domingo, 21 de fevereiro de 2010

ROMA - O IMPÉRIO DA PROPINA


O IMPÉRIO DA PROPINA
Tudo valia dinheiro. Os postos militares que garantiam a polícia dos campos e ali preenchiam os cargos administrativos [pág. 95] faziam os povoados votar-lhes gratificações (stephanos). Todo funcionário dava um jeito para que lhe molhassem a mão a fim de executar a menor tarefa; a necessidade de tosar os animais sem os esfolar muito levou à divisão equânime dos lucros: as propinas acabaram sendo oficialmente tabeladas e o preço de cada etapa foi afixado nos escritórios. Os administrados tinham o cuidado de se apresentar diante de um funcionário ou de um alto dignitário com um presente na mão; afinal, tratava-se de reconhecer com um símbolo substancial a superioridade dos chefes sobre os comandados.
Às propinas acrescentavam-se as extorsões praticadas pelos altos mandarins. Depois da conquista romana da Grã-Bretanha, a administração militar obrigava as tribos submetidas a levarem suas cotas de trigo a celeiros públicos muito distantes, depois cobrava pela permissão de entregá-lo em celeiros mais próximos. Exigir pagamentos ilegais constituía o grande negócio dos governadores de província, que compravam o silêncio dos inspetores imperiais e dividiam os lucros com seus oficiais e chefes de departamento. O poder central fazia vista grossa, bastava-lhe receber sua parte. Pilhar as províncias como governador era, diz Cícero, "o caminho senatorial de enriquecimento"; um caso fenomenal como o de Verrès, que trouxe sua província da Sicília a rédea curta e estabeleceu ali um terror sangrento, é comparável ao gangsterismo de Estado de alguns presidentes da América Central — Duvalier, Batista, Trujillo. Em menor escala, o princípio do governo de província como empresa econômica privada subsistiu durante todo o Império. Ninguém fazia mistério disso. Os poetas eróticos esperavam impacientemente que os maridos deixassem a esposa para ir enriquecer longe durante um ano de província; declaravam que, por sua parte, viviam apenas para o amor e desdenhavam os cuidados com a carreira e a preocupação de fazer fortuna. Um romano enriquecia em parte à custa dos cofres públicos; um governador recebia escusamente colossais quantias para sua missão e jamais prestava contas; sob a República, tais quantias representavam a maior parte do orçamento do Estado. Quanto ao resto, além [pág. 96] das extorsões, o governador negociava; o último século antes de nossa era viu os negociantes italianos se apoderarem de todas as posições econômicas no Oriente grego com a ajuda interessada dos governadores ali estabelecidos. Por isso os governadores romanos apoiavam os mercadores romanos: corrupção, e não "imperialismo econômico".
Até o último século era honesto enriquecer como governante. Em A cartuxa de Parma, quando o conde Mosca deixa o mistério, pode dar ao grão-duque uma prova incontestável de sua honestidade: tendo chegado aos negócios públicos com 130 mil francos, ao sair possui apenas 500 mil; Cícero, depois de um ano de governo de província, ganhou o equivalente a 1 milhão de francos e pôde vangloriar-se: era bem pouco. Os antigos sistemas administrativos têm em comum com o que chamamos de administração apenas o nome; durante milênios, os soberanos extorquiram impostos ou subjugaram as populações servindo-se de uma máfia chamada administração, exatamente como os reis da França, à guisa de Marinha de guerra, concediam cartas de navegação a piratas que batizavam de corsários e que dividiam com eles os lucros do corso. Ninguém servia o Estado, porém dele se servia — concepção censurável talvez, mas psicologicamente um corsário não é um oficial da Marinha de alma corrompida.
Não se tratava de ser íntegro, mas de ter tato, como um comerciante que não deve deixar a clientela perceber que vende apenas em seu próprio interesse. Ora, enquanto os governantes se servem servindo ao imperador, as populações oprimidas querem poder acreditar que esses senhores paternais as oprimem para seu próprio bem. "Sê obediente e o governador te amará", escreve são Paulo. Assim, é preciso enriquecer sem que atitudes muito explícitas impossibilitem tal crença; o interesse dos funcionários nos benefícios do poder não deve desmentir o desinteresse do próprio poder. De tempos em tempos um processo público dava um exemplo e a cabeça de um governante caía, ou pelo menos sua carreira: esse desastrado manifestara sentimentos cinicamente interessados; encontrou-se uma carta na [pág. 97] qual escrevia à sua amante: "Alegria! Alegria! Venho a ti livre de minhas dívidas, depois de colocar à venda a metade de meus administrados" (é uma das três ou quatro cartas de amor que nos chegaram da Antiguidade). Quanto ao imperador e seus altos funcionários, provavam o desinteresse do poder desmentindo os próprios subordinados; o imperador ostensivamente criticava o fisco — que outra coisa não era senão o administrador dos domínios imperiais —; de quando em quando atendia a uma súplica de camponeses que se queixavam das exações de seus agentes e expedia um edito suprimindo a corrupção: "Que as mãos dos funcionários deixem de ser ávidas, que deixem, repito", escrevia. Quanto aos altos funcionários, fixavam as propinas, o que os legalizava.

História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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