segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O HISTORICISMO E A ESCOLA DOS ANNALES


O HISTORICISMO E A ESCOLA DOS ANNALES

Alberto Lins Caldas
Professor de Teoria da História - UFRO
Centro de Hermenêutica do Presente - UFRO
caldas@unir.br

O HISTORICISMO

Basicamente o Historicismo é uma História que se proclama radical, ressaltando enfaticamente não somente sua importância enquanto saber e reflexão mas impondo sua posição central para uma compreensão do Homem e do próprio Real. Surge somente quando a História já conseguiu estabelecer não somente sua linguagem, seu objeto, seu sujeito, mas tendo como suporte um imaginário que havia transformado o antigo mundo num mundo exclusivamente histórico: a virtualidade agora é exclusivamente histórica, pode ser e só pode ser pensada historicamente: ela agora é o eixo de onde partem os julgamentos, os conceitos, as alteridades. O historicismo é a vitória da história, a vitória do homem (cristianismos, ocidentalidade, capitalismos, burguesias) sobre antigas representações e crenças, criando agora novas representações e outras crenças apresentadas seja como Filosofia, seja como Ciência, seja como Realidade, seja como Corpo.

Há vários historicismos. Um historicismo antropológico, vendo na historicidade a via da interpretação, mantendo na História a “realidade humana”, sendo o homem o eixo do conhecimento e, por isso, é também uma espécie de historicismo epistemológico, considerando a História a base de reflexão teórica e metodológica das Ciências Humanas; um historicismo cosmológico, proclamando que o próprio real é histórico, disseminando a história na essência do próprio real, indo até o evolucionismo científico e, assim, é uma espécie de historicismo ontológico, fundando sua reflexão sobre História a partir do ser, dos fenômenos, da existência, mas esses conceitos não passam por critérios rigorosos para, em primeiro lugar, verificar seu estatuto de existência nem, em segundo, o restrito da sua perspectiva agora universal.

Segundo Michael Löwy (1985: 69, 70) o Historicismo comporta três “hipóteses fundamentais”: a primeira é a de que qualquer “fenômeno humano” só pode ser compreendido “dentro da história, através da história, em relação ao processo histórico”; a segunda é que há uma “diferença fundamental entre os fatos históricos (...) e os fatos naturais”, sendo, consequentemente, qualitativamente diferentes os conhecimentos postos por estas duas realidades; terceira é a de que não somente “o objeto da pesquisa é histórico” mas também o “sujeito da pesquisa, o investigador, o pesquisador, está, ele próprio, imerso no curso da história”.

O Historicismo consolida a matéria imaginária fundamental da ocidentalidade em termos de conhecimento, recolhendo tudo para dentro de um antropocosmo: nada está realmente fora da história, nada pode ser pensado de fora da história. Essa razão se disseminará por todas as reflexões sobre o real. Suas premissas não ficam somente nos limites da “escola historicista”, mesmo porque sua trajetória se confunde com a construção da História, podendo ser reconhecidas em Kant ou Condorcet, em Hegel ou em Marx, em Dilthey ou em Marheineke, em Heidegger ou em Lukács, em Spengler ou em Toynbee, em Sartre e em Aron, em Bloch ou em Braudel, em Duby e Ariès ou em Le Goff, invadindo bem mais que o “conhecimento”, se tornando o regulador dos corpos, das produções, da linguagem, das mídias, do sonho e do desejo.

O Historicismo acompanha o estabelecimento tanto dos instrumentos conceituais, os procedimentos de pesquisa, as esperanças, os métodos e as crenças quanto as próprias “filosofias da história” que vão consolidando a Ciência Histórica (mesmo quando não se aceita enquanto uma Filosofia, mas como um conhecimento objetivo) desde o século XVIII.


A operação diltheiana de transformar a Hermenêutica de uma “técnica de interpretação” num instrumento metodológico capacitará a História com um arsenal vindo de uma longa tradição filosófica, o que permitirá uma flexibilidade normalmente ainda pouco aproveitada pelos historiadores hipnotizados seja pela objetividade, seja por uma espécie de passado em-si, seja por uma “necessária” generalização. O que exige ainda uma reflexão mais rigorosa sobre a questão do relativismo, dos limites da história e da própria História. Sem uma compreensão epistemológica desses limites, “paradigmas” historicistas (naturalizantes e universais) engolem todas as diferenças radicais, alimentando as mentalidades imperialistas (hoje chamadas globalizantes).

O relativismo sempre entra em conflito com o conjunto dos modelos ocidentais estabelecidos longamente nestes últimos séculos ao mesmo tempo em que nasce tanto deles quanto das múltiplas experiências com as alteridades e com suas próprias estruturas e processos na “formação social”. Precisa utilizar os mesmos instrumentos que pretende criticar e dissolver, e nessa “utilização” demonstra sua legitimidade e eficiência. Por isso não consegue definir uma linha de raciocínio rigorosa. Pondo em questão tudo aquilo que poderia iniciar seu trabalho, perdendo horizonte e eixo, entrando em labirintos de labirintos, desperdiça sua missão com pavor, indiferença ou esquecimento.

Em primeiro lugar o relativismo é basicamente um conceito que põe limite; em segundo, estabelece posição; em terceiro, atravessa conceitos, métodos, procedimentos, saberes, disciplinas, crenças com uma desenvoltura metafísica (e isso precisa também ser objeto de reflexão); em quarto, põe a ocidentalidade dentro do seu imaginário específico: a transforma em mais uma megatribo, criando a partir de si mesma os universos compatíveis consigo mesma. A universalidade e a naturalizações retomam seu sentido de ideologia, de imaginário, de mantenedoras das ilusões fundamentais ao funcionamento das virtualidades sociais da ocidentalidade.


A ESCOLA DOS ANNALES


Fez-se contra o vazio dos “fatos”, contra a pobreza de visão que reduzia o mundo ao jogo entre “grandes homens”, exércitos e povos. A Escola dos Annales é a busca por uma História totalizante, compreendendo o Homem na plenitude do seu viver. Para isso a História tradicional era incompleta e incompetente. Era preciso saquear as “Disciplinas do Homem” para transformar a História numa reflexão e numa prática afiadas. Ao mesmo tempo retoma momentos historiográficos abafados por uma avalanche positivista.

A “narrativa histórica” (a História romance) é substituída por uma “História Problema”; as Histórias parciais (militar, política), por uma História total (ambição hegeliana e do marxista bem antes dos Annales); a instituição de uma “colaboração interdisciplinar”, que traz para dentro da História horizontes, conceitos, inflexões de “outras disciplinas” (mas essa colaboração jamais foi uma ação ácida respeitando limites, respeitando seu próprio estatuto).

Seu aparecimento corresponde ao “súbito” envelhecimento tanto dos tradicionais conjuntos teóricos quanto das práticas historiográficas mantidas num eixo que não mais correspondia às “disfunções” produzidas pela 1ª Guerra Mundial, pela Revolução Russa, pela Relatividade, pelo Marxismo e por toda uma Arte e uma literatura aparentemente “fora do eixo”, fora da fala centrada, monofônica; se distanciando de uma narrativa ingênua, aquela que acredita que “representa o real”, uma reprodução fiel.

Essa História, no século XX, passou por configurações. A primeira, “revolucionária” (talvez a mais inteligente e sensível), no entre guerras, foi o momento onde se rompeu com as tradições da História Política e a dos simples eventos; a segunda, depois da 2ª Guerra, quando esses historiadores já haviam “chegado ao poder”, foi dominado por uma História que, em parte, desvenda seu primeiro momento: torna-se uma História das “longas durações”, uma história gelatinosa é o seu produto; o terceiro, fragmentar e microhistórico, completa o processo não apenas que distende a razão dos Annales, mas que a faz compreensível, principalmente com a volta de muitos “novos historiadores” a renovadas “histórias políticas” e socioculturais.

Mas os Annales não foram, inicialmente, contra a História, mas contra certa História que se tornara, apesar de secundária, aquilo que se chamava e se compreendia como a História. Não era sequer a História de Ranke, de Michelet ou de Burckhardt; não era Marxista ou a História de Fustel de Coulanges. Era aquilo que se transformou na História Oficial. Havia perdido o brilho até mesmo daquela História escrita no século XVIII.

Seu projeto se fez de de dentro da Sociologia de Durkheim, da Geografia de Vidal de La Blanche e Ratzel e de toda uma História que nas suas inflexões, fragmentos ou propostas apontava para uma atuação mais ampla, mais rigorosa, mais interdisciplinar.

Sua escritura dissolveu, ou baniu para instâncias secundárias, a “narrativa histórica”, mas essa escritura não foi jamais uma clivagem radical. Ela escolheu aquilo que já funcionava brilhantemente, apesar de marginal e esporádico, e abandonou o que já estava envelhecido e não mais funcionava para novas realidades que se impunham. Mas essa “outra História” não enfrentou a principal matéria da História que é o presente. Sua interdisciplinaridade característica, sua plasticidade e democracia dentro dos arsenais das “outras disciplinas” não dissolveram os limites.



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Primeira Versão
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

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