domingo, 17 de janeiro de 2010

Os funerais de "anjinho" na literatura de viagem (parte 3)


Os funerais de "anjinho" na literatura de viagem

Luiz Lima Vailati*
Doutorando/USP

O "ANJINHO"

Afora essas impressões mais gerais, o que os viajantes nos informam, de fato, dos funerais infantis? Apesar do grande número de viajantes que se interessaram em registrar suas experiências dos enterros de "anjinho" no Brasil, não temos nenhum que tenha feito uma descrição completa com todos os eventos que se seguiam à morte de uma criança. É possível afirmar que, de modo geral, estes relatos se concentram em dois momentos particulares do cerimonial fúnebre de criança: um deles, que diz respeito à forma como se apresentava o cadáver à visitação, nos informando sobre como o corpo era preparado e sobre o aparato material que o acompanhava; o outro é a procissão fúnebre, sendo que vez por outra fazem descrições sobre os lugares e formas de enterramento e alguns cuidados pós-sepultamento.

Sobre o "anjinho", os visitantes estrangeiros se mostraram favoravelmente surpresos pelo esmero em que esses pequenos defuntos eram arrumados e expostos. "Prazerosamente", "ricamente" são os termos por meio dos quais homens como John Lucccock, já no começo do período estudado, e mais tarde Daniel Kidder20, lançam mão para descrever a maneira pela qual eram preparadas as crianças. Nesse fato se encontra, dentro do conjunto das práticas fúnebres, a primeira manifestação de que às crianças mortas não se votava qualquer tipo de menosprezo. Diferentemente do que hoje isso nos possa parecer, essa dimensão do gestual funerário está bem longe de ter uma importância secundária, restrita ao plano estético, conforme parece ter sido interpretada por esses estrangeiros. Tendo origem em tempos nos quais a crença na separação entre corpo e alma após a morte não era algo bem definido, a idéia de que a forma como se era enterrado e também como se entraria no além resistiu por muito tempo aqui. Assumindo uma dimensão de insondável importância, devia-se cuidar do aspecto pelo qual o corpo se ia apresentar no reino dos mortos, e disso dependia mesmo a direção que a alma irremediavelmente tomaria na geografia do outro mundo. De tal modo a escolha da última roupa interferia nos destinos da alma, que todo aquele que testava procurava informar em detalhe como queria estar vestido nessa ocasião21.

Residindo no Brasil em meados da década de 1840, Thomas Ewbank mostrou-se particularmente interessado por esse aspecto do cerimonial fúnebre no Brasil. No caso das crianças, ele nos informa que em alguns casos as crianças eram vestidas como santos:

As crianças com menos de 10 e 11 anos são vestidas de frades, freiras, santos e anjos. Quando se veste de São João o cadáver de um menino, coloca-se uma pena em uma das mãos e um livro na outra. Quando é enterrado como São José, um bordão coroado de flores toma o lugar da pena, pois José tinha um cajado que florescia com o de Araão. A criança que tem o mesmo nome que São Francisco ou Santo Antônio usa geralmente como mortalha um hábito de monge e capuz. Para os maiores, São Miguel Arcanjo é o modelo. Veste-se então o pequeno cadáver com uma túnica, uma saia curta presa por um cinto, um capacete dourado (de papelão dourado) e apertadas botas vermelhas, com a mão direita apoiada sobre o punho de uma espada. As meninas representam "madonas" e outras figuras populares 22.

A preferência pelas vestes de santos já à primeira vista não nos causa estranheza, visto serem deste tipo as mortalhas que eram de costume utilizadas como derradeira roupa. Isso estava de acordo com uma crença na qual o falecido, vestido desse modo, seria favorecido pela intervenção do santo — que o receberia e o guiaria em direção ao Céu — de cujo hábito escolhera por mortalha. Era muito comum, conforme acrescentara Ewbank, que se vestissem as crianças com o hábito do santo de seu nome. Assim, seu protetor em vida não lhe faltaria na morte. Desta forma, era natural que se escolhessem santos de sua predileção ou patronos de sua irmandade. Isso nos permite acreditar que, cobrindo a criança com as roupas deste ou daquele santo, os pais garantiam que seu rebento não ficaria desamparado no outro mundo, estando guardado sob os cuidados dessas entidades. Como certamente não o fora enquanto era viva, não era indiferente aos pais o que poderia acontecer à criança quando morta.

Além disso, é possível avançar a afirmação de que essa prática estava relacionada com razões que são ainda mais específicas de uma certa sensibilidade para com a criança. Ela diz respeito a uma crença no papel de intermediária que a criança morta ocupa entre os vivos e as autoridades celestes. Essa função se assentava no estado de pureza com a qual ela era caracterizada e que já garantia prerrogativas especiais à criança quando viva. Encontrando-se morta, estava em contato mais direto com os santos e, por conseguinte, esse poder de intermediação entre os homens e as entidades celestiais era potencializado. Mais do que nunca, escolher a mortalha de um santo em particular significava a possibilidade de melhor explorar esse poder tendo em vista um objetivo mais preciso, uma vez que, no universo da religiosidade popular, cada santo é "especialista" em determinado tipo de providências.

Levar em conta essa concepção nos leva, portanto, a perguntar pelas razões que faziam com que determinadas mortalhas de santo fossem escolhidas23. João José Reis, em seu trabalho sobre a Bahia, mostrou brilhantemente como algumas das vestes preferencialmente utilizadas no caso de crianças estão relacionadas à questão da procriação24. Ora, o vínculo entre as "madonas" apontadas por Ewbank e o tema é evidente (temos condições de saber que eram elas, em sua maioria Nossas Senhoras da Conceição e Nossas Senhoras das Dores). No cerimonial fúnebre infantil, para além dos cuidados tendo em vista a salvação do morto e a proteção dos vivos, uma outra preocupação a elas se soma: a manutenção da linhagem que é comprometida com a perda filial. E é isso que permite entender a preferência dada a determinadas mortalhas para a criança morta. Ora, com a morte de um filho, em que outro momento seria mais premente o desejo de se ter outro, e que outra forma seria mais eficiente de assegurar a sua concretização do que enviar o "inocente" ao encontro desses santos que, dada a condição tão especial do mensageiro, não deixariam de receber e atender a esse pedido?

Vimos que Ewbank descreve ainda uma outra mortalha, cujo uso é bastante significativo: a veste de anjo (no caso dele, a de São Miguel). Na morte, fica ainda mais evidente a associação feita entre a criança e a figura do anjo, paralelo já constatável no uso do termo "anjinho" para designar a criança morta. A relação entre eles é tão forte, que a morte não era a única circunstância em que a criança tinha a oportunidade de se vestir como tal. Sabemos disso por intemédio das descrições que viajantes como Debret e Ernst Ebel na década de 1820, Ferdinand Denis em 1838, Daniel Kidder em 1840, T. Ewbank em 1845, Oscar Canstat em 1868, deixaram de outros acontecimentos comuns aqui no Brasil, em especial das procissões em que crianças (no geral menores de sete anos, como salientam estes relatos) saíam representando anjos, cujas descrições são bastante semelhantes às destas mortalhas — asas artificiais; perucas; profusão de pedras, etc25. Ainda nesses casos, todavia, há uma forte proximidade entre as representações dos anjos e a temática da morte. A procissão em que por excelência os anjos desfilam é precisamente a do Corpo de Cristo, que não é outra coisa senão um cortejo fúnebre, o maior deles. Além de reafirmar uma série de valores agregados à criança morta, como seu estado de pureza que toma corpo na figura do anjo, o uso das vestes angelicais acentua igualmente outras características comuns às outras dimensões dos enterros dos inocentes, como é o caso da ostentação material, tem nelas um suporte especial. Esse tipo de mortalha, composto de plumas e sedas e muitas jóias, chamou a atenção de estrangeiros como Stewart em 1829, Siedler em 1835 e Candler na década de 185026.

Viajantes como Kidder e Debret (este último deixando ilustrações de enterros de crianças escravas), registraram o uso do pano branco como mortalha27. Bem mais simples que aquelas descritas por Ewbank, essas mortalhas eram mais comuns entre as camadas mais humildes, e principalmente entre os escravos recém-chegados da África. Os costumes funerários transplantados deste continente devem ter contribuído consideravelmente para isso. Muitos autores, como Jean Chevalier, apontam para o fato de a cor branca ser, entre os africanos, a cor por excelência da morte e dos mortos28. A esse significado deve-se acrescentar aquele que a liturgia cristã atribuía ao branco, a cor da alegria e, antes de tudo, da inocência e da pureza virginal. De fato, como veremos adiante, o branco aparece em outros elementos dos funerais de crianças (africanas ou não) descritos pelos viajantes29. A morte da criança, na liberalidade resultante do pouco interesse que ela desperta por parte da Igreja no Brasil, aparece também como suporte privilegiado de práticas culturais complexas e variadas tão marcantes na religiosidade popular do País, dando exemplo de como a similaridade simbólica entre esses corpos de crença deu condições para a existência de tais manifestações miscigenadas.

Além do hábito, esses estrangeiros fizeram referência a outros cuidados na preparação do "anjinho" para o enterro, em especial a alguns aspectos característicos dos rituais fúnebres infantis que já são observáveis nesse primeiro momento. Um deles é o de arrumar o cadáver de forma a lhe restituir o aspecto que tinha quando vivo, por intermédio da maquiagem. O francês Gendrin lembra do amplo uso desse material em cadáveres que, dentre outras coisas, eram apresentados com lábios e faces avermelhadas e cabelos empoados30. Como em outros procedimentos, isso também se apresentava na criança, de forma hiperbólica. Arago lembra da pequena menina morta cujas faces lhe foram pintadas em abundância de um rosa brilhante, resultando numa aparência que lhe fez lembrar "les acteurs au théâtre"31. Conforme verificado pelo mesmo viajante, não podiam faltar outros adereços, que iam das fitas coloridas e flores artificiais às pedras preciosas, fato confirmado também por Enest Ebel, Ferdinand Denis, Daniel Kidder, Carl Siedler e Wetherell que na Corte estiveram por um período que cobre três décadas32.

Por sinal, os dois autores que perfazem as pontas desses trinta anos (Ebel, e Wetherell, portanto), repararam, dentre esses adornos, numa peça fundamental: a coroa dourada sobre a cabeça33. Esse elemento devia estar intimamente associado à idéia de castidade, ao menos entre os leigos. No Brasil, sabemos do uso, condenado pela Igreja, de pôr coroas nas jovens solteiras mortas. Nos escritos judaicos cristãos, o uso da coroa possui significados os mais variados, mas todos sugestivos. Um deles é que a coroa representa a imortalidade dos mártires. Com efeito, é bastante recorrente a associação feita entre a criança morta e o mártir, com particular referência àqueles bebês mortos por ordem de Herodes, os "Santos Inocentes". O outro significado está relacionado ao batismo, e, para alguns autores, a imagem da coroa está "indissoluvelmente ligada à do paraíso"34. Mais uma vez, temos a presença de um elemento a assinalar a crença na certeza da salvação infantil. A esses significados pode-se acrescentar um outro, talvez mais relacionado a uma concepção leiga: a idéia de castidade.

Um outro artefato bastante freqüente nos funerais dos "inocentes" de que os viajantes fizeram referência é o pano branco bordado ou a toalha de renda. Este artigo era interposto entre o corpo e o suporte onde ele era depositado, fosse ele o caixão ou qualquer outro instrumento utilizado com essa finalidade. Como é o caso da mortalha branca, o uso do pano de renda parece ter sido alvo de uma certa predileção pela comunidade africana, e estendia a outros elementos do funeral infantil a eficácia simbólica do branco. Além das ilustrações de Debret que nos dão notícia deste costume, temos o depoimento de Kidder e de Ferdinand Denis, que tiveram a oportunidade excepcional de assistir a um funeral infantil africano, visto que, na propriedade rural do imperador em Engenho Velho religiões adventícias eram toleradas, conforme atestam esses autores. Essas descrições assinalam o uso, além dos arranjos com flores que cercam o morto — chamando atenção de Kidder um ramalhete atado a uma das mãos do pequeno cadáver — estava presente a toalha de renda branca35. De qualquer maneira, o que fica demonstrado por esse costume é que, ainda que os africanos no geral tivessem um uso mais extensivo do branco nos rituais de morte — visto que os adultos são também amortalhados de branco -, a relação entre a criança e a pureza que o branco encerra é reforçada.

O caixão foi outro elemento que chamou a atenção dos viajantes. Da sua leitura fica claro que para o início do período estudado o seu uso não tinha ainda papel fundamental que mais tarde conhece dentro do aparato material que compõe a ritualística fúnebre infantil. Segundo Debret, o esquife servia principalmente de suporte à exposição e transporte do cadáver, e uma vez que o corpo não era enterrado dentro dele, um mesmo esquife era utilizado em diversos funerais36. É o artista francês quem, nesse aspecto, traça o quadro mais detalhado: para as crianças mortas de família medianamente abastada era comum se utilizar para o transporte do corpo um caixão sem tampa — tal como acontece com os adultos de mesma condição — com forro de tafetá branco ou cor-de-rosa e galonado em prata. Para os que possuíam definitivamente maiores recursos, havia o caixão fechado, cuja tampa se abria em duas folhas, uma para cada lado, também este coberto de seda cor-de-rosa, forrado de branco com galões de ouro ou prata. Em 1824, uma descrição de Ernest Ebel confirma o uso de um mesmo tipo de féretro no enterro de um recém-nascido37. Entre as crianças, as diferenças de idade davam margem para variações: nos caixões de crianças de menos de oito anos, conforme salienta Debret, o rosa podia dar lugar ao azul-celeste (cor também comum entre as moças). Como de costume, o uso dessas cores e da prata contrastava com preto e o carmezim para repectivamente os caixões de homens e mulheres, ambos galonados de ouro. Ewbank, em 1845, confirmou essa tendência, dizendo simplesmente que os caixões vivamente coloridos (vermelhos, escarlates e azuis) eram próprios de defuntos jovens e crianças, utilizando-se os adultos, do preto, fato confirmado cinqüenta anos mais tarde pela norte-americana Marguerite Dickins38.

Como se vê, é nas descrições dos caixões que vemos pela primeira vez a referência ao vermelho (ou de seu equivalente, o rosa), elemento de imensa importância nos funerais de "anjinho". O carmim, que outras fontes nos informam ser uma das cores preferidas para mortalhas das crianças, cor dominante em outros aspectos do aparato funerário, tem na liturgia católica um uso que nos é extremamente significativo. O vermelho é, por excelência, a cor dos mártires e, no caso do vermelho-claro, dos anjos39. Um viajante mesmo teve oportunidade de constatar esta relação no Brasil. Como observara Thomas Lindey em 1805, essa não só era a cor do hábito dos sacerdotes nas celebrações para as Almas dos Mortos, mas, para o que nos interessa mais particularmente, essa era a cor utilizada também para as celebrações feitas no dia dos Santos Inocentes, denominação dada aos mártires bebês mortos por ordem de Herodes40.

Nesse âmbito, segundo as referências que temos para os escravos, imperava, no geral, a mais completa simplicidade. Gendrin nos informa sobre o costume de se enterrar os escravos nas redes que serviram de leito quando eram vivos, sem qualquer tipo de lençol41. Debret, por sua vez, nos fala do uso, para crianças escravas, de um pequeno caixão forrado de ramalhetes de flores artificiais, alugado dos "armadores" e, para aqueles que não podiam arcar com o aluguel de um simples caixão, lançava-se mão de um tabuleiro recoberto por uma toalha de renda. O uso de uma bandeja de madeira nos enterros de crianças africanas foi igualmente observado por Kidder42.

Nesse aspecto, os viajantes nos dão notícia de uma transformação em termos de um maior dispêndio no que respeita à cultura material mortuária, que é perceptível sobretudo pela introdução de um costume novo por parte da parcela melhor aquinhoada da população: o de se enterrar os defuntos junto com o caixão. Como já foi dito, no Brasil, as referências a esse novo procedimento estão relacionadas às narrativas que os viajantes estrangeiros faziam dos acontecimentos que tinham lugar nas celebrações do Dia de Todos os Santos. Neste dia, as catacumbas das igrejas expunham à visita os caixões e urnas com as quais mortos ali eram enterrados. Esse fato por si só já é indicativo de uma tendência no sentido de um incremento material no interior da ritualística fúnebre, visto que esse costume implicava a aquisição de um produto que, como vimos, era antes alugado.

Além disso, as urnas funerárias, aquelas mesmas que durante muito tempo havia sido costume expor à visitação pública no Dia de Todos os Santos, sofreram importantes transformações. A violência desse movimento foi tamanha que foi percebida pelos próprios viajantes em questão de décadas. Disso nos presta valioso testemunho Debret, quando observou que, a partir de 1816, já se podia ver obras-primas de marcenaria, que teriam se transformado, a partir do final de 1820, em "monstruosidades", resultado de artistas entregues à "fuga de sua imaginação" e à extravagância dos parentes, e que se traduziam em prateados e dourados excessivos e através, segundo ele, de grosseiras imitações de mármore43. Situação já plenamente configurada quando seu conterrâneo Gendrin lembrava, quarenta anos depois, dos caixões forrados de veludo galonado em ouro ou prata, artefato que causava enorme sedução na população em geral, demonstrada pelas multidões que corriam a visitar as catacumbas quando da exposição dessas urnas44. Essas mudanças chegam a ponto de Daniel Kidder falar desses féretros adornados com brocados de ouro que muitos eram "grandes como mausoléus"45.

Esse movimento no sentido de um enriquecimento material do aparato fúnebre ao longo do século XIX, observável pelas informações que nos oferecem as narrativas de viagem, está evidentemente ligado ao crescimento e enriquecimento que as cidades brasileiras conheceram durante esse período46. Este é o caso principalmente do Rio de Janeiro, cidade da qual a quase totalidade das narrativas aqui apresentadas dizem respeito. O testemunho fúnebre lança luz sobre a relação entre o desenvolvimento dessas cidades e da sua vida urbana e a incorporação de novos hábitos. Já nesse âmbito fica evidenciado que uma nova disposição de consumo, perceptível pela riqueza dos artefatos fúnebres, não significou uma simples adoção de práticas fúnebres correntes na Europa. Tendo em vista que, para que isso ocorresse, seria necessário um enxerto de sensibilidades e concepções de morte — no nosso caso, infantil — a tal ponto distinta, que dela resultou o completo estranhamento e incompreensão com que reagiram às práticas fúnebres infantis nossos observadores estrangeiros.

Revista Brasileira de História

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