domingo, 21 de março de 2010

Artigo aborda como médicos promoviam amamentação no final do Brasil Imperial

Artigo aborda como médicos promoviam amamentação no final do Brasil Imperial
Renata Moehlecke

O estímulo à culpa e ao medo: esse era o principal artifício usado por doutores em medicina na segunda metade do século 19, que condenavam o emprego indiscriminado de amas-de-leite, para tentar convencer mães a amamentar seus próprios filhos. Quem conta essa história é a pesquisadora Sandra Koutsoukos, que analisou como os médicos da época viam a questão das amas-de-leite a partir de teses e fotografias. O estudo foi publicado no décimo sexto volume da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos da Fiocruz.

Ama de leite, ilustração de Ivan Wasth Rodrigues (1927-2008) para Casa grande e senzala em quadrinhos

Segundo Sandra, era comum famílias procurarem serviços de amas-de-leite em meio a suas próprias escravas, recorrendo a vizinhos que podiam indicar amas já conhecidas ou até mesmo em anúncios de jornais locais. No entanto, as constantes epidemias de febre amarela e cólera que assolavam as cidades fizeram com que médicos higienistas incentivassem um maior controle sobre a amamentação pelas mães. Eles somente aconselhavam procurar uma boa ama quando as mães tinham algum problema físico, de saúde ou de nervos.

“Os médicos higienistas ameaçavam as mães que não amamentavam os próprios filhos com inflamações nos seios e em outros órgãos, devidas a líquidos que, no estado ‘de penhes’, se acumulavam no útero e seriam depois eliminados pela amamentação”, afirma a pesquisadora. “Mencionavam também a perda do amor do filho, que só teria carinho para aquela que o amamentara e assim incrementavam a campanha em favor da ‘mãe higiênica’”.

Além da tentativa dos médicos de criar a ‘nova mãe’ ou a ‘mãe higiênica’, que se encarregaria dos cuidados de seus filhos e seria aliada dos profissionais de saúde, Sandra aponta que surgiram, na década de 1880, algumas propostas de regulamentação do serviço de criadas e amas-de-leite livres ou escravas, que passariam periodicamente por exames médicos, em clínicas montadas para tal fim. “Os exames visavam dar mais garantias aos patrões de que seus filhos, caso não houvesse alternativa e precisassem ser nutridos por amas-de-leite, estariam protegidos contra uma série de doenças e ‘germes’ de moléstias, as quais, acreditavam os médicos, poderiam ser transmitidas às crianças”.

Os doutores da época, de acordo com a pesquisadora, dividiam o aleitamento em suas teses em quatro tipos: materno, artificial, mercenário e misto feminino. Para eles, o materno se definia como fruto do amor, um impulso sublime e generoso, caracterizações que podiam fazer as mães sentirem culpa por não amamentar. No aleitamento artificial, o bebê tomava leite de vaca, cabra, ovelha ou jumenta, sendo que algumas vezes tomava diretamente do animal. “Nesse caso, os médicos aconselhavam dar preferência às cabras. Diziam eles que o leite das jumentas assemelha-se mais ao humano, no entanto seria mais difícil lidar com esses animais do que com as cabras, de temperamento mais dócil”, comenta Sandra. “A partir dos anos 1870 passou-se a oferecer aos bebês leite condensado diluído e também farinha láctea, essa última uma novidade importada naquele período”.

O aleitamento chamado pelos doutores de mercenário era o realizado pelas amas-de-leite. Nesse caso, os médicos realizavam um exame rigoroso das condições de saúde da candidata, que passava por sua constituição física (deveria ser forte ou pelo menos regular), pela análise da possibilidade das amas terem leite abundante e de boa qualidade, pela demonstração de bons costumes, experiência de cuidado com crianças, fisionomia alegre e agradável e, dentre outros fatores, pela questão da manutenção de uma boa alimentação.

“A partir da década de 1850 aumentou o número de anúncios de senhoras brancas imigrantes a se oferecerem como amas-de-leite, mas alguns médicos alertavam, em suas teses, que as mulheres a se prestar a tal serviço, nivelando-se as escravas, teriam ambição desmedida e, portanto, deveriam ser evitadas”, destaca a pesquisadora. “Acreditava-se também que pelo leite seriam transmitidas à criança as qualidades culturais da nutriz, daí as críticas às amas negras envolverem ojeriza racial contra negros, acusando-se seu leite de transmitir, aos bebês brancos, características de inteligência, cultura e hábitos dos negros”.

Além dessa noção de transmissão de “doenças morais”, de fato, algumas doenças representavam grande risco, mas o perigo pairava sobre os bebês e as amas. “Com relação à sífilis, por exemplo, que ocorria em qualquer camada social, da mesma forma que uma ama contaminada poderia transmitir a doença ao recém-nascido, este poderia já ter sido infectado pela própria mãe e passar a doença a sua nutriz”, esclarece Sandra.

Em relação ao quarto tipo de aleitamento, o misto feminino, a pesquisadora elucida que ele era realizado por mães que, por fraqueza física ou por considerar que tinham pouco leite ou leite ‘fraco’, não queriam privar-se de participar do ato de criar o bebê, dividindo o aleitamento com uma ama. “Por muito tempo, entretanto, e para muitas famílias de posses, a escolha entre amamentar ou não ultrapassava o domínio exclusivo da mulher; tratava-se de decisão do casal e, às vezes, até do núcleo familiar mais abrangente”, acrescenta a pesquisadora.

Publicado em 7/8/2009.

Fio da História
FIOCRUZ

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