terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

ARENAS ANTIGAS E ESTÁDIOS MODERNOS


ARENAS ANTIGAS E ESTÁDIOS MODERNOS
Profa. Dra. Renata Senna Garraffoni1
Universidade Federal do Paraná
Curitiba, Brasil
resenna93@hotmail.com

Gladiadores romanos e imaginário moderno
Luis Carlos Ribeiro organizou, em 2003, um dossiê na revista História: Questões e Debates intitulado Esporte e Sociedade3. Ao apresentá-lo chamou atenção para um aspecto conhecido daqueles que se dedicam à temática, mas pouco difundido entre os pesquisadores que trabalham outros aspectos da sociedade moderna: a dificuldade de se tornar o esporte em um objeto de estudo das Ciências Humanas.
Durante as primeiras décadas do século XX, a influência marxista e seu papel ao definir os objetos de estudos da História e Ciências Sociais, consagrou ao esporte o espaço do lazer, ressaltando seu caráter lúdico e de massa, reservando importância aos estudos sobre o trabalho e não a diversão. Assim, estigmatizado como fator de alienação, o esporte foi entendido como favorável às classes dominantes, impedindo a revolução tão almejada.
Somente com as críticas a algumas proposições marxistas nos anos de 1960 foi possível reverter esse quadro. A busca por novos temas, segundo Ribeiro, e a renovação crítica encabeçada pela nova historiografia marxista inglesa, abriu a possibilidade de se pensar a sociedade de forma mais ampla, para além dos muros das fábricas4. Atrelado a essa renovação da problemática marxista outro fator foi decisivo no desenvolvimento do campo, os estudos de Norbert Elias e Pierre Bourdieu. Ao trazerem o esporte para o centro das atenções dos sociólogos, cada um a seu modo ajudou a construir ferramentas conceituais fundamentais para tornar o esporte um fenômeno social, passível de ser analisado e discutido nas Ciências Sociais. Melo e Speciale ressaltam que os estudos de Bourdieu dos finais dos anos de 1970 e início da década de 1980, por exemplo, embora poucos, foram imprescindíveis sedimentar a noção de esporte como objeto de reflexão que contribui para um maior conhecimento da modernidade, abrindo espaço para estudiosos explorarem um viés até então pouco considerado5.
Se no princípio o esporte era entendido como mercadoria e meio de alienação, os desdobramentos críticos ao longo do século XX e início do XXI vieram alterar profundamente esse quadro. A partir de um diálogo interdisciplinar, sociólogos, antropólogos, historiadores, profissionais da área de saúde e educação física expandiram as formas de se interpretar o esporte na modernidade. Assim, mais que um produto capitalista destinado a ludibriar as massas, o esporte passou a ser entendido como constituinte e construtor da sociedade, podendo ser interpretado a partir de uma multiplicidade de ângulos. Aos poucos foram se desenvolvendo estudos acerca da relação entre esporte e arte6, da sua importância política, de suas facetas nacionalistas, desde sua presença entre os ideais estéticos do nazismo até as implicações políticas das competições em época da Guerra Fria, da relação do homem com a natureza a partir do desenvolvimento de esportes de aventura, da sua importância disciplinar na educação militar, da violência dentro e fora dos estádios, das relações em que os sujeitos estabelecem com seus corpos, alimentação e ideal de beleza, das implicações da mídia e da espetacularização do esporte, enfim, de como o esporte produz emoções e emolduram visões de mundo, mediando relações do sujeito com o mundo ao seu redor.
Entre os diversos caminhos que se ramificaram após os primeiros estudos de Bourdieu e Elias, gostaria de destacar um aspecto em particular que sempre chamou muito minha atenção: a retomada dos valores clássicos e sua inserção no mundo do esporte moderno. Ao pensar essa relação, talvez o exemplo que venha a mente, de imediato, sejam os Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, profundamente marcado por sua instrumentalização em prol do regime nazista7. No entanto, não só em períodos totalitários que a relação entre mundo antigo e moderno aparece no universo do esporte.
Grandes eventos esportivos, como os Jogos Olímpicos ou a Copa do Mundo, constantemente evocam os antigos heróis e atletas formando uma ponte entre presente e passado por meio das aberturas espetaculares dos eventos transmitidas ao vivo e, também, por uma série de programas e reportagens para familiarizar o público brasileiro à Antigüidade Greco-romana.
Assim, é muito comum em época de Copa do Mundo a insistência na produção de reportagens na mídia impressa ou televisiva que retomam, acriticamente, a idéia de que os romanos viviam a política do Pão e Circo ou durante os Jogos Olímpicos a evocação de antigos deuses gregos e heróis que marcaram os textos literários de outrora.
O interessante desse processo é que, em geral, tais reportagens são muito concisas e imediatas, construindo um discurso mais próximo dos ideais capitalistas modernos, de superação de limites, esforço, competitividade e beleza dos corpos do que das recentes pesquisas históricas que, muitas vezes, possuem uma visão contrária ao que a mídia noticia.
Embora não seja minha intenção aqui aprofundar essa discussão, gostaria de destacar algo que me parece muito instigante dentro desse processo: a comparação entre atletas e os gladiadores romanos. Considero essa comparação bastante intrigante, pois as lutas de gladiadores possuem uma série de particularidades que muito se distanciam do esporte moderno. Em seus primórdios os combates estavam inseridos em um contexto religioso, realizados com a função de manter viva a memória de pessoas importantes falecidas. Com o passar do tempo, essa atividade foi se transformando e adquirindo um viés público, mas nunca anulou definitivamente sua faceta religiosa e sua relação com um passado a ser lembrado8. Talvez o aspecto que mais indique essa permanência é a própria terminologia empregada, pois os combates de gladiadores nunca deixaram de serem chamados de munera, ou seja, o termo empregado durante séculos para se referir a essa forma de combate está relacionado ao caráter funerário do evento9.
Essa particularidade religiosa ou a relação com a morte, o sangue ou a infamia de seus combatentes, algo tão distante do que ocorre nos estádios modernos, no entanto não impediu, por exemplo, que a mídia internacional, por ocasião da Copa do Mundo de 2002, comparasse estes antigos guerreiros ao então goleiro da seleção alemã, Kahn.
Como na época eu vivia na Alemanha realizando parte de minha pesquisa de doutorado, pude acompanhar como em diferentes mídias se comentava a força e a destreza deste atleta, esperança da Alemanha reunificada de ganhar seu primeiro título mundial. Da mesma forma que Kahn era construído na mídia européia como um guerreiro impassível diante de qualquer ameaça, como um grande defensor do gol alemão e chamado de Der Gladiator, os torcedores eram comparados aos romanos comuns que freqüentavam as arenas ou corridas de bigas.
Embora essa tenha sido a primeira vez que vi uma relação tão explícita entre gladiadores antigos e atletas modernos, aos poucos percebi que tais comparações não se restringem ao futebol, mas diz respeito a toda uma gama de esportes que inclui até o surf10. Em 2004, por exemplo, tive a oportunidade de ler uma entrevista do surfista brasileiro Neco Padaratz concedida a Carlos Sarli, na ocasião em que o surfista voltara a conquistar prêmios internacionais11. A reportagem, muito bem cuidada visualmente com fotos de Padaratz em diferentes momentos de sua carreira, me chamou a atenção, pois se intitulava “Gladiador”. Logo abaixo do título em letras grande seguia a seguinte chamada:
Neco Padaratz já foi considerado a maior promessa do surf brasileiro, inclusive pela mídia especializada estrangeira. Foi treinado para ser campeão desde a infância, mas problemas físicos o tiraram do rumo. Quase morreu numa onda errada no Taiti, teve de vencer o medo e a depressão – e lutar contra a fama de encrenqueiro e baladeiro. Aos 27 anos, mostrou o guerreiro
que é ao conquistar, em 2003, o título WQS, a divisão de acesso do surf mundial. Este ano, ele voltou a Teahuppo e superou o trauma que quase o tirou do esporte.
Esse pequeno trecho, cuidadosamente escrito pelo autor da entrevista, nos indica o tom da reportagem e o perfil do entrevistado: um jovem treinado para vencer, um bravo lutador que além de superar os problemas físicos, voltou ao Taiti para enfrentar, mais uma vez, a onda que quase o matou. O interessante desse discurso é que ele nunca compara explicitamente o contexto dos combates de gladiador ao surf, mas deixa como livre associação do leitor. Ao acompanharmos a entrevista, é possível perceber que o cerne da questão está nos comentários que Padaratz faz de sua vida pessoal e sua carreira, além de algumas reflexões sobre acidente que ocorreu no Taiti. É por meio destas reflexões, e nas entrelinhas de sua fala, que o leitor pode estabelecer a ponte entre o surfista e o gladiador: treinamento físico e psicológico para o fortalecimento do corpo e alma para o desafio de vencer a morte. Assim, o que está em jogo não são somente algumas das características dos combates de gladiador como desafiar a morte, que só aparece no título, mas sim valores modernos como treinamento, a perseverança, a força, a superação de limites, a fama e a paz de espírito por ter cumprido os objetivos que são transformados em universais e atemporais, constituindo as virtudes do “gladiador moderno”.
Nesse sentido, acredito que por ser uma revista destinada aos jovens de classe média/alta, já que a matéria original era da Revista Trip e fora cedida para a revista de bordo da Gol, o cerne da questão não está nos antigos guerreiros, mas sim no incentivo do jovem leitor, seja ele empresário ou esportista, a melhorar a produtividade e vencer no concorrido mundo moderno. Assim, nessa associação proposta pela entrevista o gladiador romano é retirado de seu contexto original e reinterpretado a partir de valores muito bem definidos e os sujeitos que outrora viveram e lutaram nas arenas romanas são transformados em metáforas para reforçar alguns ideais contemporâneos como a necessidade de treinamento para ser um bom profissional, de domesticar a rebeldia jovem e tornar-se exemplo de fama e sucesso.
O perfil do gladiador que surge nesses discursos, seja os sobre o goleiro alemão ou o surfista brasileiro, não é em minha opinião, fundamentado na especificidade histórica romana, pelo contrário, é constituído a partir de generalizações e da homogeneização desta sociedade e da criação de pontes entre passado e presente baseada em princípios universais. Nas imagens que circulam pela mídia dos últimos anos, presenciamos os gladiadores sendo adaptados para atender ao mercado de consumo de massa, nas mais distintas esferas como, por exemplo, os filmes de Hollywood, os seriados de TV como Roma ou mesmo do best seller de Hyrum Smith intitulado O Gladiador Moderno12, livro que compara antigos gladiadores a jovens empresários ousados que almejam vencer no competitivo mercado norte-americano, redimensionando os significados dos combates a fim de atender os anseios de vários setores sociais.
Nesse sentido, essas relações entre o esporte moderno e as práticas corporais antigas são atravessadas por discursos de competitividade e vitória, explorando um universo majoritariamente masculino. A construção da força e da coragem dos desportistas modernos acaba vinculando o vencedor a uma noção masculina muito específica que molda um imaginário do que seriam os combates de gladiadores, independente de seu contexto histórico, indicando como Roma segue sendo revisitada e reinterpretada em diferentes meandros da sociedade moderna e, muitas vezes, fora do alcance da academia. Se no campo midiático os gladiadores são símbolos de autocontrole, vitória e modelo de competividade masculina, seria interessante observarmos o que a academia produz acerca desses sujeitos históricos.

Os Gladiadores e a historiografia
Os combates de gladiadores sempre se constituíram como um tema controverso entre os estudiosos do mundo romano e desde o século XIX muitas maneiras de se interpretar esse fenômeno foram produzidas. Em minhas incursões sobre a historiografia acerca dos combates de gladiadores percebi alguns eixos que se estruturaram as interpretações: os estudos que destacam o viés político dos espetáculos afirmando ou negando a idéia de Pão e circo, os que enfatizavam ou questionam seu caráter violento e os que exploram seus aspectos culturais e sociais13. Nesse momento, mais do que discutir cada uma delas, gostaria de ressaltar um pequeno detalhe, não considerado em nenhum dos trabalhos a que tive acesso, mas que é muito relevante para a reflexão que proponho nesse momento. Ao observar as muitas obras lidas sobre os combates, majoritariamente escritas por homens, percebi que nos prefácios, apresentações ou
conclusões os estudiosos buscavam, de alguma maneira, trazer as lutas de gladiadores para um universo próximo aos leitores.




Revista Recorde

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