de 2004, foi um dos que colocaram 1954 em pauta: “Apesar da revolução que significou a eleição de Lula e o governo do PT, 2004 ainda não deixou claro o novo rumo que o país precisa e espera desde 1954”. O ex-ministro não chegava a defender as opções de Vargas, mas destacava a necessidade de conhecê-las para criar um outro projeto nacional: “Ainda é tempo de mudar, de reorientar o Brasil. Lembrar o passado em geral é o melhor passo para começar a construir o futuro. O futuro da continuação do mesmo, dos últimos 50 anos, ou da construção do novo para o século XXI”, escreveu.

A idéia de “construção do novo” não era compartilhada por todos os setores do governo. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por exemplo, criou o “Projeto Getulio Vargas”, que realizou seminários e produziu documentário, livro, exposição, show e memorial com a estátua de Vargas. O projeto manifestava a intenção de “contribuir para o fortalecimento da história [de Vargas], a valorização de seu legado e, sobretudo, o resgate da memória de importantes conquistas para o cidadão brasileiro”. Então presidente do banco, o economista Carlos Lessa defendia o nacionalismo e as políticas econômicas de Vargas, em oposição ao projeto neoliberal do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Nas palavras de Lessa, “um presidente de alma seca achou que devíamos enterrar a Era Vargas. O que este presidente deixou de legado?” Reforçando a associação do novo presidente com o antigo líder trabalhista, afirmava que “a agenda recuperada de Vargas nos aponta uma continuidade entre o nacional-desenvolvimentismo dele e de sua época e o desenvolvimentismo nacional democrático de Lula”.

Poucas vozes eram exclusivamente de críticas a Vargas. Uma delas foi a do Instituto Liberal, de oposição ao governo Lula. Cândido Prunes, vice-presidente do Instituto, argumentava que o país cometia um erro ao esquecer “a truculência política da era Vargas”. E ia além: “Neste ano em que se registram os 50 anos do suicídio de Getulio Vargas, deveria se iniciar uma campanha pelo banimento do seu nome de todas as ruas, avenidas, praças e locais públicos. Foi ele um caudilho sanguinário que deveria merecer o opróbrio, como qualquer ditador. Ou então, por uma questão de justiça, comecemos a homenagear os militares ‘linha dura’ de 1964”.

Mas, em geral, as opiniões críticas não expressavam um antigetulismo radical. Mesmo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou, em palestra no jornal O Globo, que suas declarações ao tomar posse em 1994, relativas ao “fim da Era Vargas”, foram mal interpretadas. Afirmou que nunca fora antigetulista, apenas achava que o modelo varguista havia se tornado obsoleto nos novos tempos. E tratou de elogiar o líder: “Getulio não era caudilho. Foi fruto das circunstâncias, mas tinha capacidade tática, malícia, visão”.

De lá para cá, grandes temas da Era Vargas continuam na ordem do dia, como o desenvolvimentismo, o nacionalismo e a intervenção do Estado na economia. Discussões que devem ganhar nova roupagem com a chegada das eleições. Não se sabe ainda como a figura do líder vai reaparecer, mas uma coisa é certa: 54 anos após 54, Getulio continua vivo. E bem na foto.

Marieta de Moraes Ferreira é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC).

Saiba Mais - Bibliografia:

BRANDI, Paulo. Da vida para a história. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
GOMES, Ângela de Castro; PANDOLFI, Dulce Chaves; ALBERTI, Verena (coord.). A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/CPDOC, 2002.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
SILVA, Hélio. Um tiro no coração. (1a ed., 1980). Porto Alegre: L&PM, 2004.

Revista de História da Biblioteca Nacional

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