terça-feira, 30 de março de 2010

A grande peste

Médico (usando máscara) que cuidava de doentes com a peste negra.

Imagem extraída de Bíblia (Toggenburg Bible, 1411) que retrata os efeitos da Peste na população européia do período medieval.


A grande peste
A doença foi levada para a Europa por ratos e pulgas. Uma em cada três pessoas morreu em menos de cinco anos. Nunca, nenhuma guerra ou catástrofe matou tanta gente em tão pouco tempo: 25 milhões de pessoas
por Voltaire Schilling
Os sintomas não deixavam dúvidas. Atacada por uma febre de 40 graus, a vítima sentia crescer na virilha ou na axila um inchaço que assumia a forma de um doloroso furúnculo do tamanho de um ovo ou de uma laranja. Insônia e delírios complementavam o mal-estar, fazendo com que o infeliz temesse tanto o sono como o despertar. No segundo ou no terceiro dia, seu corpo estaria tomado por esses bubões. Se tivesse sorte, os caroços se abririam em pus, dimuinuindo a dor e a febre. Aí surgiriam as manchas pretas na pele. Ardendo, com feridas por todo o corpo, o condenado sentia-se como se na ante-sala do inferno. Era a peste negra ou peste bubônica.

O aspecto do desgraçado tornava-o repelente. Os olhos inchados pelas infecções e os membros cobertos pelas pústulas deixavam claro que a sua hora chegara e nada no mundo o salvaria. Neste momento de agonia, nos estertores de uma tremedeira sem-fim, ninguém mais se aproximava dele. Nem pai, nem mãe, nem irmão ou amigo que se apiedasse. Todos debandavam, temendo a contaminação. Cerca de uma semana depois dos primeiros sintomas, a vítima estava morta. Com poucas variações, foi assim que 25 milhões de pessoas morreram abatidas pela peste entre 1347 a 1351.

Ainda mais rápida que a doença corriam as histórias sobre ela. As primeiras notícias da peste vinham da Ásia, onde ela já fazia vítimas. Os relatos dos viajantes da rota da seda – que ligava a Europa à China – davam conta de mortes por causa da doença por volta de 1330, no deserto de Gobi. Aparentemente, a peste vivia nas tocas de roedores silvestres na região entre a China e a Índia. Ela permaneceu ali por milhares de anos, passando de roedor para roedor, carregada pelas pulgas, isolada naquela imensidão. Não podia ir muito longe, já que seus hospedeiros não costumam fazer longas viagens e mesmo as pessoas que ocasionalmente eram infectadas não se afastam muito de casa. No entanto, o mundo nunca fora tão pequeno, quanto no século 13. Uma tropa de nômades mongóis pode ter acampado próximo a uma toca de ratos, ou um deles pode ter se juntado a uma caravana, ou, ainda, uma minúscula pulga pode ter ido do dorso de um roedor para as roupas de um mensageiro que cruzava as estepes.

Nunca saberemos. O certo é que ela chegou à península da Criméia, no Mar Negro. Ali, no porto de Kaffa, a doença apareceu após um ataque de mongóis da Horda de Ouro. O lugar era freqüentado por mercadores genoveses e venezianos, que aportavam seus navios à espera de bons negócios. Sem saber que podiam estar infectados, os marinheiros alçaram velas para retornar à Europa. Passaram por Constantinopla e, em seguida, já abalados pelo efeito epidêmico, rumaram para o porto de Messina, na Sicília.

Além dos homens doentes, o navio transportava ratos. Milhares deles. E, claro, ocultas nos pêlos dos roedores, uma impressionante carga de pulgas. Ali, todos foram vetores da contaminação, já que uma vez que chega ao hospedeiro, a peste desenvolve dois tipos de epidemia: a bubônica e a pneumônica. A primeira expande-se pelo sangue, gerando os bubões nas ínguas e as ulcerações pelo corpo. Mas, mantendo-se na corrente sangüínea, só pode ser transmitida pela picada da pulga ou pela mordida do rato. A outra forma, no entanto, invade os pulmões, destruindo-os, provocando a expectoração. Essa forma pode ser trasmitida também pelos humanos, já que a cada vez que tossem lançam milhares de bacilos no ar.

A peste negra não era uma completa desconhecida em terras européias. Em 541, uma epidemia havia atingido as costas do Mar Mediterrâneo. Dessa vez, porém, ela encontrou um ambiente diferente, muito mais atraente para seu apetite. A população da Europa crescera muito nos séculos anteriores e havia mais gente do que comida disponível. Nos anos que precederam a década de 1340, invernos rigorosos dizimaram as colheitas, aumentando o contingente de famintos.

As más colheitas e a fome concentraram ainda mais gente nas cidades já superlotadas, onde as más condições de habitação e a falta de higiene e asseio contribuiriam para a propagação da peste. Descendentes dos povos bárbaros, dos godos, dos lombardos, dos alamanos, dos borguinhões, dos francos e saxões, que invadiram as antigas províncias romanas, os europeus viviam de maneira bem pouco saudável. Todo o antigo sistema sanitário romano, inclusive as latrinas, fora destruído. Durante o dia inteiro, das portas, do alto das sacadas ou das janelas, era um sem parar de jogar baldes e bacias cheias de tudo o que se possa imaginar bem no meio da rua. Os aquedutos, canais de esgotos e termas para banhos públicos foram delapidados pelos invasores que, com as pedras já talhadas, ergueram fortins ou castelos para protegerem-se contra os inimigos.

Nas cidades não havia nenhuma profilaxia que pudesse precaver os habitantes contra epidemias ou algum tipo de limpeza pública eficaz, tanto é assim que cabia aos porcos – e ao seu apetite voraz – o serviço de faxinar tudo. Ao comerem restos tocados ou usados pelos homens, também eles morreram em massa.

A morte chegou

Foi assim, em cidades sujas e superpovoadas que ratos e pulgas encontraram o ambiente perfeito para espalhar o mal. Do Mediterrâneo, a peste atingiu o norte da África: Alexandria, Cairo, Túnis, Argel, Tânger e do Marrocos para a península Ibérica foi um pulo. O sul da Espanha foi devastado: de Córdoba, na Andaluzia, até Barcelona tudo ficou de pernas para o ar: 290 mil pessoas morreram no reino da Catalunha. Europa adentro, a doença chegou à Roma e Florença. De Marselha, no sul da França (que deixara os barcos pestíferos ancorarem no seu cais, no dia 1º de novembro de 1347, ironicamente dedicado à festa dos mortos), rumou para o interior do país mais povoado do continente. Nas ilhas britânicas, a peste desembarcou em Weymouth, no dia 7 de julho de 1348. Insaciável, também por mar ela chegou a Bristol, então a segunda maior cidade do reino, matando 10 mil habitantes. Em Gales, Escócia e Irlanda, a doença só cederia em 1350.

Os pobres morriam aos milhares. Nas ruas, sem auxílio. Muitos acreditavam que a pestilência era uma trama dos nobres para que os plebeus fossem para o inferno – enquanto os ricos escapavam, refugiando-se em suas propriedades no campo, onde podiam se proteger de estranhos ou recém-chegados. Mas a verdade é que a peste negra foi ao seu modo uma catástrofe igualitária. Gente poderosa também sucumbiu.

O rei de Castela, Afonso XI e a futura rainha da França, Bonne de Luxemburgo, mãe dos dez filhos de Jean II, o Bom, morreram com os corpos ulcerados, agonizando como qualquer comum. Chanceleres ingleses e três arcebispos de Canterbury também entraram na lista. A peste devastou mosteiros e conventos. Em Montpellier, na França, só sete frades, num total de 140, escaparam da morte. Em Marselha, todos os 150 franciscanos foram de uma vez só aos céus, o mesmo dando-se com 27 monges da Abadia de Westminster, na Inglaterra. Na região do Perpignon, na França, dos 125 notários que existiam sobraram só 45, dos dez médicos, somente um continuou vivo e 16 dos 18 barbeiros-cirurgiões morreram. Todos os profissionais que tinham de lidar com o público estavam expostos. Para consternação do rei Felipe da França, seus arrecadadores de impostos também apodreceram nas estradas.

Nem o líder máximo da Igreja Católica, Clemente VI estava a salvo e teve de deixar Avignon, no sul da França (então sede do papado), quando a mortandade atingiu 400 pessoas por dia, entre 1348 e 1349. Ele aguardou quase um ano em um lugar isolado e montanhoso o mal enfraquecer.

A morte aos milhares pioraram as já precárias condições de saúde da época. Os cadáveres se avolumavam, decompondo-se nos lares ou jogados na frente das casas. Os féretros dos figurões, antes um acontecimento solene, com a parentela e os grandes da cidade acompanhando o caixão até o mausoléu da família, ao som de um bumbo fúnebre e flauta triste, acabaram virando uma cerimônia grotesca. Um par de humildes padioleiros desconhecidos, contratados a peso de ouro, carregavam o defunto quase que na corrida para ir jogá-lo às pressas na primeira cova aberta que encontravam. Nas capelas e igrejas, os mortos eram empilhados como se fossem carga de navio. Trazidos em carroções, como achas de lenha podre, enfiavam-nos, sem reza ou bênção, três ou mais, num só buraco aberto no chão.

Até os animais morriam aos montes. Andar pelas ruas era um risco e um sacrifício. Logo, os poucos atrevidos traziam junto às narinas plantas aromáticas para atenuar a fedentina dos restos insepultos e do lixo que se acumulava por toda a parte. Florença ficou quase deserta pela fuga dos que ainda podiam andar. Mas a situação no campo, que no início era o melhor lugar para escapar da peste, já não estava muito diferente.

A doença parecia perseguir os homens, onde quer que eles fossem.

Horror e culpa

Em outubro de 1348, os doutores da Sorbonne de Paris, enfim, diagnosticaram o mal: a má confluência dos astros estava causando o estrago. O alinhamento de Saturno, Júpiter e Marte, asseguraram eles, era o responsável pelas mortes.

Fosse quem fosse o culpado, rogos, preces, promessas e penitências, rezas a São Roque, o protetor dos lazarentos, nada arrefecia o implacável destino que estava reservado às populações atacadas pela doença. Ao contrário, qualquer ajuntamento pretendido, a mínima formação de um punhado de fiéis para reclamarem dos céus os rigores da vara de Deus, matava mais gente ainda. Calcula-se que dos 1,2 milhão de peregrinos que foram a Roma para celebrar o Ano Santo de 1350, somente cem mil deles restaram vivos. O papado tratou de proibir as grandes procissões dos dias santos e de liberar os moribundos da extrema-unção.

O desespero crescente levou aos atos radicais e ao fanatismo religioso. A doença era a marca do pecado e se alguém sofria no leito era porque boa coisa não fizera antes. Na Alemanha, começou um movimento que procurava aplacar a ira de Deus, por meio da mortificação coletiva e era chamado de Irmandade dos Flagelantes. Prática desconhecida na Europa até o século 11, o hábito das disciplinas, como designavam a autoflagelação, virou rotina durante aqueles anos. Vestindo-se com uma bata ou um saco branco, com uma cruz vermelha no peito, eles peregrinavam de aldeia a aldeia, repetindo ladainhas, chicoteando-se nas costas com tiras de relho com pontas de ferro. No início eram apenas inocentes aberrações, mas com o tempo os fervorosos flagelantes se tornariam perigosos para as outras pessoas.

Na procura de um motivo para a peste, os europeus se voltaram contra os estrangeiros, acusando-os de trazerem a doença. Na Espanha, por exemplo, os árabes eram o alvo preferido, em Portugal, os peregrinos religiosos. Em todo o norte da Europa, os judeus foram acusados de envenenarem a água dos poços e das cisternas. Foi a mais violenta onda de anti-semitismo até então, mais intensa do que nos tempos da Primeira Cruzada, no século 11, e somente superada pela desencadeada pelos nazistas no século 20. Na península Ibérica, incitadas por padres apopléticos, as aljamas ou juderias – comunidades que reuniam os judeus – foram invadidas por turbas ensandecidas que destruíam tudo pelo caminho, prendendo os moradores para serem em seguida queimados ou afogados. Em Basel, na Suíça, todos os judeus da cidade foram reunidos, presos em estacas de madeira e queimados vivos. Em Estrasburgo, na época pertencente à Alemanha, dois mil judeus foram mortos em fogueiras coletivas.

Nem a ação do papa Clemente VI, que expediu as bulas de 4 de julho e 26 de setembro de 1348, isentando oficialmente os judeus de qualquer responsabilidade no contágio da peste, evitou os assassinatos em massa.

Quando a praga por fim arrefeceu, no fim do ano de 1351, saciada por tanta gente que matou em cinco anos de horror, a Europa não seria mais a mesma. As elites medievais com sua fé abalada pela devastação, tornaram-se cada vez mais sombrias, inclinaram-se por temas mórbidos e místicos. As relações comerciais demorariam dezenas de anos para reconquistar a força de antes da crise. As ruas e as cidades, os campos e as estradas estavam vazias, as autoridades haviam sumido. Os portões dos feudos se fecharam para os visitantes que passaram a ser vistos como inimigos. O isolamento entre os reinos tornou-se ainda maior e havia um crescente sentimento de xenofobia. Ninguém era bem-vindo e todos eram suspeitos de carregar a peste. Os anos que se seguiram, os europeus viveram assolados pelo medo e por uma só pergunta: quando ela vai voltar?

Faces da morte
Quem ousou sair às ruas de Florença, ou qualquer outra grande cidade européia, naquele verão de 1348, deparou-se com imagens que nunca mais esqueceu. A morte estava em todos os lugares, afetou a todos e mudou a história da Europa. Ninguém ficou livre de seus efeitos e conseqüências

Ratos

Os pequenos roedores morreram aos milhões. Caíam nas ruas, eram varridos para fora das casas, mas, curiosamente, ninguém parece ter notado que eles pudessem estar particularmente envolvidos com a doença. Raramente relatos da época citam os roedores

Corpos

No calor do corpo humano uma batalha era travada. A peste injetada na corrente sangüínea causava nódulos ou bubos. Mesmo sem tratamento, cerca de um em cada três doentes sobreviviam à peste bubônica. Mas em um de cada 20 contaminados, a peste chega aos pulmões. Para esse infeliz, a morte é certa

Clero

Padres e monges não escaparam da tragédia e, se não foram as vítimas preferenciais, já que a peste não fazia distinção, estiveram entre as mais bem documentadas. Em Montpellier, por exemplo, só sete religiosos escaparam num total de 140 internos no convento local. O medo do contágio fez o papa suspender a extrema-unção, um dos sacramentos da Igreja Católica Romana

Médicos

A medicina não impedia o avanço da doença. Havia quem pensasse que ela era transmitida pela respiração, outros que bastava um olhar para propagar a peste. A maioria achava que os miasmas, ou o “ar ruim”, eram os culpados e receitavam a queima de ervas ou a aspersão de água de rosas. Enquanto isso, morriam os médicos também

Xenofobia

Viajantes, peregrinos e negociantes, ninguém mais era bem-vindo. As cidades fechavam suas portas e proibiam a entrada de estrangeiros. Árabes e judeus foram acusados de trazer a doença. Se já havia esse sentimento em alguns lugares na Europa, a peste deu uma justificativa ao ódio, atiçando o preconceito e o medo nas pessoas

Revista Aventuras na História

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