quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Entre o sonho e vigília: o tema da amizade na escrita modernista*


Mônica Pimenta Velloso

Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e Pesquisadora do CNPq. E-mail: mpvelloso@uol.com.br

RESUMO

Ligada à ordem privada das emoções, a escrita epistolar é espaço estratégico para formulação do pensamento modernista. Entender como os intelectuais constroem laços entre o sujeito amoroso e o intelectivo, entre o sonho e a vigília, razão e sensibilidade são algumas das questões aqui analisadas, na articulação com o fenômeno social da amizade. Trabalha-se, dentre outras, com as cartas de Mário de Andrade.

Palavras-chave: Modernismo Brasileiro – Intelectuais e Sociabilidade – Amizade


Paixão de pensar, paixão de viver

Vou analisar o tema do modernismo brasileiro, escolhendo um foco delicado: as cartas de amizade. A história da intimidade e da vida privada, campo, por excelência, da sensibilidade social, possibilita esse recorte. Na "escrita de si" e na trama das afinidades eletivas, podemos encontrar desdobramentos ainda não discutidos pela historiografia modernista. Mário de Andrade, liderança inconteste no modernismo brasileiro, será contracenado aqui com Prudente de Moraes Netto, personagem praticamente desconhecido dos historiadores, na discussão do modernismo. Desse diálogo, surgem novas indagações e, também, inquietações. Comecemos escutando a voz de Mário; trata-se de um conselho sobre a amizade:

Ame os companheiros de vida mas nunca deixe de por dentro estar observando eles. Faça de todos o seu aprendizado contínuo, não pra espetáculo e pra obter prazeres infamemente pessoais porém pra recriá-los para aproveitá-los em sublimações artísticas, verso ou prosa a vida de você e seu destino.1

Nessas linhas, Mário enfatizava o alcance coletivo da amizade, voltada para o exercício da sociabilidade. Se a compreendia como espaço de expressão de sentimentos, conformando afetos e identidades, alertava para uma abertura que ela possibilitava: sensibilidade para a reflexão artística. Entendia que o afeto pelos companheiros de vida deveria extrapolar o nível restrito das relações pessoais, induzindo ao processo reflexivo.

Mário associava a "paixão de pensar" à "paixão de viver",2 unindo-as pela amizade literária. Eram formas de atuar inspiradas em uma "mentalidade alargada", conforme sugere Hannah Arendt. Possibilitava "treinar a imaginação para visitar os outros, o que significa mover-se em um espaço que era potencialmente público".3

Através das cartas, Mário desenvolve a sua vocação socrática,4 abrindo-se ao diálogo com os seus pares.5 Elas constituem testemunhas vivas dessa atitude, unindo subjetividades e procurando mobilizar energias em torno de um projeto comum. O gesto epistolar é simultaneamente livre e codificado, íntimo e público, secreto e voltado para a sociabilidade. Para o historiador, a questão que se coloca é saber como se dá o problemático equilíbrio entre o eu íntimo e os outros.6

Proponho analisar: como essa escrita que expressa a busca de si, do universo recôndito e privado das emoções e do autoconhecimento desdobra-se em espaço de formulação de indagações coletivas; como a correspondência entre intelectuais modernistas revela alianças e clivagens do campo intelectual; como constroem esses laços entre sujeito amoroso e intelectivo, entre o sonho e a vigília; em que ponto dialogam razão e sensibilidade?

Vou me deter no contexto de 1925-1927, momento esse de reorientação do movimento modernista brasileiro, abrindo-se ao diálogo com a ordem mundial. Numa primeira etapa (1922-24), a prioridade fora a atualização cultural: "acertar o relógio império da literatura nacional", como propunha Oswald de Andrade. A questão muda de foco quando se percebe que o Brasil tem ritmo e temporalidade próprios, sendo necessário inventariar o conjunto das nossas tradições para criar o Estado-nação. A partir daí, a categoria da mediação torna-se indispensável para o ingresso do país na modernidade.7

Mário de Andrade destaca-se não só pela capacidade de elaboração dos temas mediadores (pesquisa da linguagem e da música)8 mas pelo fato de conseguir criar laços intelectuais e afetivos através de uma extensa rede epistolar. É através dessa rede que circulam idéias e se reativam afinidades que dão impulso original ao movimento modernista brasileiro. Cartas são instrumentos de composição de redes, desencadeando trocas, adesões e sociabilidades. Historicamente, sabemos da importância da escrita epistolar, fomentando movimentos intelectuais que mudaram formas de pensamento, de ação e de sensibilidade. Arquivos privados, correspondências e diários íntimos apresentam material riquíssimo de análise, para a pesquisa histórica, ajudando a compor o quadro das sensibilidades e subjetividades de uma época.9

Na modernidade, amizade e sociabilidade passam a compor um par indissociável. A amizade estabelece rede de influências, inventa lugares de convivência, laços de resistência, conseguindo ampliar oportunidades de encontros e de interações sociais, conforme nos lembra Vincent-Buffault.10

Nosso foco será analisar a amizade como fenômeno social que adquire configurações distintas conforme o contexto histórico. Elaborando cuidadosa genealogia histórico-filosófica sobre a amizade, Ortega11 observa maneiras distintas de integrar o componente emocional nas inter-relações. Na França, o conceito de amitié assume, desde o século XVII, caráter emocional, próximo à passion. Na Alemanha, a amizade é concebida como busca de equilíbrio entre razão e sensibilidade, com um componente moral subjacente (o pensamento ético social funcionaria como regulador). A idéia da amizade como virtude retira da relação todo o elemento ameaçador da ordem da emoção. Na Alemanha, a amizade adquire centralidade na vida social, pela ausência de grupos sociais que criassem valores para o conjunto da sociedade. A amizade assumiria papel de organizar as relações sociais.12

O contexto social brasileiro, da década de 1920, tem certas similaridades com o da Alemanha, no século XVIII:13 condição de país de desenvolvimento periférico, fosso entre o Estado e sociedade, ausência de cultura nacional e, sobretudo, o forte senso de missão social dos intelectuais.

É dentro desse quadro que proponho acompanhar a construção das idéias de Mário de Andrade sobre a amizade, tendo em vista um possível diálogo com a vertente filosófica alemã. É sensível, na construção de sua obra, a forte empatia e atenção dispensada à cultura alemã. Mário lia fluentemente a língua, estando atualizado com a sua literatura artística e filosófica. Considerava importante a inspiração dessas obras na tarefa da organização estética da nacionalidade brasileira.

Para entender a amizade na sua historicidade, é fundamental nos reportarmos à inteligibilidade do público e do privado. A reorganização da esfera pública literária, no Brasil, da década de 1920, impacta a situação dos homens de letras, levando-os a repensar seu lugar e identidade na sociedade, valendo-se, freqüentemente, das categorias da "razão" e da "sensibilidade".

A correspondência de Mário de Andrade, particularmente com Prudente de Moraes Netto e Sérgio Buarque de Holanda, mas também com Manuel Bandeira e Carlos Drumond de Andrade, discute questões-chave do pensamento modernista à luz da amizade.

Nessas cartas, encontrei uma espécie de crônica do movimento literário, em que as idéias e percepções fluem pelo "exercício hermenêutico da conversa".14 O estudo dessa fala relacional (só existe em função de uma escuta), coloquial, voltada para a experimentação, e, em particular, da amizade é ainda lacunar no âmbito das ciências sociais e da história.15

Na área da literatura, destaca-se a reflexão de Silviano Santiago16 que, ampliando a leitura dos modernistas sobre o Brasil, além do âmbito das obras literárias canônicas, enfatiza a tarefa interpretativa diária. As cartas constroem essa narrativa que põe em evidência a dimensão social da emoção, fundamental para se abrir novas vias reflexivas sobre o movimento modernista brasileiro.

Considero importante o registro epistolar, na medida em que possibilita revelar outros planos da memória histórica, deixando ver a descontinuidade, a multiplicidade, a simultaneidade e a própria força do instante sobre a duração. Ao enfatizar o caráter manipulador e utilitário da memória, a reflexão historiográfica vem deixando de lado, freqüentemente, os seus vínculos com a emoção e a espontaneidade, que possibilitam acolher e integrar outras percepções sobre a temporalidade histórica.17

É dessa memória, transmitida pela escrita epistolar modernista, que vamos nos ocupar.

Algumas indagações formuladas e discutidas intensamente por Mário de Andrade serão observadas aqui: Por que, para que e para quem se escreve? Prioriza-se a capacidade inventiva ou o senso organizativo do indivíduo? A escrita visa ao deleite ou ao compromisso coletivo? Na discussão sobre a natureza da escrita modernista, se esboçam idéias sobre a forma de pensar a amizade.



Escrita e amizade: impacto das sensações ou trabalho da inteligência?

Nas cartas para Prudente de Moraes Netto, Mário confidencia sensações difíceis durante o processo criativo. São intimidades que só se dizem em tom de conversa. Reclama da fadiga intelectual; o cansaço físico que não acompanha a efervescência das idéias:

A mão é que se recusa a escrever. O corpo não quer sentar na cadeira diante da escrivaninha. Os olhos não querem ver a folha de papel. O pensamento, esse anda numa mapiagem desembestada tagarelando que nem fábrica ao meio dia. É engraçado mas justamente quando maior é a fadiga maior parece que é o trabalho da inteligência.18

A escrita é trabalho da inteligência, missão árdua da qual Mário se acha incumbido. É a partir desse papel que traça um esboço do campo intelectual, emitindo opiniões sobre as naturezas diversas da escrita modernista.

Em carta a Prudente, em 3/10/1925, observa que alguns intelectuais são intimistas, inspirando-se mais nas sensações. Menciona poesias de Manuel Bandeira, Ribeiro Couto e alguns textos de sua autoria. Em Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida, percebe outra escrita, refletindo naturezas construídas e complexas, propiciando um "equilíbrio entre as faculdades líricas e construtivas".19

O que está em questão é o papel da moderna escrita brasileira. Mário defendia o caráter intencional e reflexivo da obra-de-arte, discordando de Prudente. Esse, com Sérgio Buarque de Holanda, defendia a necessidade de expandir o experimento no campo artístico, priorizando o impacto das sensações. Enfatizava a pesquisa de nova linguagem que integrasse livremente ao texto palavras, imagens e sensações tendo como móvel inspirador a própria força das sensações.20

Mário, sem desqualificar as sensações, conferia centralidade ao processo intelectivo, buscando daí extrair a síntese construtiva. Por isso, interpelava o amigo:

Convido você a meditar muito nisso. Tem sido uma das preocupações grandes de minha vida. A "intenção do poema" constrói muito o poema fechado, o poema circunferência, o poema que tem começo, meio e fim. É mais arte que esse sensacionismo verdadeiramente primitivístico como essência em que toda a gente modernista caiu mais ou menos. Principalmente os cuja criação vai de dentro pra fora, intimistas, os que se preocupam mais com as sensações do que com as causas da sensação.21

Para defender a necessidade de uma arte crítica, reflexiva e intencional, Mário enfatizava a juventude de Prudente, fazendo-o ver que seu papel no campo intelectual era outro, marcado pela responsabilidade social. Apresentava-se como intelectual que entendia a arte como educação, defendendo uma "arte ação".

Era enfático: "não faço arte, ensino". Mas criticava a arte transmitida em tom professoral, como experiência encerrada em si mesma; já no "Prefácio interessantíssimo": "Em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade de poucos".

Assumindo o papel de comentador da obra-de-arte, Mário destacava o processo de criação e os pressupostos teóricos e críticos da produção artística, identificando-se com as idéias do construtivismo.22

Mais tarde, em carta a Prudente, em 12/10/1929, apresentava uma radiografia íntima da sua obra: messiânica (Prefácio, Paulicea e Escrava) e de evasão (Macunaíma). Orgulhava-se da primeira, fruto da arte-ação, do pragmatismo e da intencionalidade. Confessava que a obra de evasão é a que lhe dava prazer artístico, a que mais gostava. No entanto, considerava que esse gosto não tinha o mínimo valor crítico.23

Essa cisão entre sensações e inteligência crítica, entre o transitório e a "possibilidade de ficar" marca, fortemente, o pensamento de Mário: não só em relação à sua concepção da obra-de-arte como da amizade.

Nacionalismo como "ato de amor"

Nas cartas de Mário trava-se árduo diálogo entre o impulso dos sentimentos e o movimento da razão ordenadora; a percepção da amizade entra aí elegendo, forjando e organizando as linhas do debate. A idéia de que entre amigos "tudo deve ser dito" funciona como desafio e mote inspirador.

Expondo a Prudente sua percepção do nacionalismo, Mário deixa claro o seu forte envolvimento afetivo. Compreende o nacionalismo e o projeto de realização de uma "língua brasileira" (distinta do português de Portugal) como uma "manifestação de amor". Não hesita em expressá-lo na primeira pessoa:

(...) este meu nacionalismo não pensem que é chauvinismo e muito menos regionalismo. É amor humano e único meio de nós brasileiros nos universalizarmos. Porque a maneira como um povo se universaliza é quando concorre com o seu contingente particular e inconfundível.24

Matéria completa no endereço
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042009000100011&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Revista Tempo

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