terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O PODER DA CACHAÇA


O PODER DA CACHAÇA

Ademar Vidal


Quem vive no campo é que pode bem avaliar o poder da cachaça entre os homens do povo. Entre os que trabalham na enxada de sol a sol. Até parece que essa gente nela encontra a força de esquecimento tão necessário às agruras de um viver nada fácil. É fonte de alegria falsa, a cachaça como, aliás, o álcool em suas múltiplas formas de bebedeira.

Nada realmente mais importante para o trabalhador de cana que apreciar bom gole depois do longo dia de pesadas e monótonas tarefas. Aquilo desce como bálsamo confortador e compensador de muitas desditas. Poderá faltar dinheiro para tudo, menos para adquirir a "pancada oitavada". Poderá faltar luz e comida em casa, porém o desejo fica morto ante a preponderância da vontade forte, tão forte que supera todas as obrigações sociais. É raro encontrar-se na zona rural, principalmente entre os cassacos de engenho e usina, alguém que não tome o seu "remédio" a horas certas, assim ao quebrar da noite que vem ou, então, ao levantar do dia que chega cheio de esperanças ou indecisões.

O destilador, talvez pelo fato de ser fabricante de cachaça e andar a toda hora sentindo o cheiro vivo do álcool, pegado no serviço lento e paciente, carecendo a todo instante de assistência continuada, talvez seja um dos poucos indivíduos que não beba como vício e mesmo como obrigação de ofício. Quando muito pode prover. Conheço o mestre Benício, que não se lembra de haver se embriagado alguma vez na vida. Faz somente é provar para dar o ponto certo, ver se o corte está direito, se a água não está se infiltrando demais, se o álcool está sendo eqüitativamente compensado num equilíbrio que tanto recomenda a qualidade e o gosto do produto. A vigilância se torna indispensável. Mas o aparelho, por seu turno, também ajuda.

No engenho que tem destilação, quando o alambique é de qualidade (uns dizem que de barro é melhor, porque a cachaça dele sai mais gostosa, outros acham que, se for de cobre, produz por maneira muito superior) fica logo conhecido o líquido que passarinho não bebe", procurado de longe, vem gente do fim do mundo para adquirir algumas doses — e a vendagem conseguintemente é de alarmar, não chegando para quem quer e sim para os merecedores da simpatia do senhor privilegiado.

Acham os entendidos que a cachaça tem "alma". Seria melhor dizer: tem espírito. Faz com que "alimente" e traga a confiança no êxito. Que alimenta, parece que não resta dávida alguma, pois os homens do canavial mal comem, alimentam-se muito pouco e, no entanto, não dispensam a cachaça como ajuda extraordinária. Não se embriagam, mas tomam vastos goles vespertinos e matutinos, já como hábito. Acontece que existem as exceções: então é o que se vê — os viciados que não encontram serviço facilmente, vivendo do favor dos amigos, não conhecendo nada da agricultura e sim como verdadeiros judeus-errantes. Acontece ainda que, nos dias de festa, o que se surpreende é a libertação geral por via da cachaça. Os mais retraídos saem do estilo para tomar parte na dança geral. Todos bebem. A bebedeira é a razão dos folguedos. E é quando se desenrolam os acontecimentos mais curiosos: moradores de respeito subitamente se transformaram em arruaceiros quando não tiveram ensejo de tomar parte em crimes de sangue.

Há engenhos e usinas onde a cachaça é proibida por maneira intransigente, ao ponto do recalcitrante ser posto para fora sem maiores delongas. É mandado sumariamente embora. Dane-se. Vá para o inferno.

Manoel Pichilinga é doente. No trabalho, falam ser completo no cumprimento dos deveres que lhe são conferidos, na qualidade de cassaco da mais ínfima categoria. Percebe dois cruzeiros diários. Na hora da refeição come farinha com o pedaço de qualquer coisa como se fora carne ou bacalhau (que bacalhau, é um peixe que vem do sertão, criado nos açudes, muito seco e salgado de doer na língua, não tendo mesmo gosto algum) e continua depois o serviço até a noitinha. Então ganha a estrada da vila aonde vai dormir. Antes, porém, de fazê-lo toma bebedeira solene, fica de não se sustentar em pé e, cai não cai, se dirige para o seu miserável dormitório. Na madrugada seguinte se levanta e pega no serviço com a disposição de quem teve noite anterior deliciosa de repouso e boa alimentação.

E assim vive, desde anos, esse homenzinho franzino e moço, risonho e respeitador, dizendo sempre isto nas histórias que conta:

— Conheço a alma da aguardente.

— Mas como será essa alma, Pichilinga?

Certa ocasião ele confessou como a costumava ver nos seus momentos de prazer intenso. De primeiro ficava suspenso no ar (o álcool dá esta sensação) e neste instante entrava a sentir a "fumaça que é uma cobra". Como definir isso? Então explicava:

— A fumaça saía da boca sem eu me sentir.

E depois:

— Ela saía se enrolando toda e subindo, subindo e, a certa distância do chão, descia devagar, mansinha e já tomando um jeito de bicho.

Então chega a parte final. Pichilinga entrava no mais importante da história.

— Formava-se uma cobra cinzenta (a fumaça tem esta cor) dançando em minha frente ao ponto de despertar desejo da gen te pegar nela (justificava-se a vontade sexual) porque parecia esquisitamente com uma mulher se requebrando.

Aliás, os bêbedos, quando acordam, geralmente pensam ter visto ou sonhado com alguma beldade, é o que quase todos dizem. Que a cachaça tem "alma", tem, assegura Pichilinga. E, como ele, muita gente boa, mesmo senhor de engenho ou dono de usina, quando talvez sejam estes os menos capazes dessa afirmativa, pois não bebem e, quando bebem, se destacam muito na sociedade onde vivem.


(Vidal, Ademar. Lendas e superstições; contos populares brasileiros. Rio de Janeiro, Empresa Gráfica O Cruzeiro, 1950, p.265-267)

Jangada Brasil

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