quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Índios gigantes, uma história com um grande final feliz


Índios gigantes, uma história com um grande final feliz
Primeiro, eles assombraram o país: eram os índios mais altos já encontrados. Depois, foram removidos, exilados, humilhados e quase extintos. Mas se reergueram, reagiram e recuperaram suas terras.
por Ricardo Arnt, de São José do Xingu
Eles se esconderam durante 200 anos no fundo da floresta do norte do Mato Grosso. Tão desconhecidos que nem nome tinham. Eram chamados de krenacore, kreen-akarore ou krenhakore. Eram uma lenda: “os índios gigantes”.

Em 1970, o governo mandou construir a estrada Cuiabá-Santarém em cima da terra deles, na bacia do Rio Peixoto de Azevedo. Uma expedição chefiada pelos irmãos Orlando e Cláudio Villas Boas partiu para encontrá-los. Mas os vírus do homem branco chegaram primeiro. Rendidos pela febre e pela morte, afinal se deixaram vacinar. Descobriu-se, então, que poucos eram altos. Não eram gigantes como o mito fazia supor. E tinham nome: chamavam-se panarás.

A abertura da estrada ao tráfego, em 1974, completou o estrago. De 400 sobraram apenas 79. Por isso, em 1975, a Fundação Nacional do Indio (Funai) levou todos os sobreviventes, de avião, para o Parque do Xingu. Foi uma viagem incrível. Em um instante, eles foram para outro mundo. Lá, perambularam feito fantasmas, durante anos, trocando de aldeia sem parar.

Esta seria mais uma história triste, igual à de muitos outros índios brasileiros, mas os panarás se reergueram e se recuperaram. Retornaram ao território original. E acabaram convencendo a Funai a apoiá-los. Hoje, vinte anos depois, estão voltando pra casa, felizes. Quem disse que não eram gigantes?

Uma viagem por cima das nuvens

Nos anos 70, a presença de índios gigantes e misteriosos no caminho do progresso da estrada Cuiabá-Santarém hipnotizou o Brasil. Parecia que a história ia colidir com a pré-história. A expedição para contatá-los foi a mais fotografada da antropologia brasileira. A imprensa acompanhou tudo. O poeta Carlos Drummond de Andrade fez um poema para eles e até o beatle Paul McCartney compôs uma música chamada Kreen-Akrore.

Os panarás são os últimos descendentes dos kayapós do sul, grupo nômade que falava uma língua da família jê (veja a página 43) e habitava o Brasil Central, no século XVIII, do norte de São Paulo até o Mato Grosso. Lutaram muito contra os portugueses. A descoberta de ouro em Goiás, em 1722, em seu território, empurrou os que restaram para as matas ao norte.

Segundo o antropólogo americano Stephan Schwartzman, “há evidência etno-histórica de que os panarás ocupavam a bacia do Peixoto de Azevedo desde 1920”. Schwartzman, que acompanhou a SUPER nesta reportagem, fez tese de doutorado sobre o grupo na Universidade de Chicago e é um dos três não-índios que falam a língua panará. Os outros dois são antropólogos ingleses. Nenhum brasileiro.

A ferocidade dos gigantes era lendária. Quem mais espalhou notícias sobre eles foram os inimigos txucarramães – em parte para aumentar a própria valentia. Orlando Villas Bôas, hoje com 82 anos, conta que “em 1950, os kayabis também falavam deles. Diziam que eram muito grandes. E morriam de medo”. De avião, os indigenistas viam as aldeias no Peixoto de Azevedo, mas acharam melhor não tentar o contato. Em 1961, o geógrafo inglês Richard Mason foi morto ao entrar nos domínios dos panarás.

Tempo de morte

Nos anos 60, duas expedições tentaram encontrá-los, em 1967 e 1968. Fracassaram. Mas em 1970, o governo anunciou o Plano de Integração Nacional e a construção das estradas Transamazônica, Manaus-Boa Vista e Cuiabá-Santarém. A Funai recebeu a missão de “pacificar” trinta tribos e os Villas Bôas – que haviam criado o Parque Indígena do Xingu, em 1961, reunindo quinze tribos – foram chamados para “atrair” os gigantes.

A estrada estava chegando às aldeias, em 1972, quando a terceira expedição partiu da Base Aérea do Cachimbo, no sul do Pará. Eram 28 pessoas. Caminharam, quatro meses, até atingir o Peixoto de Azevedo, onde fizeram uma pista de pouso. Queriam convencer os panarás a não atacar os operários que viriam em seguida.

Mas, em julho de 1972, 2 070 trabalhadores e 347 veículos já estavam na região. Os índios espionavam e fugiam. Em maio, flecharam um trabalhador. Foi aí que os vírus atingiram as aldeias, como um raio seco. Os panarás começaram a morrer, com tosse, dor pulmonar e febre. “Iam caindo e morrendo”, disse o chefe Akè Panará à SUPER. “Morreu todo mundo pelo caminho.”

Depondo armas

Em fevereiro de 1973, os índios, doentes, aceitaram o contato. Um grupo se aproximou do acampamento dos Villas Bôas pela margem oposta do Peixoto de Azevedo. Cláudio entrou numa canoa, atravessou o rio, discursou em vários dialetos e ofereceu um facão. Um guerreiro adiantou-se e aceitou o que a mão branca estendia. Foi o fim da guerra. Logo mais, a Funai seria recebida nas aldeias. Antes de retornar ao Xingu, em abril de 1973, Cláudio e Orlando contaram 140 panarás, mas não sabiam quantos haviam morrido. Constataram que a maioria tinha baixa estatura. Mas havia, sim, um grupo bem alto. “Tinha uns oito de mais de 2 metros”, assegura Orlando. “Mas morreram logo depois da atração.”

A Funai mandou funcionários para a área, mas o “contato” havia fugido do controle – se é que em algum momento esteve controlado. Com a tribo dizimada pela doença, os índios começaram a se acusar de feitiçaria e a se matarem uns aos outros. Em dezembro de 1974, a estrada foi aberta e tudo piorou. Caminhoneiros, garimpeiros, turistas chegavam. Em pouco tempo, os lendários gigantes se transformaram em mendigos.

A remoção para o Xingu, então, se impôs como saída. “Vimos nos jornais a foto de uma índia mendigando”, lembra Orlando. “Ficamos desesperados. Metade já havia morrido. Nós fomos lá e organizamos a transferência. Foi um ato de salvação.”

Assim, em janeiro de 1975, um C-47 da FAB levou 79 sobreviventes trôpegos, em duas viagens, para o Parque do Xingu. Foi assustador. Eles mal entendiam o que estava acontecendo. “A gente ficou se abraçando, chorando de medo”, conta Yokrè Panará. “Eu tremia, apavorado”, diz Teseya Panará. A viagem no céu iniciou vinte anos de exílio.

...E a Casa dos Homens foi reerguida

Em dois anos, os panarás se recuperaram. Quando chegaram ao Xingu, em 1975, uma equipe da Escola Paulista de Medicina, chefiada por Roberto Baruzzi, examinou-os um a um. “Eles estavam desnutridos, anêmicos, gripados e apáticos”, disse Baruzzi à SUPER. A altura média dos homens era 1,68 metro, padrão do grupo Jê. Havia alguns de 1,80 metro, mas nenhum beirando 2 metros. É intrigante. Todos os adultos panarás com quem a SUPER conversou são enfáticos sobre a existência de parentes “muuuito altos” no passado. Eles não usam metro, mas sabem sinalizar, perfeitamente, 2 metros de altura. Teseya Panará chegou a fazer uma lista de quatorze gigantes que conheceu.

Para o geneticista Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, não se trata de um fenômeno (veja o infográfico na página ao lado). “Numa população, podem surgir indivíduos excepcionalmente altos devido a combinações genéticas específicas e influências ambientais favoráveis, como boa alimentação”, explica. “A expressão individual, o fenótipo, varia muito do conjunto gênico, o genótipo. É pena que a Genética não possa estudar esses casos. Mas não há documentação”, lamenta Salzano. As fotos dos gigantes (publicadas nesta reportagem), o testemunho de Orlando Villas Bôas e dos panarás é o que resta.

Mas intrigante, mesmo, era o Xingu para os panarás: outro mundo. O rio era muito mais largo do que os riachos da bacia do Peixoto de Azevedo. Pescar, só de canoa, mas eles nunca tinham visto uma. Quase não havia caça e o solo era pobre. Por isso, mudaram muito de aldeia. Chegaram a aceitar o convite dos ex-inimigos txucarramães, cujo chefe, Raoni, estava só de olho nas mulheres. Seis meses depois, quando desistiram de ser inquilinos da aldeia de Raoni, deixaram sete moças. Com a auto-estima a zero, abandonaram costumes e rituais. Mais gente morreu. Em julho de 1976, eram só 64. Passavam horas parados, prostrados.

Readaptação

As coisas só mudaram quando ganharam uma aldeia separada, com assistência médica regular. “Aí a saúde melhorou”, conta Schwartzman. “Eles fizeram roças e ressurgiram lideranças, ritos, danças e canções. Os homens aprenderam a pescar com linha e a fazer canoas.”

No final de 1976, os bebês recomeçaram a nascer. Em 1980, já eram 84. Em 1989, a tribo fixou-se, afinal, na aldeia do Rio Arraias. Em 1992, eram 135. Schwartzman continua: “Quando fui pesquisá-los, em 1980, diziam que a aldeia tradicional tinha uma Casa dos Homens, no centro da praça. E que quando tivessem mais meninos a reconstruiriam. Em 1991, voltei ao Xingu e lá estava ela, de pé”.

Um lugar onde não se faz o que não se quer

Retomar o Rio Peixoto de Azevedo passou a ser uma idéia fixa desde que os panarás voltaram a sonhar. No Peixoto eles tinham castanha-do-pará, açaí, cacau, cupuaçu, buriti, batata, cará, banana, milho, mandioca, abóbora e algodão. Havia muito peixe e caça, queixada, macaco, jabuti, jacu e mutum. E mel.

É claro que evoluíram no Parque. Trocaram o machado de pedra pelo de aço, aprenderam a fazer canoa, a atirar de espingarda, a pescar com anzol e linha. Habituaram-se à faca, à pilha e à gasolina. Vestiram roupas de branco e começaram a falar português. Açúcar, antibióticos e outras novidades deixaram muitos banguelas.

Mas jamais perderam a identidade. E mantiveram o bom humor. Banguelas ou não, riem muito. Os homens adoram piadas, sobretudo as sexuais. Coçam “as partes” abertamente, adoram palavrões e divertem-se soltando puns. Não existe privacidade. Todos sabem tudo de todos.

A higiene pode chocar não-índios. Os panarás eram nômades. Eles cospem e jogam tudo no chão. As crianças rolam, nuas, “à milanesa”, na terra. E os bebês brincam com ratinhos. Em compensação, assim como não têm horário pra comer, banham-se a toda hora, no rio. Para eles, os brancos é que têm pouco asseio: a prova é que têm banheiro dentro de casa e usam a mesma privada. Para um panará, há poucas idéias piores do que um banheiro público. Além disso, os brancos vão a churrascarias e comem carne sangrando – como bichos.

Tolerância

A economia da tribo não gera excedente. Eles não produzem a mais, para trocar ou vender. “E ninguém faz o que não quer”, diz Schwartzman. “O poder é consensual. O chefe atende a demandas. Não há coerção. Mas há limites: quando alguém é considerado anti-social e feitiçeiro, é morto.”

As casas pertencem às mulheres, que vivem com o marido, a mãe, os filhos pequenos, as filhas e os maridos das filhas. Os filhos, quando se casam, vão morar na maloca da esposa. Se o casamento monogâmico acaba (e acaba com freqüência), o homem é que sai. É comum casarem-se cinco vezes. E há adultérios, sim, apesar de temidos pelo escândalo e pela violência que podem produzir.

“Se você buscar o que para nós parece religião, não acha”, diz Schwartzman. Eles acreditam que a aldeia dos mortos fica sob a terra e que eles, de vez em quando, “puxam” os vivos. Mas também há mortos no céu. As estrelas são panarás que se foram: as pequenas, os homens; as grandes, as mulheres. Para eles, um dia, uma panará pariu uma sucuri, que foi esquartejada pelo marido. Dos pedacinhos nasceram os brancos. É por isso que há tantos brancos no mundo.

O êxodo pelo avesso

“É kranqüilo!”, diz Kreton, confundindo os “k” da língua panará: “Aqui em Nacypotire vai ser kranqüilo”. Kreton, Kokè e Akè foram os primeiros a constatar, de avião, em 1991, que havia um pedaço intacto nas antigas terras, nas cabeceiras do Rio Iriri. Eram uns 500 000 hectares, a quinta parte dos 2,5 milhões que tinham antigamente. O restante fora ocupado por 23 cidades. O Peixoto de Azevedo, coitado, virou um lamaçal.

Primeiro, os panarás pediram ajuda à Funai e foram a Matupá de ônibus. Lá, alugaram um avião e sobrevoaram o rio. Foi um choque. Estava quase tudo arrasado. Foram a Brasília, conversar com o governo. Com a ajuda de organizações de apoio aos índios, como o Instituto Socioambiental, a Fundação Mata Virgem e o Fundo de Defesa do Ambiente, contrataram advogados.

Em 1994, deram um passo gigantesco: doze guerreiros voltaram ao Iriri e construíram a primeira maloca da aldeia de Nacypotire. Em dezembro, a Funai reconheceu a Área Indígena Panará. E, no último dia 1º de novembro, o Ministério da Justiça decretou a posse permanente dos panarás sobre 495 000 hectares de terra.

Hoje, as famílias estão voltando. Nacypotire já tem dez casas. A SUPER contou 75 panarás no Rio Iriri e 99 no Rio Arraias, no Xingu, esperando para se mudar. Mas a aldeia nova precisa de uma boa roça, para sustentar todos, o que só poderá ser testado na próxima estação seca, em maio de 1997. Ninguém quer ficar no Xingu. Orlando Villas Bôas, que os levou para lá, sabe por quê: “A cabeceira do Iriri é a terra deles. É um pedaço longínqüo que pode ser preservado. Vale a pena voltar”.

Uma língua falada por 177 pessoas

O panará tem afinidade com línguas kayapós, mas um panará e um kayapó não se entendem, assim como não se entendem um português e um italiano, embora pertençam à mesma família lingüística (românica).

Joseph Grinberg, da Universidade de Stanford, na Califórnia, diz que todas as línguas nativas americanas provêm de três raízes: o esquimó (norte do Canadá), o nadené (noroeste da América) e o ameríndio (Américas Central e do Sul). “A tese é aceita, mas não foi demonstrada”, diz Aryon Dall’Ígna Rodrigues, da Universidade de Brasília. “Talvez nem seja demonstrável.”

Mais de 90% das línguas indígenas brasileiras nunca foram descritas. Admite-se que o ameríndio gerou uma árvore com dois grandes troncos: o tupi e o macro-jê, que se dividiram em famílias de línguas. Mas também há famílias independentes desses troncos, como o tukano, o nambikwara, o aruák e o yanomami. E ainda há línguas isoladas, como o trumái, o tikúna e o irantxê. Uma Babel, enfim.

No descobrimento, eram 1 200 línguas. Hoje, restam 177. O tronco tupi, com as famílias tupi-guarani (29 línguas) e karib (21 línguas) é o mais importante. No tronco macro-jê destacam-se as famílias maxakalí, karajá, botocudo, bororo e jê. Dessa última, saem oito línguas e grupos de línguas: kaingáng, apinayé, akwén, timbira, xakleng, suyá, kayapó e panará – um idioma falado por 174 índios e três antropólogos, um americano e dois ingleses. Só agora uma lingüista brasileira, Luciana Dourado, da Universidade de Brasília, começou a estudá-lo.

PARA SABER MAIS:

The Panará of the Xingu National Park, Stephan Schwartzman, Tese de Doutorado de Antropologia, Universidade de Chicago, 1987.

A Marcha para o Oeste, Orlando e Claudio Villas Bôas, Globo, São Paulo, 1994.

Línguas Brasileiras, Aryon Dall’Igna Rodrigues, Loyola, São Paulo, 1994.

O Brasil Grande e os Índios Gigantes, Aurélio Michiles, vídeo, em cores, 47 minutos, Instituto Socioambiental, 1995, São Paulo.

The Tribe that Hides from Man, Adrian Cowell, video, em cores, 78 minutos, BBC TV, Londres, 1973.

Assim era o outro mundo
De 1975 a 1989, os panarás mudaram-se sete vezes no Parque do Xingu. Na aldeia do Rio Arraias reconstruíram sua identidade.

O alimento básico
Para fazer beiju, uma panqueca de massa de mandioca, as índias panarás trabalham horas.

A mandioca ralada é depositada em panelas

A massa é lavada e diluída com água

A esteira espreme e purifica a massa

Depois de seco, o beiju é torrado num tacho

Extravagância genética
A altura média dos homens das tribos jês é maior do que a dos tupis. A dos panarás mais altos, contatados em 1973, é inteiramente fora dos padrões.

A decisão de voltar
Em 1994, os panarás voltaram ao Rio Iriri e construíram a aldeia de Nacypotire. A Funai reconheceu os direitos deles sobre o território.

A trilha das lágrimas
Entre 1830 e 1839, o governo americano deportou 35 000 índios de cinco tribos para um Território Indígena a oeste do Mississipi. Eles não tiveram a mesma sorte dos panarás. Morreram 10 000 na marcha forçada. Em 1830, os Estados Unidos criaram um Território Indígena, a oeste do Rio Mississipi, para 27 tribos. Cinco delas – os choctaw, os creeks, os chicksaws, os seminoles e os cherokees – resistiram. Não queriam se mudar.

Foi um dos capítulos mais vergonhosos do choque da civilização ocidental com os índios. Em 1831, líderes da tribo choctaw, subornados, entregaram suas terras. Mil índios caminharam 980 quilômetros escoltados por soldados. Metade morreu. Em 1836, 15 000 creeks foram deportados; 3 500 morreram.

Os chicksaws andaram 400 quilômetros e foram mais poupados. Os seminoles, da Flórida, lutaram de 1835 a 1842. Três mil foram removidos, mas a tribo habita, até hoje, os pântanos de Everglades, na Flórida.

A transferência dos cherokees ficou conhecida como A Trilha das Lágrimas. A Suprema Corte reconheceu seus direitos, mas o governador da Georgia não quis conversa: em 1838, atacou e deportou 20 000. Foram 1 300 quilômetros a pé sob inverno gelado. Morreram 4 000. Hollywood ainda não contou essa história.

A Árvore de Babel
No Brasil, há 280 000 índios de 206 etnias, com 177 línguas. As mais faladas são dos troncos tupi e macro-jê. Todas descendem de uma só raiz, o ameríndio. Veja as principais famílias lingüísticas e a posição da língua panará.

Há 20 anos ... e hoje
Em 1975, quando chegaram ao Xingu, os panarás foram fotografados para o arquivo da Escola Paulista de Medicina. Vinte anos depois, conversaram com a SUPER.



Krampè exibe a filha Kôte, nascida em 14 de agosto de 1996, a mais nova panará e a primeira a nascer na aldeia de Nacypotire. Krampè tem esperança de que, no Iriri, seu povo volte a ser forte e poderoso, como antigamente. “A gente aprendeu muito sobre os brancos. Tem branco bom e branco ruim, como os suyás e os kaypós. O problema é que são muuuuitos.”

O pequeno gigante
Akè Panará, 55 anos, é um estadista. Um Winston Churchill panará. Quando seu povo perambulava pelo Xingu, dizimado e humilhado, Akè ajudou-o a reencontrar o orgulho. Foi uma bela volta por cima: afinal, nenhuma das dezesseis tribos do Parque teve peito para lutar pelo território original e voltar. Só os panarás. Akè só tem 1,68 metro de altura, mas enxerga alto. Virou chefe em 1982 porque era inteligente, capaz de fazer bons discursos rituais e hábil para lidar com os brancos. Além disso –- e de mais seis filhos, sete netos e três casamentos –, é um grande gozador. Em Brasília, assistiu, na casa de Schwartzman, ao filme Dança com Lobos, de Kevin Costner. “Gostei, mesmo, foi daqueles índios de cabelo punk” (os pawnees), diz. “Nossa, que índio brabo! Os índios americanos são muito brabos.” Akè ficou muito brabo em 1991, quando reviu o Peixoto de Azevedo destruído pelo garimpo: “Os brancos comeram minha terra. Queimaram a mata e estragaram a água. Me deu uma raiva muito grande. Bando de ladrões”.

O amigo do Ronald Reagan
Sôkriti Panará tem 53 anos. Uma vez foi a Brasília levar a mulher e a filhinha, com pneumonia grave, para o Hospital de Base. Ficou semanas no hospital lotado, sob luz artificial, sem falar português, sem arredar do lado da menina. Um dia, recebeu a visita de um antropólogo. Foi uma grande alegria ver uma cara conhecida. Conversaram um pouco e o antropólogo saiu, a seu pedido, para comprar bananas. Mas Sôkriti também queria sair. Tinha vontade de perambular, como os guerreiros fazem, pelo mato. Saiu, viu muita gente na rua, andou, andou. Viu um avião passando e resolveu ver de perto. Andou muito. De noite, dormiu num ponto de ônibus.

No outro dia, andou mais, saiu da cidade, achou uma mangabeira, um pé de pequi, água e alimentou-se. O antropólogo já estava em pânico mas, enquanto isso, Sôkriti andava até chegar ao aeroporto. Ficou olhando os aviões, imensos. Pulou uma cerca, chegou mais perto e foi preso pelos soldados que faziam a segurança da visita a Brasília do presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, naquele dia, 30 de novembro de 1982. Levaram-no para o quartel. Devem ter gostado muito dele, porque lhe deram um tênis Kichute, um calção e uma carona de volta.

Os homens dão medo
Krikati teve seis filhos. Quatro morreram. O mais velho tombou nas mãos dos kayapós em 1967, na última batalha entre as duas tribos. Seus três maridos também morreram. “Eu gostava mais do primeiro, Periyi, que os txucarramãe também mataram. Ele era bonito e muuuuito alto.” Em 1975, quando chegou ao Xingu, veio com o filho Possuã. Em 1996, a SUPER encontrou-a com uma das seis netas.

Krikati viu cidade só uma vez, São Felix do Araguaia, e não gostou nada. “Tem muito carro e muita gente. Gente demais.” Antes, só havia feito uma viagem, para o Xingu, quando seu povo foi transferido. “Eu vim no segundo avião. Nós entramos e ficamos nos segurando, firmes. Tapei a cara com a mão e fiquei com medo de olhar para baixo. A gente chorava de medo. Quando chegamos, não entendi nada. Os txucarramães e o chefe deles, o Raoni, nossos inimigos, estavam lá, nos esperando. Muito estranho.”

O mundo é confuso. Não há dúvida. Mas, para Krikati, as mulheres são sábias. “Branco, panará, é tudo igual: os homens dão medo. As mulheres é que são normais. Elas pensam mais.”

Coquetel de gasolina
Kreton Panará, de 43 anos, é um caso à parte. É o adulto que melhor fala português. Sempre foi curioso e arrojado. Em 1978, resolveu virar pajé para curar doenças. Decidido, bebeu um coquetel de gasolina e mertiolate – para descobrir o segredo do poder dos brancos. Acabou no posto Diauarum com uma intoxicação violenta.

No Xingu, os pajés fumam fumo de corda, engolem fumaça e entram em transe. Viajam para baixo da terra, onde está a aldeia dos mortos, e descobrem o “feitiço” responsável pela doença – que pode ser uma escama de peixe, um dente de macaco ou uma pedra. Aí, “extraem” o feitiço do doente e, pronto, a doença está curada. Kreton virou pajé famoso e chegou a ganhar bem fazendo curas em outras tribos.

Mas, para boa parte do seu povo, ele é um sujeito ardiloso, ambicioso e trambiqueiro, com apetite demais pelos bens dos brancos. E que sempre criou confusão. A maior foi em 1983, quando passou um período bígamo, casado com Sekiukiú e Kôterti. O costume, abandonado pelos panarás no passado, só é tolerável quando as mulheres forem irmãs – pois aí, acredita-se, elas não brigam. Só que elas não eram. Foi um escândalo, mas durou pouco: as moças o dispensaram.

Quatro maridos desinteressantes
Yokré, de 45 anos, teve quatro maridos, sete filhos e três netos. Três filhos morreram. “O primeiro marido foi Soakien, mas eu não gostava. Ele morreu no Peixoto, de doença no peito, antes do Cláudio (Villas Bôas) chegar”. Depois, casou-se com Sikiapayu, mas “separei logo, porque não dava certo”. Aí, veio Pêinsi, que “era mau marido, caçava pouco”. O quarto, Seakèri, cometeu um erro grave: bateu nela. Yokré atacou-o com bordunadas na cabeça, conta-se, numa cena dantesca. Por isso ganhou o apelido de porisa, “polícia”. Não deu sorte com os homens.

Hoje, espera, pacificamente, na aldeia do Xingu, a mudança para Nacypotire. “Meu filho e meu irmão já estão lá. Aqui tem formiga brava e a terra é cheia de raízes. Na roça, arranham a mão da gente. Lá é melhor.” Sobre os brancos, Yokré é taxativa sobre o que aprendeu: “Todo cuidado é pouco”.

Revista Superinteressante

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